Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
Nem só do que havia na cidade e no porto se
aproveitaram os flibusteiros: durante alguns meses foram apreendendo barcos
mercantes que, nada suspeitando daquela mudança, entravam na baía
desapercebidos.
Tudo isto era a rapina oficial; isto é, a que se
fazia de conta da empresa; sem falar, portanto, do saque com que se premiou o
heroísmo da soldadesca.
Johan van Dorth, que era o governador da conquista,
só chegara à Bahia no dia 11 de maio. Como era homem digno, esperava-se que
logo poria em ordem a terra.
E com efeito, esforçou-se o governador intruso até
por inspirar simpatia e confiança aos próprios baianos violentados.
Naturalmente, muito falsa ideia tinha ele da
população agredida. Ou então zombava das vítimas, confiando demais na força das
armas.
E isto é o que parece que se dava.
Não obstante os sinais de repulsa que sentiam em torno
da praça, era quase inverossímil aquela grande confiança que mostravam os
holandeses, fazendo desassombradamente o tráfico em todo o Recôncavo e nas imediações
da cidade, muito seguros, como se fossem os legítimos senhores da terra.
Parece mesmo que o intuito deles era seduzir os
colonos estimulando-Ihes o instinto do ganho (que decerto calculavam tão
poderoso como o dos flamengos); punham-se de relações com os mais acessíveis,
oferecendo-lhes bons negócios, pagando-lhes bem os gêneros que compravam e os serviços
que recebiam: enfim, tudo faziam, por chamar a si ao menos as classes humildes
da população.
É fácil de ver que algum fruto haviam de colher de
tais manobras, principalmente entre os negros e os índios.
2 - A gente que fugira da cidade na noite de 9 para
10 de maio, espaIhara-se pelos distritos vizinhos, cuidando, primeiro que tudo,
de abrigar as famílias.
O maior número dos homens válidos foram logo
reunindo-se, aos grupos, em várias aldeias que ficavam ao norte da praça; e
começaram a combinar meios de reação contra os invasores.
Principalmente na aldeia do Espírito Santo foram
concentrando-se os retirantes. Com os moradores, ocorriam também maltas de
índios, alarmados com aqueles sucessos, e revelando pelos portugueses uma
sinceridade de devotamento que muito os confortou naquele transe.
Em breve estava a aldeia convertida em vasto
acampamento militar.
Cuidou-se de dar substituto ao Governador. Abertas
as vias de sucessão, viu-se que estava designado o Governador de Pernambuco.
Enquanto se dava disso aviso para Olinda, elegeu-se capitão-mor provisório ao
desembargador Antão de Mesquita de Oliveira. Reconheceu-se logo que este, pela
sua avançada idade, não era homem para semelhantes funções.
Convenceram-se todos de que a figura indicada para
aquele momento era o Bispo. E realmente, D. Marcos Teixeira tinha índole para
grandes lances heroicos, e no seu coração havia mais virtude de cavaleiro que serenidade
de missionário.
Foi ele escolhido para o comando dos patriotas. E
sentindo agora que o seu valor, o seu instinto nacional, a sua dedicação
apaixonada pelas coisas da terra, e pelo bem de todo o povo, eram compreendidos
e avaliados por aquela gente, ali em tão aflito aperto, foi o Bispo cada vez
mais afervorando-se e tanto sobrelevou nele, às coisas do seu ministério, o
sentimento daquela missão, que lhe pareceu providencial — que foi até o
desprendimento de fazer-se formalmente soldado, pondo-se cora alegria, e vigoroso
e altivo como os moços, no meio dos mais incendidos.
Segundo Southey, não foi bruscamente que D. Marcos
passou do seu caráter episcopal para o militar; vestiu primeiro o hábito de
penitente; fez oração pública; e depois tomou armas, trazendo a roupeta por
cima do arnês, e uma cruz ao peito usando ainda, como distintivo, de chapéu verde,
e sempre ao lado da espada trazendo o báculo. Antes de tudo, "ditou o seu
testamento, como se fosse morrer... fez preces públicas... deixou crescer a
barba..."
