Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 - Além de se sentirem, no
século XVII, apertadas no litoral as populações que tinham vindo para a
América, ainda o atrativo do sertão desconhecido atuava fortemente no espírito
de aventura que dos mares vinha reaparecer na terra.
Até ali, as entradas que se
fizeram tinham tido por objetivo principal a descoberta de riquezas fabulosas
de que tanto se falava como existentes no interior.
Serviram também essas
tentativas como de escola para o novo heroísmo, que se vai ilustrar em grandes
expedições levadas ao sertão longínquo, tanto a pesquisas de tesouros, como à
procura de escravos.
É na prática das entradas que
pouco a pouco se vai chegando à organização daquelas formidáveis partidas a que
se deu o nome tão sugestivo de bandeiras. Eram expedições de caráter quase
militar, e compostas de portugueses, mamelucos e índios. Levavam tudo quanto é
indispensável à vida civil no meio das florestas: padres, cronistas, escrivães
juramentados, e até juízes. É como nas expedições marítimas: quem parte não
sabe se voltará.
O chefe de bandeira era um
senhor soberano, e quase absoluto. Fazia um contrato com os seus oficiais e com
toda a sua gente. Todos se sujeitavam à disciplina e ao regime que o costume
havia instituído. Cada bandeirante preparava-se à própria custa, e tinha de
conduzir a própria bagagem, se para isso não dispusesse de escravos. E regra as
provisões de boca eram farinha de mandioca, paçoca e aguardente, canjica, erva
congonha, limões, e mais nada. Quando no mato faltava víveres, assaltava-se
alguma tribo que tivesse cheios os seus jiraus.
O dia da partida de uma
bandeira recordava a cerimônia com que outrora dos portos lá da Península
zarpava para o oceano misterioso uma expedição marítima: toda a vila, os
bairros e sítios da redondeza se comoviam.
Os grandes caminhos abertos de
todo o nosso litoral para o interior foram os maiores rios que deságuam na
costa: o Doce, o Jequitinhonha, o Paraguaçu, o São Francisco, o Tocantins, o
Amazonas. No Sul, não havendo rios que levam do litoral para o interior,
aproveitavam-se naturalmente os que do outro flanco da serra do Mar conduzem
para a vasta rede interior do alto Paraná e do alto Paraguai.
2 - Esta vereda do Sul, não só
a precedeu, como se fez mais notável que a do Norte durante os dois primeiros
séculos e meio do período colonial. Abria-se ela pelo rio Grande ou Paraná, que
os paulistas alcançavam descendo-lhe os principais afluentes, e subindo depois
por ele até o planalto central, de onde senhoreavam toda a rede hidrográfica
das duas grandes bacias divergentes.
Dos tributários do Paraná, foi
o Tietê o preferido. Desciam as expedições o Tietê até o rio Paraná; e dali
tomavam o rumo que lhes conviesse. Ou subiam esse rio e entravam no Paraíba,
encontrando logo, de um lado afluentes do São Francisco, e do outro afluente do
Tocantins: ou então, desciam-no até a confluência do rio Verde ou do Pardo, e
subindo por um destes até, vencendo um trecho de sertão no divisor das águas, alcançar
o Taquari, que os levava ao rio Paraguai. Era este último o caminho chamado de
Camapuã. Por este, ia-se a Mato Grosso: pelo do Paranaíba, ia-se a Goiás.
Só depois de abertas estas
grandes veredas é que chegamos à época das grandes bandeiras.
A que merece primeiro este
nome é a de Antônio Raposo Tavares, e foi dirigida contra as reduções do
Guairá. Partiu Raposo de São Paulo por meados de setembro de 1628, tomando o
caminho do sul até alcançar as cabeceiras do Tibagi, enveredando depois para o noroeste,
e indo fixar o seu arraial em ponto conveniente daqueles sertões. Dali começou
a expedir as suas quadrilhas de assalto contra os aldeamentos da região.
Os padres, com os seus
catecúmenos, iam fugindo à medida que os paulistas se aproximavam. Ainda assim,
não era pequeno o número de "prisioneiros de guerra" que se faziam, e
que iam sendo remetidos para São Paulo, onde eram vendidos.
É assim que se começa a
destruir aquela famosa teocracia do Guairá que ia já passando insidiosamente
como domínio castelhano. Outras bandeiras acabaram a obra iniciada.
