Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
1 - Logo depois da partida de
Martim Afonso para o Brasil, compreendera-se em Lisboa a insuficiência do
expediente pelo qual se começava. Criar apenas, num ponto da costa, um núcleo
oficial onde assentasse o representante da metrópole, quase nada adiantaria,
num país tão extenso, no sentido de remediar os males ocorrentes. Mesmo que se
conseguisse colonizar a zona extrema do sul, ou pelo menos fazer a ocupação
efetiva desta parte da faixa marítima, continuaria todo o Norte à mercê de
traficantes e intrusos.
O que cumpria era, pois,
ocupar logo todo o litoral, ao menos nas paragens já conhecidas, e ir ao mesmo
tempo tirando proveitos imediatos da ocupação.
Fazer isso de conta direta da
coroa, por agentes ou delegados seus, seria excessivamente oneroso.
O sistema das doações era o
único que se impunha; isto é, a distribuição das terras por pessoas capazes de
as povoar a expensas próprias, de as defender e as lavrar com vantagens tanto
para si como para a real fazenda.
Esse sistema já havia sido
desde muito ensaiado com feliz êxito nos Açores, na Madeira, e nas ilhas de
Cabo Verde.
Foi esse o processo que venceu
ao espírito da corte.
Dava-se assim mais uma prova
de que lá no reino muito pouco se conhece do Brasil, e de que nenhuma ideia se
tem das condições era que deve ser aqui iniciado o serviço do povoamento.
Nas ilhas, devido a
circunstâncias peculiares, o sistema das capitanias tinha naturalmente mais
probabilidades de sucesso. As vantagens por ali eram importantes; começando
pelas que provinham de serem desertos os territórios a povoar, não sendo,
portanto, necessário fazer conquista. Aproveitando-se logo do braço africano,
fundaram os colonos a sua propriedade
no trabalho agrícola.
E que semelhante resultado
decorria, principalmente, da ausência de raça a subjugar, viu-se no insucesso
de iguais tentativas em diversos pontos da África continental, e até em algumas
das ilhas de Cabo Verde.
Nas ilhas onde havia
habitantes indígenas, foi a colonização tão penosa como nos continentes, onde
os colonos tinham de fazer primeiro a conquista. Sabe-se como os espanhóis
levaram dezenas de anos a exterminar os guaches nas Canárias, onde só ao cabo
dessa fase penosa da conquista, puderam fundar colônias que vingaram. Em
numerosas ilhas de Oceânia, o maior embaraço que encontram os europeus é o que
lhes provém da população indígena. O que tem retardado o crescimento de muitas
colônias da Malásia é principalmente a luta com os naturais. O mesmo se há de dar
sem dúvida em Madagáscar, e em todos os territórios insulares, onde só
aparecerá espírito de autonomia e sentimento local depois que cessarem preocupações,
ou se extinguirem preconceitos de raça.
A Austrália é ainda um exemplo
bem frisante. Ali não houve conquista propriamente, mas repulsa e exclusão como
na América do Norte, e em toda parte onde entre o inglês. O indígena
australiano é tão degradado, tão incapaz de resistência e tão refratário à
civilização — que por si mesmo se isolou dos adventícios. O inglês compreendeu
as vantagens do segregamento, e reservou para os melanésios uma parte do país
onde as tribos errantes se confinaram, e hão de extinguir-se fatalmente.
Outra enorme vantagem com que
se contava nas ilhas consistia na facilidade de defesa.
2 - Na América continental as
condições eram muito diferentes; e tanto que nessa circunstância se filiam
muitas das causas principais do insucesso das capitanias; pois é sabido que a
falência do regime se atribui sobretudo às lutas com os índios, às colisões de
uns com outros donatários,
e à contingência de rebater a
ataques de piratas e corsários e de resistir a intrusos.
Mas na corte de Lisboa ninguém
se apercebeu de nada disso; e na impaciência de sair dos embaraços daquele
instante, a solução que pareceu mais prática foi o precedente auspicioso das
ilhas.
E eis aí como, antes mesmo de
se saber o que faria Martim Afonso, mudou bruscamente o espírito da corte.
É natural que para essa
precipitação concorressem, tanto o que se ia sabendo da flibustagem nestes
mares e os boatos que corriam de expedições que se preparam em outros países
contra o Brasil, como o empenho dos pretendentes que assediavam o governo
solicitando concessões na América.
Como já vimos, na carta a
Martim Afonso, anunciava D. João II que iria fazer as primeiras concessões (a ele,
Martim, a seu irmão e a outros).