A primeira medida que tomou, logo que foi empossado do governo, destinou-se a atalhar aquela fraqueza de alguns que se mostravam propensos a aderir aos conquistadores: proibiu, sob pena de morte, que se entrasse em relações de qualquer ordem com o inimigo; e chamou às armas todos os baianos que podiam combater.
E como que instantaneamente, mudou a situação no
arraial do Espírito Santo. Vasto alarido de guerra ecoou por aquelas paragens
onde andava reinando a desolação.
Em poucos dias, estavam prontos para entrar em
campanha cerca de dois mil homens.
3 - Foram essas forças divididas em companhias, sob
o comando de capitães já conhecidos pelo seu valor.
Organizado o exército da reação, o primeiro
pensamento de D. Marcos foi tentar a libertação do Governador, e do mesmo golpe
fazer a reconquista da cidade.
Infelizmente falharam os planos, pois os intrusos
estavam muito apercebidos.
Transferiu-se então o acampamento do Espírito Santo
para o Rio Vermelho, a cerca de uma légua da cidade; e estabeleceu-se o cerco
da praça, espalhando-se pelo contorno formidáveis quadrilhas de assalto.
Abre-se assim, para os flamengos, uma fase de lutas
tremendas, que lhes não deixam mais um momento de sossego. Todos os caminhos em
volta da cidade foram tomados, não se deixando ao inimigo meio algum de receber
víveres por terra.
Uma das primeiras vítimas daquelas temerosas
companhias volantes foi o próprio governador intruso, uns três meses depois da
ocupação. Fora, não há dúvida, van Dorth bem pouco prudente, talvez por
desafrontar os seus dos muitos perigos que se corriam ao sair da cidade.
Acompanhado de cem homens da sua guarda, saíra ele a inspecionar uma
fortificação a cerca de uma légua da porta do Carmo; e quando voltava,
"rebentaram os nossos — diz Vieira — de uma emboscada contra eles, e um (foi
Francisco Padilha) arremeteu contra o governador, que vinha a cavalo, e o
derribou. Tanto que este caiu, caiu com ele o ânimo dos soldados que o
acompanhavam, como bem se viu no efeito, porque faltando-lhes nas mãos para resistir,
só nos pés lhes sobejou para fugir".
Este desastre consternou os sitiados; e pode
contar-se daí o declínio da situação para eles.
Da sua parte, exaltando-se com o sucesso, iam os
baianos apertando o sítio.
Para mais os incender, chega-lhes do Norte, Antônio
de Morais "com uma companhia montada à própria custa"; e logo depois,
reforços de Pernambuco às ordens de Francisco Nunes Marinho, que viera como
locotenente de Matias de Albuquerque no Governo Geral.
Passara-lhe o Bispo aquele penoso posto; e dentro de
um mês (por princípios de outubro) falecia, talvez mais de desenganos que de
fadiga.
4 - Continuou Nunes Marinho a obra da reconquista
com muito esforço e bravura, aumentando fortificações, construindo novas
trincheiras no lado do sul e do norte, únicos pontos por onde era possível a
agressão, achando-se todo o flanco oriental da praça defendido por águas
canalizadas.
Do mês de outubro em diante viram-se os intrusos
reduzidos quase a permanecer dentro dos muros.
Só na baía conservavam ainda o seu domínio. Mas ali
mesmo no mar já se viam molestados e perseguidos. Por todo o litoral do
Recôncavo, nos pontos por onde poderiam receber víveres, destacaram-se turmas
de flecheiros, que tornam perigoso o desembarque. Também na ilha de Itaparica, onde
faziam provisões, iam sendo hostilizados, e só com muita força e arriscando-se
a graves perdas, atreviam-se a voltar ali.
Se os baianos dispusessem de forças navais para
impedir-lhes a baía, tê-los-iam posto logo na contingência de fugir ou de
render-se.
Provavelmente, na Holanda não se tem notícia exata
das condições a que se acha reduzido ali aquele bando, nem mesmo depois da
morte de Johan van Dorth, e do que sucede a este imprevisto acidente. A falta
de um chefe autorizado tivera como consequência mais grave o afrouxamento da
disciplina entre os soldados. Albert Schouten, que sucedera a van Dorth, não
tinha o mesmo prestígio do malogrado governador.
