3/22/2018

História do Brasil: As Bandeiras (Ensaio), de Rocha Pombo



As Bandeiras

Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Além de se sentirem, no século XVII, apertadas no litoral as populações que tinham vindo para a América, ainda o atrativo do sertão desconhecido atuava fortemente no espírito de aventura que dos mares vinha reaparecer na terra.

Até ali, as entradas que se fizeram tinham tido por objetivo principal a descoberta de riquezas fabulosas de que tanto se falava como existentes no interior.

Serviram também essas tentativas como de escola para o novo heroísmo, que se vai ilustrar em grandes expedições levadas ao sertão longínquo, tanto a pesquisas de tesouros, como à procura de escravos.

É na prática das entradas que pouco a pouco se vai chegando à organização daquelas formidáveis partidas a que se deu o nome tão sugestivo de bandeiras. Eram expedições de caráter quase militar, e compostas de portugueses, mamelucos e índios. Levavam tudo quanto é indispensável à vida civil no meio das florestas: padres, cronistas, escrivães juramentados, e até juízes. É como nas expedições marítimas: quem parte não sabe se voltará.

O chefe de bandeira era um senhor soberano, e quase absoluto. Fazia um contrato com os seus oficiais e com toda a sua gente. Todos se sujeitavam à disciplina e ao regime que o costume havia instituído. Cada bandeirante preparava-se à própria custa, e tinha de conduzir a própria bagagem, se para isso não dispusesse de escravos. E regra as provisões de boca eram farinha de mandioca, paçoca e aguardente, canjica, erva congonha, limões, e mais nada. Quando no mato faltava víveres, assaltava-se alguma tribo que tivesse cheios os seus jiraus.

O dia da partida de uma bandeira recordava a cerimônia com que outrora dos portos lá da Península zarpava para o oceano misterioso uma expedição marítima: toda a vila, os bairros e sítios da redondeza se comoviam.

Os grandes caminhos abertos de todo o nosso litoral para o interior foram os maiores rios que deságuam na costa: o Doce, o Jequitinhonha, o Paraguaçu, o São Francisco, o Tocantins, o Amazonas. No Sul, não havendo rios que levam do litoral para o interior, aproveitavam-se naturalmente os que do outro flanco da serra do Mar conduzem para a vasta rede interior do alto Paraná e do alto Paraguai.

2 - Esta vereda do Sul, não só a precedeu, como se fez mais notável que a do Norte durante os dois primeiros séculos e meio do período colonial. Abria-se ela pelo rio Grande ou Paraná, que os paulistas alcançavam descendo-lhe os principais afluentes, e subindo depois por ele até o planalto central, de onde senhoreavam toda a rede hidrográfica das duas grandes bacias divergentes.

Dos tributários do Paraná, foi o Tietê o preferido. Desciam as expedições o Tietê até o rio Paraná; e dali tomavam o rumo que lhes conviesse. Ou subiam esse rio e entravam no Paraíba, encontrando logo, de um lado afluentes do São Francisco, e do outro afluente do Tocantins: ou então, desciam-no até a confluência do rio Verde ou do Pardo, e subindo por um destes até, vencendo um trecho de sertão no divisor das águas, alcançar o Taquari, que os levava ao rio Paraguai. Era este último o caminho chamado de Camapuã. Por este, ia-se a Mato Grosso: pelo do Paranaíba, ia-se a Goiás.

Só depois de abertas estas grandes veredas é que chegamos à época das grandes bandeiras.

A que merece primeiro este nome é a de Antônio Raposo Tavares, e foi dirigida contra as reduções do Guairá. Partiu Raposo de São Paulo por meados de setembro de 1628, tomando o caminho do sul até alcançar as cabeceiras do Tibagi, enveredando depois para o noroeste, e indo fixar o seu arraial em ponto conveniente daqueles sertões. Dali começou a expedir as suas quadrilhas de assalto contra os aldeamentos da região.

Os padres, com os seus catecúmenos, iam fugindo à medida que os paulistas se aproximavam. Ainda assim, não era pequeno o número de "prisioneiros de guerra" que se faziam, e que iam sendo remetidos para São Paulo, onde eram vendidos.

É assim que se começa a destruir aquela famosa teocracia do Guairá que ia já passando insidiosamente como domínio castelhano. Outras bandeiras acabaram a obra iniciada.