Entre as expedições que se
seguem à de Antônio Raposo está a de Fernão Dias Pais. Este é mais conhecido
como o governador das esmeraldas. Antes, porém, da célebre bandeira que lhe deu
grande fama, tinha ido ele conquistar e trazer para São Paulo o régulo Tombu,
com umas 5.000
pessoas dos três reinos que
destruíra.
A grande bandeira que saiu de
São Paulo (1674) à busca das esmeraldas, entrou no sertão por Guaratinguetá, e
foi ao cabo de muitos trabalhos, levantar arraial no Sumidouro, próximo ao rio
das Velhas, no centro do atual Estado de Minas Gerais. Ali começou o velho
sertanista a ser abandonado pelo seus melhores amigos; mas, longe de esmorecer,
continuou a investigar. O sofrimento da gente foi de tal ordem que alguns
chegaram a conspirar contra ele, impelindo-a punir com rigor o próprio filho,
José Dias. Só no Sumidouro passou a bandeira mais de três anos. Dali meteu-se ainda
mais pelo sertão. Até que morreu persuadido de que havia descoberto as famosas
esmeraldas.
Em 1672, outro paulista.
Pascoal Pais de Araújo, conduz para os sertões de Noroeste uma grande bandeira;
vai até o Piauí, explora o Tocantins, arrebanha enorme quantidade de índios, e
morre subitamente por lá.
3 - Em 1675, Lourenço Castanho
Taques, temeroso caça-bugres, põe-se à frente de uma grande expedição, dirigida
especialmente a Goiás, à procura de minas e de escravos. Mesmo antes de chegar
a Goiás descobriu ouro na região que teve depois o nome de Minas Gerais.
No ano seguinte (16761, leva
Francisco Pedroso Xavier uma poderosa bandeira contra a nova Villa Rica dei Espírito
Santo e aldeias vizinhas, no Paraguai, voltando "carregado de despojos
riquíssimos e de grande porção de índios que capturou".
Vem agora (1718) a vez de Pascoal
Moreira Cabral Leme. Passa este por ser o descobridor das minas de Cuiabá.
Um dos sertanistas mais
famosos destes tempos foi Antônio Pires de Campos, filho de outro bandeirante
de igual nome. Mas estes quase que se limitaram a perseguir os selvagens,
tornando-se notáveis mais pelas crueldades que cometeram que pelos serviços que
prestaram.
Chegamos à época do segundo
Anhanguera, Bartolomeu Bueno da Silva, filho do primeiro. Havia Bartolomeu,
ainda menino, acompanhado (1682) ao pai em uma bandeira aos sertões do planalto
central. Dá-se mesmo com o Bartolomeu velho o incidente de que resultou o
apelido com que ficou em nossa história. Conta-se que depois de bater muito
sertão chegara Bartolomeu velho às aldeias do gentio goiá. Eram índios
pacíficos, e acolheram bem o aventureiro. Não queriam, porém, revelar-lhe a
jazida de onde extraíam as folhetas de ouro de que se ornavam as mulheres. Ao cabo
de tenaz insistência sem resultados, usou Bueno do seguinte artifício: inflamou
um pouco de álcool num vaso, diante dos índios, e ameaçou-os de incendiar
também todas as águas da paragem, se lhe não mostrassem as minas de onde
tiravam aquele metal. Os goiás aterrados cederam, exclamando — anhanguera, como
se dissessem — demônio, ou alma do outro mundo. É assim que Bartolomeu voltou
do sertão fartamente provido de ouro... e de escravos; pois nem a fortuna, nem
o acolhimento que ali tivera, impediram que usasse com os goiás, as mesmas
perfídias e atrocidades que já o haviam celebrizado.
Uns quarenta anos mais tarde
vai o filho (por 1722) repetir no alto sertão as façanhas do pai, e fazer jus a
passar à história sob o cognome de Segundo Anhanguera.
Partiu Bartolomeu, o moço, de
São Paulo em princípios de julho de 1722; e depois de muitas vicissitudes e
tormentos durante três anos, foi chegar ao ponto onde, havia tanto tempo,
estivera com o pai. Na margem do rio Vermelho estabeleceu o arraial a que deu o
nome de Sant'Ana, e que em 1739 era elevado à categoria de vila sob o nome de
Vila Boa (depois Goiás).
4 - No Sul, além de mais vasto
e mais rápido, foi mais acidentado e aparatoso que no Norte o movimento de
expansão para o interior, e ainda de consequência mais decisiva para a
integração do território. No extremo norte pode se dizer que foi mais
meticuloso, mais pausado e mais seguro.
