Os prosistas brasileiros
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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O primeiro brasileiro conhecido que escreveu prosa num gênero literário, qual é a história, e de feitio a se lhe poder qualificar a obra de literária, foi Frei Vicente do Salvador. É por ele que começa a nossa literatura em prosa.
Vicente Rodrigues Palha, como no
século se chamava Frei Vicente, segundo as escassas notícias que dele temos,
nasceu em Matuim, umas seis léguas ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Como a
maioria dos homens instruídos da época, estudou com os jesuítas no seu colégio
de São Salvador, e depois em Coimbra, em cuja Universidade
se formou em ambos os direitos e doutorou-se. Voltando ao Brasil ordenou-se
sacerdote, chegou a cônego da Sé baiana e vigário-geral. Aos trinta e cinco
anos fez-se frade, vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome pelo de
Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba, residiu em Pernambuco e
cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o
seu primeiro prelado. Tornou posteriormente a Pernambuco, onde leu um curso de
artes, no convento da ordem, em Olinda. Regressando à Bahia aí foi guardião do
respectivo convento, em 1612. Eleito em Lisboa custódio da Custódia franciscana
brasileira, no mesmo ano de 1612 teve de voltar a Pernambuco. Após haver estado
em Portugal, regressado novamente à Bahia, como guardião, tornado ao Rio e mais
uma vez à Bahia, aí faleceu entre os anos de 1636 a 1639. Estas
diferentes viagens, este trato de diversas terras e populações devia ter-lhe
completado a educação escolar com aquela, a certos respeitos melhor, que se faz
no comércio do mundo. A ela podemos atribuir a singular objetividade do seu
estilo. Foram grandes e bons os seus serviços à sua ordem e à sua pátria por
vários lugares e postos da sua atividade. Passou por excelente religioso e bom
letrado. A sua obra faz acreditar merecida esta reputação.
Essa obra, História do Brasil, concluída a 20 de dezembro de 1627, ficou
inédita até 1888. Escreveu-a o bom e douto frade a pedido, poderíamos dizer por
encomenda, de Manoel Severim de Faria, um dos mais considerados eruditos
portugueses contemporâneos, que lhe prometera publicá-la à sua custa.
Como ninguém melhor que Varnhagen
conheceu o Tratado descritivo do Brasil
de Gabriel Soares, ninguém melhor que o Sr. Capistrano de Abreu conhece a História do Brasil de Frei Vicente do
Salvador, cujo foi se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen, o
divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente predecessor
na historiografia brasileira, julga assim o Sr. Capistrano de Abreu a obra do
frade baiano: "Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século
XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do
território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito
municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se
não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo
simples fato de aqui ter nascido – um mazombo, se de algum corpo se reconheciam
membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e
os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a
tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica,
expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta ideia como o
século XVIII é a maturação.
"A sua História não repousa sobre os estudos arquivais. Haveria dificuldade
em examinar arquivos? ou não era o seu espírito inclinado a leitura penosa de
papéis amarelecidos pelo tempo? Daí certa laxidão no seu livro: muitos fatos
omitidos que hoje conhecemos e que ele com mais facilidade e mais completamente
poderia ter apurado, contornos enfumados, datas flutuantes, dúvidas não
satisfeitas. Até certo ponto a História
de Frei Vicente é comparável à geografia do meritíssimo padre Mateus Soares, um
século mais tarde: correta onde determinava posições astronômicas; em outros
pontos fundada sobre roteiros de bandeirantes e mineiros.
"Mas esta pecha resgata-a
por qualidades superiores. A História
possui um tom popular, quase folclórico; anedotas, ditos, uma sentença do bispo
de Tucumã, uma frase do Rei do Congo, uma denominação de Vasco Fernandes. Mais
ainda: vê-se o Brasil qual era na realidade, aparece o Branco, aparece o Índio,
aparece o Negro; o preto Bastião percebe-se que fez rir a boas gargalhadas o
nosso autor. Informações por que suspirávamos, e que não esperávamos encontrar,
ele as oferece às mãos cheias, ora num traço fugitivo, ora demoradamente:
leia-se por exemplo o último capítulo do livro IV, relativo a construção de
engenhos: antes nada se sabia a tal respeito. Há também o pensamento que a
prosperidade do Brasil está no sertão, que é preciso penetrar o oeste, deixar
de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao
transoceanismo: e daí a porção de roteiros que debalde se procuraria em outras
obras."