Entre as expedições que se seguem à de Antônio Raposo está a de Fernão Dias Pais. Este é mais conhecido como o governador das esmeraldas. Antes, porém, da célebre bandeira que lhe deu grande fama, tinha ido ele conquistar e trazer para São Paulo o régulo Tombu, com umas 5.000
pessoas dos três reinos que destruíra.

A grande bandeira que saiu de São Paulo (1674) à busca das esmeraldas, entrou no sertão por Guaratinguetá, e foi ao cabo de muitos trabalhos, levantar arraial no Sumidouro, próximo ao rio das Velhas, no centro do atual Estado de Minas Gerais. Ali começou o velho sertanista a ser abandonado pelo seus melhores amigos; mas, longe de esmorecer, continuou a investigar. O sofrimento da gente foi de tal ordem que alguns chegaram a conspirar contra ele, impelindo-a punir com rigor o próprio filho, José Dias. Só no Sumidouro passou a bandeira mais de três anos. Dali meteu-se ainda mais pelo sertão. Até que morreu persuadido de que havia descoberto as famosas esmeraldas.

Em 1672, outro paulista. Pascoal Pais de Araújo, conduz para os sertões de Noroeste uma grande bandeira; vai até o Piauí, explora o Tocantins, arrebanha enorme quantidade de índios, e morre subitamente por lá.

3 - Em 1675, Lourenço Castanho Taques, temeroso caça-bugres, põe-se à frente de uma grande expedição, dirigida especialmente a Goiás, à procura de minas e de escravos. Mesmo antes de chegar a Goiás descobriu ouro na região que teve depois o nome de Minas Gerais.

No ano seguinte (16761, leva Francisco Pedroso Xavier uma poderosa bandeira contra a nova Villa Rica dei Espírito Santo e aldeias vizinhas, no Paraguai, voltando "carregado de despojos riquíssimos e de grande porção de índios que capturou".

Vem agora (1718) a vez de Pascoal Moreira Cabral Leme. Passa este por ser o descobridor das minas de Cuiabá.

Um dos sertanistas mais famosos destes tempos foi Antônio Pires de Campos, filho de outro bandeirante de igual nome. Mas estes quase que se limitaram a perseguir os selvagens, tornando-se notáveis mais pelas crueldades que cometeram que pelos serviços que prestaram.

Chegamos à época do segundo Anhanguera, Bartolomeu Bueno da Silva, filho do primeiro. Havia Bartolomeu, ainda menino, acompanhado (1682) ao pai em uma bandeira aos sertões do planalto central. Dá-se mesmo com o Bartolomeu velho o incidente de que resultou o apelido com que ficou em nossa história. Conta-se que depois de bater muito sertão chegara Bartolomeu velho às aldeias do gentio goiá. Eram índios pacíficos, e acolheram bem o aventureiro. Não queriam, porém, revelar-lhe a jazida de onde extraíam as folhetas de ouro de que se ornavam as mulheres. Ao cabo de tenaz insistência sem resultados, usou Bueno do seguinte artifício: inflamou um pouco de álcool num vaso, diante dos índios, e ameaçou-os de incendiar também todas as águas da paragem, se lhe não mostrassem as minas de onde tiravam aquele metal. Os goiás aterrados cederam, exclamando — anhanguera, como se dissessem — demônio, ou alma do outro mundo. É assim que Bartolomeu voltou do sertão fartamente provido de ouro... e de escravos; pois nem a fortuna, nem o acolhimento que ali tivera, impediram que usasse com os goiás, as mesmas perfídias e atrocidades que já o haviam celebrizado.

Uns quarenta anos mais tarde vai o filho (por 1722) repetir no alto sertão as façanhas do pai, e fazer jus a passar à história sob o cognome de Segundo Anhanguera.

Partiu Bartolomeu, o moço, de São Paulo em princípios de julho de 1722; e depois de muitas vicissitudes e tormentos durante três anos, foi chegar ao ponto onde, havia tanto tempo, estivera com o pai. Na margem do rio Vermelho estabeleceu o arraial a que deu o nome de Sant'Ana, e que em 1739 era elevado à categoria de vila sob o nome de Vila Boa (depois Goiás).

4 - No Sul, além de mais vasto e mais rápido, foi mais acidentado e aparatoso que no Norte o movimento de expansão para o interior, e ainda de consequência mais decisiva para a integração do território. No extremo norte pode se dizer que foi mais meticuloso, mais pausado e mais seguro.