Bem se vê como é insustentável a situação dos
flamengos. Parece mesmo que só agora é que eles clamam para a sua metrópole, na
aflição em que se vão sentindo.
E agora, não só já é um pouco tarde, como não se
precisa mais em Haia de avisos cá da América. Lá mesmo é que o Conselho dos
Dezenove (que dirige a Companhia das índias Ocidentais) sente os sinais da
refrega iminente.
Mas então já não era mais tempo de evitar o fracasso
daquela primeira tentativa. Mesmo que a solução da causa ficasse entregue
exclusivamente às duas hostes que estão travadas, não seria possível que os
sitiados resistissem por muito tempo mais à ação dos sitiantes.
5 - Por princípio de dezembro chegava aos arraiais
baianos, com algum reforço, D. Francisco de Moura; e dando notícia de
que não tardaria a vinda de uma poderosa esquadra para restaurar a
cidade.
Em Olinda combinou o novo capitão-mor com Matias de
Albuquerque o que convinha. Ali ainda se lhe reuniu alguma gente capitaneada
por Manuel de Sousa d'Eça e Feliciano Coelho.
Com alguns caravelões, providos de víveres e
armamentos, veio D. Francisco de Moura desembarcar num porto umas doze léguas
ao norte da Bahia, e dali alcançou por terra o Rio Vermelho.
Ainda com mais confiança e decisão cuidou-se agora,
não só de estreitar cada vez mais o sítio, como de ir fechando pelo estuário a
única válvula que restava aos inimigos.
Por sua vez, provocados de invectivas e refregas
contínuas ensaiam os holandeses sortidas por vários pontos e travam-se lutas
ali quase peito a peito sem descanso.
Numa das escaramuças, que se repetiam nos arredores
da praça, teve logo o coronel Albert Schouten sorte igual à de van Dorth. Sucede-lhe
o irmão Willem Schouten, mas ainda com mais depressão do ânimo geral na praça,
do que com o primeiro desastre.
Os pequenos socorros que chegam da Holanda parece
que, em vez de consolar os sitiados, começam a desenganá-los. Não passam nunca
de uma ou outra nau com algumas dúzias de soldados; e não é
decerto com isso que se há de manter a praça, tão fortemente assediada de
inimigos.
Sentem os intrusos como se lhes agravam as condições
dentro dos muros quando a baía se lhes foi fechando.
Entregaram os baianos a Sousa d'Eça a vigilância do
Recôncavo; e começou o valente capitão apoderando-se de algumas paragens que
ainda se achavam guardadas pelos inimigos.
Não tendo mais no Recôncavo onde entrar sem combate,
procuraram os sitiados prover-se de mantimentos em outros pontos da costa, fora
da baía. Mas, por ali mesmo eram atropelados pelos temerosos bandos de assalto que
batiam todo o litoral.
Era, pois, esta a situação dos intrusos. Só a
esperança de um grande socorro, que de Haia se lhes promete, é que os anima a
conservar com tanto sacrifício a cidade e o porto.
6 - Tanto em Espanha, como em Portugal,
aparelhava-se a poderosa esquadra que devia desafrontar a terra.
Nunca se conhecera na península um fenômeno
semelhante ao que ali agora se passa. Dir-se-ia que na alma dos dois povos
lavrou uma vasta insurreição moral no momento em que correu notícia da audácia
flamenga. Todas as classes, do rei aos mais humildes, emularam
em dedicação e fervor; e um só clamor de guerra se ouviu contra a temeridade dos
intrusos. Mesmo os que não puderam tomar armas fizeram questão de ter a sua parte
de sacrifício na desafronta, contribuindo com seus haveres para custeio da
expedição. Acorriam com tanto alvoroço os voluntários que houve casos em que
foi necessário tirar à sorte, entre irmãos, o que havia de ficar com a família... porque todos queriam vir.