Dos mesmos méritos que do seu
ponto de vista de historiador lhe verifica o Sr. Capistrano de Abreu, pode
concluir a crítica literária para lhe avaliar os quilates nesta espécie. É um
livro que poderíamos chamar de clássico se não nos agarrássemos à estreita
concepção gramatical e retórica que o vocábulo tomou em Portugal. A sua língua
correta, expressiva e até às vezes colorida, mais porventura do que o costuma
ser a dos escritores seus contemporâneos, tem sobre a destes a superioridade da
singeleza e da naturalidade, virtudes neles raras. E poderíamos acrescentar da
familiaridade, como o mostram o já aludido símile
da exploração dos portugueses limitada à costa com o arranhar das praias pelos
caranguejos, e que tais, tirados das novidades que à sua pena inteligente
ofereciam os aspectos inteiramente inéditos do país que historiava e descrevia.
É muito mais agradável de ler que Gabriel Soares e para nós brasileiros ao
menos do que muitos dos chamados clássicos portugueses, cronistas como ele. Tem
espírito, tem chiste, quase poderíamos dizer que às vezes tem até humour. Há sobretudo nele uma
desenvoltura de pensar e de dizer que aumentam o sabor literário à sua História. Sirvam de exemplo estas suas
reflexões sobre o nome do Brasil: É porventura por isso (refere-se à troca do
nome de Terra de Santa Cruz pelo de Brasil), ainda que ao nome de Brasil
ajuntarem o de estado e lhe chamem estado do Brasil, ficou ele tão pouco
estável, que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou
a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande e
fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.
"Disto dão alguns a culpa
aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que hão
feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois
intitulando-se senhores da Guiné por uma caravelinha que lá vai e vem, como
disse o rei do Congo, do Brasil que não quiseram intitular. Nem depois da morte
de el-rei Dão João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro
que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos."
É do mesmo espírito e tom a sua
observação, já atrás citado do desapego dos moradores à terra.
Não é só historiador que reconta,
observa e reflexiona, é também moralista avisado que sem biocos fradescos,
compara, aprecia e generaliza, e sabe fazê-lo com graça natural e frase que
desta mesma naturalidade tira a elegância. São outro documento destes seus
dotes, e até da sua perspicácia psicológica, estas suas finas observações sobre
a obra da catequese, com que também inculca o que era no fundo a superficial
cristianização do selvagem. Soube o seu espírito realista discernir, e dizer
sem os rebuços que lhe punham os jesuítas, alguns motivos da passividade com
que o índio se prestava a certas práticas religiosas. É demais dizê-lo com uma
deliciosa sem-cerimônia. "Confesso que é trabalho labutar com este gentio
com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção
com que acudiam à igreja e quando lhes tangiam o sino, à doutrina ou à missa,
corriam com um ímpeto e estrépido que pareciam cavalos, mas em breve tempo
começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar
nas suas roças e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só
acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque
são muito amigos de novidades; como dia de São João Batista por causa das
fogueiras e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por
eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente das endoenças para se
disciplinarem, porque o tem por valentia. E tanto é isto assim que um principal
chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente uma
semana santa, chegando à aldeia nas oitavas da Páscoa e dizendo-lhe os outros
que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então
presidia, dizendo: "Como havia de haver no mundo que se disciplinasse até
os meninos e ele sendo tão grande e valente, como de feito era, ficasse com o
seu sangue no corpo sem o derramar." Respondia-lhe eu que todas as coisas
tinham seu tempo, e que nas endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoites
que Cristo senhor nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava
sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs
tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi
necessário dizer-lhe que fizesse o que quisesse, com que logo se foi açoitar
rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os
outros estavam por festas metendo de vinhos nas ilhargas."
É precioso o texto, assim pela
arguta observação de certos característicos hoje muito conhecidos do selvagem,
a sua inconstância de propósito, o seu amor da novidade, o seu ponto de honra
de valentia bruta, como pela língua que sendo boa, conforme a melhor do tempo,
escapa entretanto aos feios vícios desta do empolado, das construções
arrevesadas e do estilo presumidamente pomposo. A sua frase é ao contrário chã,
sem artifício e já, como viria legitimamente a ser brasileira, quando não se
propusesse indiscretamente a arremedar a portuguesa, menos invertida, mais
direta do que esta. Mais um exemplo para acabar com a comprovação das
qualidades do nosso primeiro prosador. Descreve-nos no cap. XLIV a primeira
missão jesuítica à Ibiapaba, dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira.