O que por lá caracteriza o teatro é a grandeza do rio-oceano: O Amazonas é o largo caminho para o interior; além de mais amplo, menos complicado que os caminhos do sul, através de florestas e montanhas. É talvez o rio mais famoso e lendário do mundo, depois do século do descobrimento. Tem a sua grande história, desde o segundo quartel do século XVI. Começou a ser conhecido do alto para baixo. O primeiro que o visitou (1542) foi Francisco de Orellana. A narrativa deste capitão produziu maravilha em toda a Europa, e sobretudo na Espanha, por se haver verificado que subindo o grande rio, apenas com um pequeno trecho a pé nas cordilheiras, passar-se-ia do Atlântico ao Pacífico, e vice-versa.

Em 1560, vem, ainda do Peru, a grande expedição de Pedro Ursua, da qual nenhum resultado se colheu devido à desordem em que caíra aquela gente.

Como tais expedições só andavam à procura de ouro, e nada tivessem encontrado, desiludiram-se os espanhóis do Peru, e nada mais tentaram na bacia amazônica. Apenas começaram a vir missionários pelos Andes, afoitando-se pouco a pouco a pôr-se em trato com o gentio, que se mostrava de índole pacífica, e mesmo comunicativa na maior parte.

É agora do lado do Atlântico que se vai resolver o problema do rio Amazonas, e cerca de um século depois de Orellana. É o governador Jácome Raimundo de Noronha que vai executar as ordens da metrópole nesse sentido. Estava o governo espanhol muito interessado em abrir o novo caminho para o Peru, convicto de que só assim se libertaria dos corsários que infestavam o mar das Antilhas.

Cuidou Noronha de preparar uma forte expedição, a cuja frente se pôs Pedro Teixeira, figura de destaque ali pelos grandes serviços de guerra que havia prestado.

Compunha-se a expedição de mais de 2.000 pessoas, inclusive grande número de famílias indígenas.

5 - Embarcou toda esta gente em setenta e tantas canoas, e partiu de Cametá em outubro de 1637, e foi, ao cabo de quase um ano de viagem muito penosa, chegar a Quito, sendo ali recebida "com grande gosto e louvores".

Inteirado de tudo, ordenou o Vice-Rei do Peru que Pedro Teixeira "voltasse logo" ao Pará, dando-se-lhe tudo de que precisasse.

Incorporaram-se agora à expedição dois religiosos da Companhia de Jesus — os padres Cristóvão d'Acuna e André de Artieda. O primeiro destes tomou a si a tarefa de ser o cronista da viagem de volta; e deixou-nos a notícia mais ampla que primeiro se espalhou sobre as coisas maravilhosas do Amazonas.

Tendo saído de Quito, desceu Teixeira pelo Coca até o Napo, alcançando um presídio que ali deixara com o capitão Pedro da Costa Favela. De acordo com as instruções que recebera do governador Noronha, apressou-se Pedro Teixeira em celebrar ali, com o testemunho dos dois jesuítas espanhóis, a cerimônia da posse daquelas terras "para a Coroa portuguesa", lavrando-se de tudo um auto que foi assinado pelos oficiais da expedição.

É esta viagem de Pedro Teixeira que abre o Amazonas ao espírito de aventura. O governo espanhol não aproveitou o caminho aberto para o transporte de ouro e prata do Peru; mas os portugueses por ali enveredavam, e em cerca de um século tomaram as proporções da enorme bacia. Os estímulos mais fortes que lá impulsionam a avançada para o sertão foram — a apanha de especiarias, a caça de índios e a catequese. A colheita de especiarias levava às florestas chusmas de especuladores. Em todos os grandes afluentes do rio-mar, de uma e de outra vertente, fundaram-se feitorias regulares; e o movimento do Pará para os sertões assumiu uma importância comparável quase à das bandeiras do Sul.

Também não demorou muito que se fossem as partidas do Sul e as do Norte, encontrar no seio do continente, pelas abas do Andes. Houve mesmo uma época (no século XVIII) em que as comunicações entre Mato Grosso e Pará se fizeram tão extensas que se pensou em preferir o caminho do Amazonas, e dos seus grandes tributários, para as relações de todo o Noroeste com a metrópole, fazendo-se do Pará o vasto entreposto marítimo de toda aquela parte.