Sente-se que o novo plano
despertava grande entusiasmo na corte, e eram muitos os que ambicionavam ser
galardoados. Todo o mundo quer vir para as novas terras. Homens ricos, fidalgos
de posição, tanto no reino como estrangeiros, incorporavam-se às expedições, na
esperança de virem fazer fortuna na América.
Durou, no entanto, muito pouco
esse entusiasmo. O malogro dos primeiros intentos começou logo a desiludir a
muitos. A maior parte das empresas ocupavam-se, quase sem descanso, em guerras
com os selvagens e algumas não puderam resistir a agressões contínuas que
sofreram mesmo sem sair da zona marítima. Expedições houve que nem chegaram a terra,
naufragando e perecendo; e alguns donatários nem tiveram coragem de tentar
coisa alguma.
O que aconteceu foi que, para
atalhar outros males que se iam gerando, teve a metrópole de recorrer sem
demora a outros expedientes.
3 - A parte da costa primeiro
dividida foi a que se estende de Pernambuco para o sul; e a doação das
capitanias aí situadas foi logo feita ou prometida, conquanto de todas só
depois se lavrassem as cartas e respectivos forais.
I — A capitania de São
Vicente, doada a Martim Afonso, e compreendendo cem léguas de costa, divididas
em duas porções; a primeira, de 55 léguas, contadas do rio Curupacé (
Juquiriquerê) ao rio Macaé; e a outra, de 45 léguas, compreendida entre a barra
da Bertioga e a barra de Paranaguá.
II — A de Pero Lopes, composta
de três quinhões somando 80 léguas de costa: um trecho de 10 léguas encravado
entre os dois lotes de Martim Afonso; 40 léguas a contar de barra de Paranaguá
para o sul (até Laguna mais ou menos) e mais umas 30 léguas entre Igaraçu e a baía
da Traição.
III — A do Espírito Santo,
doada a Vasco Fernandes Coutinho, abrangia 50 léguas de costa, que começavam na
foz do Itapemirim e iam até a Mucuri.
IV — A de Pernambuco, de 60
léguas, entre o rio São Francisco e o Igaraçu, doada a Duarte Coelho.
V — A da Bahia, medindo 50
léguas, do rio Jaguaribe ao São Francisco. Doada a Francisco Pereira Coutinho.
VI — A dos Ilhéus, doada a
Jorge de Figueiredo Correia, e compreendendo 50 léguas, entre o porto de Poxim
e o rio Jaguaribe.
VII — A do Porto Seguro, de Pero
do Campo Tourinho, também de 50 léguas, entre o Mucuri e o porto do Poxim.
Todas estas concedidas dentro
de ano de 1534.
VIII — A capitania de São Tomé
ou Paraíba do Sul, entre o rio Macaé e o Itapemirim, contando cerca de 30
léguas. Doada a Pero de Góis.
Fizeram-se ainda, da baía da Traição
até Maranhão, outras concessões ao historiador João de Barros (associado a
Aires da Cunha), a Antônio Cardoso de Barros e a Fernando Alvares de Andrade.
Para o interior, o limite das
donatárias tinha de regular-se pelo tratado de Tordesilhas; isto é, seria para todas
o meridiano convencional que, passando ao norte pela ilha do Marajó (parte
leste), vinha cortar o litoral de Santa Catarina. É até aí que ia o que o rei
chamava — minha conquista.
4 - Para termos uma ideia
exata do que eram estas donatárias, é preciso saber-se, ao menos nas suas
linhas gerais, qual o regime político, administrativo, econômico e civil que
por elas se instituía.
Quando se fala em doação
parece realmente que se tratava de propriedade territorial; e não é isso o que
se fazia. Não é a terra que o soberano doava, mas o benefício, uma parte do
usufruto apenas.
E tanto assim que, na própria
carta de doação, concedia também o rei, mediante certas condições, um pequeno
prazo de terras ao donatário; e estas, sim, como propriedade plena, imediata e
pessoal.
É por isso que, tanto nas
cartas como nos forais, aquelas outras mercês têm sempre o nome, sem dúvida
mais adequado, de capitania (isto é, direitos de capitão).
O capitão donatário era um
verdadeiro locotenente do rei. Dentro das leis do reino, e adstrito ao seu
foral, exerce direitos de soberania, tendo a sua fazenda e a sua força militar.