"Estes se partiram de
Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete em o mês de janeiro, com alguns
gentios das suas doutrinas, ferramenta e vestidos, com que os ajudou o
Governador para darem aos bárbaros. Começaram seu caminho por mar e
prosseguiram ao longo da costa cento e vinte léguas para o norte o Rio de
Jaguaribe, onde desembarcaram. Daí caminharam por terra e com muito trabalho
outras tantas léguas até os montes de Ibiapaba, que será outras tantas aquém do
Maranhão, perto dos bárbaros que buscavam, mas acharam o passo impedido de
outros mais bárbaros e cruéis do gentio tapuia, aos quais tentearam os padres
pelos índios seus companheiros com dádivas, para que quisessem sua amizade, e
os deixassem passar adiante, porém não fizeram mas antes mataram os
embaixadores, reservando somente um moço de dezoito anos que os guiasse aonde
estavam os padres, como o fez seguindo-os muito número deles. Saindo o padre
Francisco Pinto da sua tenda, onde estava rezando, a ver o que era, por mais
que com palavras cheias de amor e benevolência os quisesse quietar, e os seus
poucos índios com flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que
vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem
defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na
cabeça que lha quebraram e o deixaram morto. O mesmo quiseram fazer ao padre
Luís Figueira, que não estava longe do Companheiro, mas um moço da sua
companhia, sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua
portuguesa: "Padre, padre, guarda a vida" e o padre se meteu à pressa
em os bosques, onde, guardado da Divina Providência, o não puderam achar, por
mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos que acharam dos
ornamentos que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos e
ferramenta para darem, com o que teve lugar o padre Luís Figueira de recolher
seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar ao lugar
daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido, a cabeça quebrada e
desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o e levando-o. E composto
o defunto em uma rede em lugar de ataúde lhe deram sepultura ao pé de um monte,
que não permitia então outro aparato maior o aperto em que estavam; porém nem
Deus permitiu que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martins Soares,
que agora é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em uma igreja, onde
não só os portugueses e cristãos, que ali moram, é venerado, mas ainda dos
mesmos gentios."
As três outras versões deste fato
existentes na literatura da nossa língua, principalmente a dos padres Antônio
Vieira e José de Morais, fornecem-nos oportunidades de avaliarmos de Frei
Vicente do Salvador como escritor. Neste passo ao menos não lhe sai mal o
confronto, mesmo com o do muito maior deles, o grande exemplar dos melhores
escritores portugueses, Vieira. Ao passo que a dos dois jesuítas é nesse estilo
que o padre Manuel Bernardes, com tanto sal e a propósito chamou de
"fraldoso e dilatado", a do modesto frade brasileiro, embora sem a
correção gramatical daqueles, é simultaneamente precisa, sucinta e sóbria, sem
sacrifício da clareza. Do que sabemos de Frei Vicente do Salvador e do que nos
revela a sua obra, foi ele, no melhor sentido do qualificativo, de ânimo
ingênuo. Como escritor é este ainda o que mais lhe assenta, e que o sobreleva,
com outros dons já ditos, a todos os escritores do Brasil, nacionais ou
portugueses, nesta primeira fase da literatura aqui. Se houvéramos nós
brasileiros de fazer a lista dos nossos clássicos, isto é, daqueles escritores
que sobre bem escreverem a sua língua, conforme o uso do seu tempo, melhor nos
representassem o sentimento, o entendimento e a vontade que faz de nós uma
nação, o primeiro dessa lista seria por todos os títulos Frei Vicente do
Salvador com a sua História do Brasil.
É ele o único prosista brasileiro
da fase inicial da nossa literatura.
A prosa brasileira assim tão
dignamente estreada não se continuou pelo resto do século. À copiosa produção
poética desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não
sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país, já
oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas,
maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são
apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. Informa o
bibliógrafo português Barbosa Machado, escrevendo aliás um século depois, que
um dos poetas dessa época, que também foi funcionário real e militara pela
metrópole na colônia, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira,
deixara manuscrita uma Descrição
topográfica, eclesiástica, civil e natural do Estado do Brasil. Esta obra
não veio jamais a lume e ninguém a conhece. A julgar pelo título seria uma
repetição no século XVII do Tratado
descritivo do Brasil, de Gabriel Soares, do século XVI, com a diferença de
ser feita por brasileiro, porventura mais completa e com certeza piorada pela
presunção literária e pelo estilo gongórico do autor, que era o da época.
Escreveu mais Vieira Ravasco em Discurso político sobre a neutralidade da
coroa de Portugal nas guerras presentes das coroas da Europa e sobre os danos
que da neutralidade podem resultar a essa coroa e como se devem e podem obviar
(1692?) e remédios políticos com que se
evitarão os danos que no discurso antecedente se propõem (datado da Bahia,
10 de junho de 1693). Estes dois papéis, respectivamente de 13 e 16 folhas,
apareceram em cópia moderna na Exposição de História
do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881. À
falta de outros méritos, esses escritos fariam de Vieira Ravasco o primeiro em
data dos nossos publicistas.