O que por lá caracteriza o
teatro é a grandeza do rio-oceano: O Amazonas é o largo caminho para o
interior; além de mais amplo, menos complicado que os caminhos do sul, através
de florestas e montanhas. É talvez o rio mais famoso e lendário do mundo,
depois do século do descobrimento. Tem a sua grande história, desde o segundo
quartel do século XVI. Começou a ser conhecido do alto para baixo. O primeiro
que o visitou (1542) foi Francisco de Orellana. A narrativa deste capitão
produziu maravilha em toda a Europa, e sobretudo na Espanha, por se haver
verificado que subindo o grande rio, apenas com um pequeno trecho a pé nas cordilheiras,
passar-se-ia do Atlântico ao Pacífico, e vice-versa.
Em 1560, vem, ainda do Peru, a
grande expedição de Pedro Ursua, da qual nenhum resultado se colheu devido à
desordem em que caíra aquela gente.
Como tais expedições só
andavam à procura de ouro, e nada tivessem encontrado, desiludiram-se os
espanhóis do Peru, e nada mais tentaram na bacia amazônica. Apenas começaram a
vir missionários pelos Andes, afoitando-se pouco a pouco a pôr-se em trato com
o gentio, que se mostrava de índole pacífica, e mesmo comunicativa na maior
parte.
É agora do lado do Atlântico
que se vai resolver o problema do rio Amazonas, e cerca de um século depois de
Orellana. É o governador Jácome Raimundo de Noronha que vai executar as ordens
da metrópole nesse sentido. Estava o governo espanhol muito interessado em
abrir o novo caminho para o Peru, convicto de que só assim se libertaria dos
corsários que infestavam o mar das Antilhas.
Cuidou Noronha de preparar uma
forte expedição, a cuja frente se pôs Pedro Teixeira, figura de destaque ali
pelos grandes serviços de guerra que havia prestado.
Compunha-se a expedição de
mais de 2.000 pessoas, inclusive grande número de famílias indígenas.
5 - Embarcou toda esta gente
em setenta e tantas canoas, e partiu de Cametá em outubro de 1637, e foi, ao
cabo de quase um ano de viagem muito penosa, chegar a Quito, sendo ali recebida
"com grande gosto e louvores".
Inteirado de tudo, ordenou o
Vice-Rei do Peru que Pedro Teixeira "voltasse logo" ao Pará,
dando-se-lhe tudo de que precisasse.
Incorporaram-se agora à
expedição dois religiosos da Companhia de Jesus — os padres Cristóvão d'Acuna e
André de Artieda. O primeiro destes tomou a si a tarefa de ser o cronista da
viagem de volta; e deixou-nos a notícia mais ampla que primeiro se espalhou
sobre as coisas maravilhosas do Amazonas.
Tendo saído de Quito, desceu
Teixeira pelo Coca até o Napo, alcançando um presídio que ali deixara com o
capitão Pedro da Costa Favela. De acordo com as instruções que recebera do
governador Noronha, apressou-se Pedro Teixeira em celebrar ali, com o
testemunho dos dois jesuítas espanhóis, a cerimônia da posse daquelas terras
"para a Coroa portuguesa", lavrando-se de tudo um auto que foi
assinado pelos oficiais da expedição.
É esta viagem de Pedro
Teixeira que abre o Amazonas ao espírito de aventura. O governo espanhol não
aproveitou o caminho aberto para o transporte de ouro e prata do Peru; mas os
portugueses por ali enveredavam, e em cerca de um século tomaram as proporções
da enorme bacia. Os estímulos mais fortes que lá impulsionam a avançada para o
sertão foram — a apanha de especiarias, a caça de índios e a catequese. A
colheita de especiarias levava às florestas chusmas de especuladores. Em todos
os grandes afluentes do rio-mar, de uma e de outra vertente, fundaram-se
feitorias regulares; e o movimento do Pará para os sertões assumiu uma importância
comparável quase à das bandeiras do Sul.
Também não demorou muito que
se fossem as partidas do Sul e as do Norte, encontrar no seio do continente,
pelas abas do Andes. Houve mesmo uma época (no século XVIII) em que as
comunicações entre Mato Grosso e Pará se fizeram tão extensas que se pensou em
preferir o caminho do Amazonas, e dos seus grandes tributários, para as
relações de todo o Noroeste com a metrópole, fazendo-se do Pará o vasto entreposto
marítimo de toda aquela parte.