Só não é dono da terra: aufere
apenas uns tantos proveitos do quase feudo que lhe foi concedido. Esses
proveitos consistem nos títulos e interesses ligados à posse da capitania: e
serão transmissíveis por herança, segundo a ordem de sucessão regulada no
respectivo foral.
Vejamos como se condena o
regime instituído sob seus diferentes aspectos.
A capitania é inalienável, e
só se transmite por herança ao filho varão mais velho do primeiro donatário, e
não partilha com os demais herdeiros. Na ordem da sucessão, e dentro do mesmo
grau de parentesco, os descendentes varões, ainda que de menos idade, precedem
aos do outro sexo. Os filhos legítimos preferem aos bastardos; mas, na falta
daqueles, sucedem estes, contanto que não provenham de danado coito. É,
todavia, permitido ao donatário nomear sucessor a qualquer parente legítimo com
exclusão dos descendentes bastardos. Na falta de descendentes legítimos ou bastardos,
sucedem, em primeiro lugar os ascendentes, e em segundo os transversais,
guardadas sempre as regras de preferência estabelecida no primeiro grau de
sucessão, a saber — legitimidade, proximidade de parentesco, sexo e idade.
Estas regras eram muito
rigorosas. Se o donatário as infringia, quaisquer que fossem os motivos,
"ainda que por causa muito pia" (dispunha o foral) incorria na perda
da capitania e neste caso, passava logo a mesma a quem de direito, como se o
donatário tivesse falecido.
5 - Eram estes os direitos
especiais conferidos ao donatário: — o título de capitão e governador; — a
obrigação, para os seus sucessores, de conservar-lhe o apelido de família; — a
propriedade de todas as marinhas de sal e moendas de água, e quaisquer outros
engenhos que se montassem nas terras da capitania, não
podendo ninguém fazê-lo sem licença sua, e sem pagar-lhe o devido foro; — a
faculdade de escravizar índios e mandar vendê-los em Lisboa. Competiam-lhe as
rendas provenientes: — da vintena do pau-brasil; — da vintena do pescado; — da redizima
de todas as arrecadações do erário; — dos direitos de portagem nos rios; — da pensão
anual de 500 réis pelos tabeliães das vilas da capitania; — dos foros, rendas e
direitos das alcaidarias-mores, etc.
Tinha o capitão e governador
plena jurisdição no cível. Nomeava ouvidor e todos os funcionários do foro.
Criava freguesias, vilas; ouvidorias e os necessários ofícios. Presidia, por si
próprio, ou por seu ouvidor, a eleição dos juízes e oficiais das câmaras, etc.
No crime, o capitão e seu
ouvidor têm jurisdição conjunta, com alçada até pena de morte inclusive quanto
a escravos, peões e homens livres comuns, sem apelação nem agravo. Quanto a
pessoas de "mor qualidade" porém (fidalgos, juízes, clérigos, altos
funcionários, etc.) a alçada vai até 10 anos de degredo e cem cruzados de multa
(salvo nos crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa, nos quais a
alçada se estende até a pena de morte inclusive, qualquer que seja a qualidade
do réu).
Por um alvará especial,
declarou-se cada capitania couto e homizio para todos os criminosos, mesmo os
já condenados até a pena de morte, com exclusão apenas daqueles crimes
(heresia, traição, sodomia e moeda falsa) que eram, depois do de
lesa-majestade, os mais graves da legislação penal daqueles tempos. Incluía-se
também entre esses, ou logo abaixo, o crime de feitiçaria, e ainda, o de
sacrilégio.
Era o capitão obrigado a
conceder, a quaisquer pessoas que o requeressem (contanto que fossem cristãos),
terras de sesmarias no lote que se lhes doava. As sesmarias eram concedidas
livres de foro, ou de qualquer tributo, salvo o dízimo das colheitas
pertencentes ao mestrado da ordem de Cristo.
Não podia, porém, o donatário
tomar sesmarias para si, nem concedê-las à própria mulher, nem ao filho que
tivesse de suceder-lhe na capitania.
6 - Além da dízima das
colheitas, da vintena do pescado, e do estanco do pau-brasil, das especiarias e
drogas, reservava para si a coroa o quinto de todas as pedras e metais
preciosos; aljôfar, coral; ouro, prata, cobre, chumbo, etc. (deduzido
igualmente o dízimo que competia ao capitão).
O comércio era livre, tanto
com o reino como com o estrangeiro; este sujeito, no entanto, à dízima real.
Só mais tarde, quando a
competição do estrangeiro ameaçou o comércio nacional é que se alterou este
regime.