Exceto estes escritos de Ravasco,
e aqueles outros supostos ou apenas referidos, os quais aliás não são
propriamente literários, a única prosa que se fazia na colônia, afora a da
conversação, era a dos sermões.
Admitindo, mais por seguir o uso
que por convicção, seja o sermão um gênero literário, e haja de fazer parte da
história da literatura, parece incontestável que só o será e só caberá nela
quando tenha sido posto por escrito. Sem isto pertenceria quando muito à
literatura oral, e desta não há história.
O sermão, porém, teve no passado
uma importância, mesmo literária, muito grande, muito maior do que tem hoje.
Social ou mundanamente foi um divertimento, um espetáculo que, conforme o
pregador, podia despertar interesse e atrair concurso tão alvoroçado ou
numeroso de ouvintes como outros quaisquer do tempo: um auto de fé, uma corrida
de touros, um jogo de canas, uma representação teatral ou alguma solenidade da
Corte. Mas, como espetáculo gratuito e aberto ao povo, era mais concorrido do
que estes, só a abastados ou favorecidos acessíveis. Tanto mais que não
constituía o sermão só por si o espetáculo, mas era apenas um
"número" nos que a igreja oferece aos seus fiéis, com a
prodigalidade, a pompa, a encenação semipagã das suas pitorescas cerimônias.
Ajudava, pois, o sermão a sociabilidade de uma gente de natureza retraída e
triste, qual a portuguesa, em tempo em que à sociabilidade se deparavam poucos
ensejos de exercer-se. Servia de elemento de instrução pela discussão de
problemas morais e noções de toda a ordem, que ao redor deles forçosamente
surgiam, e mais pela forma de os expor. De um ou de outro modo, excitavam as
inteligências, punham e resolviam questões, assentavam ou retificavam opiniões,
suscitavam emoções e forneciam, como os discursos acadêmicos ou parlamentares
de hoje, temas às conversações. Foi a sua repetição importuna e corriqueira, a
sua vulgarização, a trivialidade dessaborida e fatigante dos seus processos,
dos seus estilos, dos seus "truques" a inópia do pensamento,
invariavelmente o mesmo, que o alimentava, e da língua constantemente a mesma
que falava, com o mesmo arranjo e corte do assunto, o mesmo aparelho de
erudição, idênticos recursos retóricos, e até iguais entonações e gestos no
orador, que acabaram com o sermão, como gênero literário estimável.
Prejudicou-o também a sua cada vez mais crescente incoerência com os tempos.
Foi um grande expediente de propaganda e edificação religiosa, e ainda moral,
não só quando as almas eram mais sensíveis a tal recurso de lição oral bradada
de cima de um púlpito, mas quando, sendo pouco vulgar a imprensa, e menos ainda
a capacidade de leitura, encontrava o sermão nas massas analfabetas ou pouco
lidas, ou ainda com poucas facilidades de ler, ouvintes numerosos e de boa
vontade. Com a multiplicação dos livros, mesmo religiosos, à literatura
parenética oral se foi substituindo a literatura piedosa escrita. Ceci tuera cela. E a decadência do
sermão acompanhada com grande avanço pela da oratória sagrada, não diminuiu
apenas a importância do gênero; teve ainda uma influência retrospectiva.
Amesquinhou lançou no olvido os produtos do seu bom tempo.
Na língua portuguesa o único
orador sagrado que porventura ainda tem leitores é o padre Antônio Vieira.
Tem-nos aliás antes como clássico muito apreciado da língua, como exemplar de
escrita vernácula e numerosa, que como professor de religião ou moral. Nem há
já, mesmo entre as pessoas piedosas, se não são de todo ignaras, quem lhe sofra
a filosofia inconsistente ou a ciência e erudição atrasadíssimas ainda para o
seu tempo, além dos obsoletos e até ridículos processos retóricos. Na língua
francesa também não há mais de três oradores sagrados com leitores. Bossuet,
Massillon e Bourdaloue. Destes mesmo o que mais se lê, quiçá o único ainda em
verdade lido, é Bossuet. Nenhum deles é, aliás, como também não foi Vieira,
apenas orador sagrado. Foram personagens consideráveis no seu tempo, e, além de
ações memoráveis, deixaram obras literárias pelas quais se recomendam e à sua
obra oratória. São justamente tais ações, o papel que desempenharam e a
influência que tiveram na sua época os dois maiores deles, Bossuet e Vieira,
que mais que os seus méritos literários lhes fazem viver os sermões.