Mais que as especiarias, o que lá no Norte como cá no Sul, mais incende a coragem dos aventureiros, é o descimento de escravos. Os caçadores de índios, à medida que estes se retiravam para o fundo das florestas, iam também avançando até as paragens mais longínquas e escusas. E então repetem-se por lá das mesmas tragédias que se davam no Sul. As expedições que se organizavam para domar as malocas mais refratárias podem confrontar-se com as mais formidáveis bandeiras paulistanas. Momentos houve em que só a temeridade do jesuíta se afoitava a afrontar a cólera do gentio. E quantos desses missionários não pagaram com a vida a exagerada confiança que puseram na sua palavra miraculosa!


6 - Entre as mais conhecidas expedições lá do Norte, citaremos algumas. Em 1663 leva Antônio Arnau de Vilela contra os tapajós uma entrada. Fez-se o capitão acompanhar de um religioso das Mercês. Foram todos recebidos sem hostilidades. Mas os índios, passados alguns dias, desconfiaram dos intentos daqueles hóspedes; e não esperaram por nenhuma prova (porque nisso é que estaria o perigo para eles...) e os massacraram sem poupar a nenhum.

A notícia deste destroço causou no Pará menos consternação que assanhamento geral dos escravistas; e logo se preparou uma nova e mais forte acometida àqueles selvagens. Põe-se à frente deste temeroso bando o capitão Pedro da Costa Favela, o mesmo que fora, havia mais de vinte anos, companheiro de Pedro Teixeira na viagem a Quito.

Vai Costa Favela muito acima do rio dos Tapajós; explora depois uma grande porção do território que se chamou Guiana Brasileira; e incendeia numerosas aldeias; trucida para mais de setecentos míseros que lhe resistem; e volta trazendo uns quatrocentos prisioneiros que no Pará foram vendidos em hasta pública.

Com esta vitória, afoitam-se os colonos de Belém a ir penetrando pelos maiores afluentes do grande rio, estabelecendo em toda parte presídios militares e construindo fortes.

E no entanto, não havia naquele tempo olhos que vissem como as missões faziam sempre no sertão muito mais do que as entradas.

Alguns anos antes de Costa Favela, ia o jesuíta Francisco Veloso (por 1658) ao Tocantins, e mal augurado de todo mundo, porque os índios dali andavam em grande animadversão contra os colonos. Levou consigo apenas um homem branco, sendo os demais da comitiva todos índios. Esta gente andou pelo Tocantins mais de um mês, recebida sempre com respeito e alegria pelos selvagens. E de tais disposições se aproveitou o padre Veloso com tanto jeito que dentro de alguns meses pôde voltar trazendo consigo mil e duzentos neófitos, que foram aldeados nas vizinhanças de Belém, com grande espanto dos que tratavam como feras aquelas criaturas.

Fazem-se, em seguida, muitas outras missões, e sempre com igual proveito.

7 - Mas até aí (por 1660), e daí por diante, aliás, não cessaram de o fazer, quase que se haviam limitado os jesuítas a proteger com o seu ascendente moral as tais entradas, que não houve meios de impedir que se fizessem nos sertões. Aos missionários, naturalmente não agradava aquela forma de catequese que expunha os catecúmenos, descidos para as aldeias das imediações do Pará, a todas as violências e astúcias dos brancos.

Bem cedo, portanto, se aperceberam os padres de que o interesse real da missão estava em evitar os resgates e descimentas em massa; e em ir, de preferência, fazer a obra de redenção do seio dos próprios sertões: exatamente como se fazia nas missões.

E é mesmo para isso que eles se vinham preparando com aqueles ensaios.

É pois, agora que se vai instituir a missão do Amazonas, incumbindo-se dela o padre João Filipe Betendorf, o próprio que se fez depois o notável cronista da Companhia lá no Norte.

A revolta contra os padres, e a expulsão deles em 1661, estendendo afinal em parte os seus efeitos até aos que andavam no seu apostolado fora de São Luís e de Belém, veio interromper bruscamente aquela obra.

Uns oito ou nove anos depois, vai o padre Betendorf, nomeado superior do Maranhão, em visita oficial até quase o alto Amazonas, restaurando, então, as residências do Xingu e do Tapajós, e estendendo a catequese a toda a Amazônia.

Eis aí como se fez no Norte a expansão colonial, de modo bem diferente dos processos cá no Sul preferidos.


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Imagens:
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