Por sua parte, tinham também
os colonos declarados nos forais os seus direitos e deveres.
Obrigavam-se, com toda a sua gente
(filhos, agregados e escravos), a servir com o capitão em caso de guerra.
Comprometiam-se a pagar ao alcaide-mor das vilas e povoações todos os foros,
direitos e tributos que se pagavam no reino e senhorios segundo as Ordenações.
Aos colonos assegurava-se: — o
direito de pedir o receber sesmarias sem
mais ônus que a dízima sagrada; — isenção de todo e qualquer imposto que
não estivesse declarado no foral; assim como de obrigação que aí se não
estipulasse formalmente; — inteira liberdade de comércio com vantagens sobre
comerciantes estrangeiros; — a justiça, as condições políticas e civis
garantidas pelas leis e costumes da metrópole, apenas com as limitações indispensáveis
à situação de capitania, e que estavam expressas nos forais.
As despesas com o culto deviam
ser feitas de conta do régio erário.
Em cada capitania tinha o rei
o seu almoxarife, ou feitor da fazenda, com os auxiliares que fossem
necessários. Criaram-se depois os procuradores, ou provedores regionais; e em
1548, quando se criou o Governo Geral, centralizou-se a administração da
fazenda numa Provedoria-Mor, com jurisdição sobre os provedores de todas as
capitanias.
Como se vê, as cartas de
doação e os forais lançavam apenas um esboço do futuro regime da colônia. Nem sempre
passava para aqui inalterada a legislação do reino, sobretudo em matéria
administrativa. Tudo o que diz respeito ao trabalho, à liberdade industrial, ao
comércio, à navegação, ao fisco, à alçada das justiças, às próprias formas de
processo e julgamento, a administração em geral, ao clero, ao regime
tributário, à propriedade territorial, às forças de terra e de mar, às
ordenanças e milícias, etc., tudo se há de ir, daqui por diante, regulando aos
poucos, até chegar-se à integração do sistema.
7 - Pensam quase todos os
nossos cronistas e historiadores que este período das capitanias nada valeu, e
carece de qualquer importância. Pensamos de modo inteiramente contrário. A
nosso ver, foi esta a fase mais dolorosa dos tempos coloniais. Os donatários,
com a sua gente, foram os primeiros a encontrar-se com a terra e com os
naturais.
Acusam-se esses iniciadores da
conquista de haverem promovido embaraços para a colonização futura, prevenindo
em toda parte os índios contra os adventícios.
Mas esquecem os acusadores que
esses embaraços eram inevitáveis, qualquer que fosse o ânimo com que se
entrasse na terra. O europeu não tinha meios de entrar aqui senão como senhor,
vencendo e oprimindo.
As leis da história são
inelutáveis. Ou tudo se havia de fazer como se fez, proclamando-se logo a
preeminência da raça invasora ou então, teríamos de preferir a este, que era o
processo histórico, o processo novo do missionário. Para isto, em vez de trazer
colonos, e pô-los aqui em competição com os íncolas, teríamos incumbido o
jesuíta de fazer primeiro a catequese. Mas, estabelecido aqui o regime das
reduções, e instituída, não propriamente a velha ordem católico-feudal, mas uma
ordem teocrática, pergunta-se: que faríamos daí por diante?
É bastante esta interrogação
para levar-nos a reconhecer que era fatal o que se deu entre as duas raças em
tão grande disparidade de cultura.
Não cabe, portanto, aos
donatários a culpa do modo como se ocupou a terra.
Quanto à improficuidade de
esforços dos donatários, a injustiça é ainda maior por mais flagrante.
Decerto que nem todos puderam
levar com igual fortuna a sua tarefa. Mas nenhum deles deixou (por si mesmo ou
por preposto) de tomar muito a sério a sua obra na América. Muitos, como Duarte
Coelho, Pero de Góis, Pero do Campo e outros, entraram aqui de alma aberta, num
vivo entusiasmo pela terra. Outros, como Francisco Pereira Coutinho, Vasco Fernandes
Coutinho, Aires da Cunha, tiveram de pagar com o sacrifício da própria vida
aquela temeridade de vir para aqui afrontando tão desabridamente o destino.
É justo, pois, que recordemos
hoje aqueles heróis, que ficaram na obscuridade do seu papel, e quantas vezes
do seu infortúnio, sem uma lembrança que fale por eles na terra, que foram os
primeiros a desbravar para as multidões que depois vieram.
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