Nenhum dos sermonistas
brasileiros coloniais exerceu no seu meio e tempo ação ou influência que se
lhes refletisse nos sermões, dando-lhes a vida e emoção que ainda descobrimos
nos de Vieira. Nenhum, também, em que pese aos seus excessivos elogiadores,
possui qualidades essenciais ou formais que lhe dessem aos sermões publicados,
– que os inéditos esses de todo não pertencem à literatura – aquilo que lhes
não pôde emprestar a sua existência obscura.
Desses o que, parece, teve mais
talento, melhor língua estilo e mais força oratória foi o padre Antônio de Sá
(1620-1678), jesuíta, natural do Rio de Janeiro. Exerceu o Ministério do
púlpito no Brasil e em Portugal e, parece, também ocasionalmente em Roma, ao
mesmo tempo em que ilustrava o púlpito português o padre Vieira. Deste foi,
como acontecia com todos os pregadores da época, discípulo e seguidor. Dos seus
sermões, avulsamente publicados ainda em sua vida, e depois coligidos em 1750,
se verifica que por alguns aspectos o foi superiormente. Para o nosso gosto
atual, talvez sobrelevando ao mestre e êmulo no estilo nimiamente ornado e
culto do tempo, e notavelmente de Vieira, com quem o nosso bairrismo literário
o tem querido emparelhar. Nem pela cópia, número e mais excelência de
linguagem, nem pelo teso, vigoroso e pessoal do estilo, nem pelo arrojo,
riqueza e variedade da imaginação e dos tropos acompanha Antônio de Sá a
Vieira, do qual é, ainda com valor próprio que se lhe não pode negar, pálido
reflexo. Mas também o não acompanha no gongorismo, no abuso dos trocadilhos e
menos no atrevimento e despejo de conceitos e comparações com que o celebrado
orador português, no seu materialismo religioso, roça não raro pela chocarrice
e pela indecência, senão pela blasfêmia. Não obstante os seus reais méritos, a
boa qualidade da sua língua e estilo, mesmo o talento que revela em seus
sermões, Antônio de Sá é apenas um nome que se encontra nas antologias
didáticas e cuja obra, fora dos curtos trechos destas, ninguém mais lê e quase
todos ignoram inteiramente.
É que de fato, a despeito do
nosso catolicismo consuetudinário, os sentimentos que o inspiraram não têm mais
a virtude de interessar-nos e comover-nos. E só vive a obra literária cuja
emoção geradora persiste apesar do tempo, sempre capaz de provocar em nós
emoção idêntica. Isto é que o sermão, quando se não misturam nele, como nos de
Bossuet ou Vieira, interesses verdadeiramente humanos, ou bocados da nossa vida
e das nossas paixões, quando é apenas expediente de edificação religiosa, não
mais consegue. Perdeu, pois, o essencial dos atributos literários: o dom da
emoção.
Numerosos nomes de pregadores
podem, no período colonial, juntar-se ao do padre Antônio de Sá e os nossos
historiadores literários não se têm poupado a fazê-lo. Uns viram as suas obras
publicadas, as de outros o foram posteriormente. Alguns são apenas mencionados
por noticiadores, às vezes posteriores de um século, o que não impediu fossem
por aqueles julgados e elogiados, como se os houveram conhecido mais que por
vagas notícias. Nem há como verificar as versões que uma vez inventadas vão
sendo repetidas sem crítica por quantos do assunto têm escrito. Se o maior
deles, como parece ter sido Antônio de Sá, sumiu-se de todo no recesso escuro
de alguma livraria pública, onde apenas lhe frequentem a obra insetos
bibliófagos, e não há descobrir-lhes o influxo na mentalidade do seu tempo na
sua literatura, parece inútil, ou vão alarde de facílima erudição, nomear os
outros.
A oratória sagrada no Brasil foi
sem dúvida, no período colonial e no início do nacional, uma revelação e
porventura um estimulante, em estreitos limites aliás, da cultura do momento. Era
uma das formas por que se manifestava a inteligência e cultura brasileira,
principalmente eclesiástica. Mas como outras dessas formas de expressão, a
poesia, a história, os panegíricos pessoais ou da terra, os escritos morais,
tinham os sermões a mesma inferioridade de toda essa literatura convencional,
retórica, sem alguma relevância de engenho, sentimento ou expressão. Só mais
tarde, quando os oradores sagrados se fizeram também, sob a influência do
momento histórico, oradores e até tribunos políticos, e exprimiam ou ressumavam
as paixões nacionais na época da Independência, se nos deparam alguns, bem
poucos aliás, cuja obra, somente por este aspecto, ainda não morreu de todo.
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