Mais que as especiarias, o que
lá no Norte como cá no Sul, mais incende a coragem dos aventureiros, é o
descimento de escravos. Os caçadores de índios, à medida que estes se retiravam
para o fundo das florestas, iam também avançando até as paragens mais
longínquas e escusas. E então repetem-se por lá das mesmas tragédias que se
davam no Sul. As expedições que se organizavam para domar as malocas mais
refratárias podem confrontar-se com as mais formidáveis bandeiras paulistanas.
Momentos houve em que só a temeridade do jesuíta se afoitava a afrontar a
cólera do gentio. E quantos desses missionários não pagaram com a vida a
exagerada confiança que puseram na sua palavra miraculosa!
6 - Entre as mais conhecidas
expedições lá do Norte, citaremos algumas. Em 1663 leva Antônio Arnau de Vilela
contra os tapajós uma entrada. Fez-se o capitão acompanhar de um religioso das
Mercês. Foram todos recebidos sem hostilidades. Mas os índios, passados alguns
dias, desconfiaram dos intentos daqueles hóspedes; e não esperaram por nenhuma prova
(porque nisso é que estaria o perigo para eles...) e os massacraram sem poupar
a nenhum.
A notícia deste destroço
causou no Pará menos consternação que assanhamento geral dos escravistas; e
logo se preparou uma nova e mais forte acometida àqueles selvagens. Põe-se à
frente deste temeroso bando o capitão Pedro da Costa Favela, o mesmo que fora,
havia mais de vinte anos, companheiro de Pedro Teixeira na viagem a Quito.
Vai Costa Favela muito acima
do rio dos Tapajós; explora depois uma grande porção do território que se
chamou Guiana Brasileira; e incendeia numerosas aldeias; trucida para mais de
setecentos míseros que lhe resistem; e volta trazendo uns quatrocentos
prisioneiros que no Pará foram vendidos em hasta pública.
Com esta vitória, afoitam-se
os colonos de Belém a ir penetrando pelos maiores afluentes do grande rio,
estabelecendo em toda parte presídios militares e construindo fortes.
E no entanto, não havia
naquele tempo olhos que vissem como as missões faziam sempre no sertão muito
mais do que as entradas.
Alguns anos antes de Costa
Favela, ia o jesuíta Francisco Veloso (por 1658) ao Tocantins, e mal augurado
de todo mundo, porque os índios dali andavam em grande animadversão contra os
colonos. Levou consigo apenas um homem branco, sendo os demais da comitiva
todos índios. Esta gente andou pelo Tocantins mais de um mês, recebida sempre
com respeito e alegria pelos selvagens. E de tais disposições se aproveitou o padre
Veloso com tanto jeito que dentro de alguns meses pôde voltar trazendo consigo
mil e duzentos neófitos, que foram aldeados nas vizinhanças de Belém, com
grande espanto dos que tratavam como feras aquelas criaturas.
Fazem-se, em seguida, muitas
outras missões, e sempre com igual proveito.
7 - Mas até aí (por 1660), e
daí por diante, aliás, não cessaram de o fazer, quase que se haviam limitado os
jesuítas a proteger com o seu ascendente moral as tais entradas, que não houve
meios de impedir que se fizessem nos sertões. Aos missionários, naturalmente
não agradava aquela forma de catequese que expunha os catecúmenos, descidos
para as aldeias das imediações do Pará, a todas as violências e astúcias dos
brancos.
Bem cedo, portanto, se
aperceberam os padres de que o interesse real da missão estava em evitar os
resgates e descimentas em massa; e em ir, de preferência, fazer a obra de
redenção do seio dos próprios sertões: exatamente como se fazia nas missões.
E é mesmo para isso que eles
se vinham preparando com aqueles ensaios.
É pois, agora que se vai
instituir a missão do Amazonas, incumbindo-se dela o padre João Filipe
Betendorf, o próprio que se fez depois o notável cronista da Companhia lá no
Norte.
A revolta contra os padres, e
a expulsão deles em 1661, estendendo afinal em parte os seus efeitos até aos
que andavam no seu apostolado fora de São Luís e de Belém, veio interromper
bruscamente aquela obra.
Uns oito ou nove anos depois,
vai o padre Betendorf, nomeado superior do Maranhão, em visita oficial até
quase o alto Amazonas, restaurando, então, as residências do Xingu e do
Tapajós, e estendendo a catequese a toda a Amazônia.
Eis aí como se fez no Norte a
expansão colonial, de modo bem diferente dos processos cá no Sul preferidos.
Imagens:
http://memoria.bn.br
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