Em pouco estava preparada a frota portuguesa,
composta de 26 velas, com cerca de 4.000 homens. Vinha como almirante D.
Francisco de Almeida; e como general de terra D. Manuel de Menezes.
Esta armada saiu do Tejo pelos fins de novembro
(1624) e veio em Cabo Verde esperar pela de Espanha.
A frota espanhola compunha-se de 37 navios, como 7.000
homens, tendo como almirante D. João Fajardo de Guevara.
Toda a expedição, formada pelas duas frotas, vinha
sob as ordens de D. Fadrique de Toledo, chefe supremo da terra e mar.
Pelos princípios de fevereiro (1625) reuniam-se as
duas esquadras na baía de Santiago. Assumiu D. Fadrique o comando geral; e no
dia 11 do referido mês, prosseguiu na derrota para a América, vindo, no dia 29
de março, fundear a nordeste da barra da Bahia, junto ao pontal de Santo
Antônio.
Dirigiu-se logo D. Francisco de Moura, com outros
oficiais, para bordo da capitânia real e deu ao generalíssimo conta do estado
em que ia a guerra.
Concertou-se em conselho o plano de operações. No
dia 30 estabeleceu-se o bloqueio da barra. Só então é que viram os holandeses
que a esquadra não era a que esperavam.
No dia 31, começou o desembarque de tropas, ao sul
da cidade, entre Santo Antônio e São Bento: tudo correndo em boa ordem. Alguns
dias; depois chegaram também reforços de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de São
Vicente e de outras capitanias.
Instalou D. Fadrique o seu quartel no alto do Carmo.
Guarneceram-se todas as eminências vizinhas, e fechou-se, com uma compacta
linha de baterias, a cidade por terra, e tendo-se a baía completamente
bloqueada.
Sentindo a extremidade do perigo, abandonaram os
holandeses alguns fortes e trincheiras que ainda conservavam fora dos muros e
concentraram suas forças na praça, deliberados a resistir até que
lhes cheguem os esperados socorros.
7 - Tudo disposto em volta da praça, pelos primeiros
dias de abril, aproximou-se do baluarte do Mar a nossa esquadra, e rompeu fogo,
de um lado e de outro, no mar e em terra.
E desde então (6 de abril) não houve mais descanso
nos dois campos. Diz Fr. Vicente que "durante 23 dias não se passou um
quarto de hora, de dia nem de noite, sem se deixar de ouvir estrondo de
bombardas, esmerilhões e mosquetes de parte a parte".
Para aumentar a aflição dos inimigos, já sem um
chefe de prestígio, começou a discórdia a dividi-los. Uma sedição depõe Willem
Schouten, e proclama general a Hans Ernest Kijf; enquanto uma facção fica ao
lado daquele.
Não era mais possível a resistência.
No dia 27 de abril, num dos lados da praça onde a
luta era mais tremenda, iam os nossos soldados tomar de assalto uma
trincheira, quando gritaram de dentro que cessassem o fogo "porque se
queriam entregar". Veio logo o próprio comandante holandês entender-se com
os oficiais que estavam ali; e no outro dia, foi um tambor ao quartel do Carmo,
com uma carta em que se propunha formalmente a paz.
Ao cabo de algumas conferências, aceitaram os
flamengos as condições impostas pelos vencedores. Foi a capitulação assinada no
dia 30 de abril; e no 1° de maio fizeram as tropas reais a sua entrada triunfal
na cidade.
A esquadra que os holandeses esperavam só a 26 de
maio é que apareceu na Bahia. Tendo o almirante a decepção de ver que
nos muros da cidade no tope dos navios já tremulavam as bandeiras de Portugal e
de Espanha, preferiu deixar pacificamente o porto.
Estava, pois, burlada aquela primeira tentativa dos
holandeses no Brasil.
Mas, nem por isso aquele fracasso havia de desiludir
os argentários de Amsterdam. E muito naturalmente. Eles não saíam daqui
perdendo; antes lucrando, e lucrando muito mais que as presas recolhidas, pois
lucraram as lições daquele proveitoso ensaio, e com elas a convicção de que não
era possível renunciar ao Brasil.
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