Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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1 — Mal começara em 1573 Luís de Brito de Almeida a
sua administração, quando entrou em vigor a medida tomada pela metrópole de
separar do governo do Norte o governo do Sul.
Sente-se que está ainda hesitante a corte de Lisboa
quanto aos processos que há de pôr em prática para povoar o seu vasto domínio,
e defendê-lo contra as ambições de outros povos.
A questão imediata para a metrópole, agora, é a
conquista do Norte e a organização definitiva do Sul.
Esta parte da costa, desoprimida de intrusos,
achava-se em condições de entrar na ordem política; enquanto as capitanias que
ficavam para além de Pernambuco só aguardavam a solicitude da autoridade
oficial, desde que os respectivos donatários nada tinham podido fazer.
Pungido de tais reclamos e urgências da obra
colonial, teve o governo português de sair das suas vacilações recorrendo a um
expediente que revelou de novo a falta de sistema que o havia já levado ao
regime das donatárias: dividiu em duas seções administrativas a extensão da
costa, nomeando dois governadores, com atribuições iguais, e independentes um do
outro.
A razão capital desta medida era aliviar de
preocupações com as do Sul o Governador do Norte para que este pudesse
empreender com mais eficácia o povoamento da costa leste-oeste.
Na seção do Norte de Ilhéus inclusive para além, e
continuando a residir na Bahia, ficaria Luís de Brito; e para a seção do Sul de
Porto Seguro para baixo, tendo como capital o Rio de Janeiro, viria o dr.
Antônio Salema, já com algum tirocínio na colônia.
Entenderam-se os dois governadores no sentido de
regular uniformemente as questões de mais interesse naquele momento, além das
soluções capitais indicadas. A que mais o preocupou, e a respeito da qual
tomaram assentos decisivos, foi a dos índios.
Conquanto deixando ainda certas ensanchas à gana dos
escravistas, convencionaram em proteger
o gentio o mais que era possível, dadas as condições que já se haviam criado na
terra.
2 — No momento em que assume Luís de Brito o governo
da divisão do Norte, a Cidade de Salvador vai em plena prosperidade, e toda a
capitania bem mostrava as grandes vantagens da administração oficial. A cidade já
se alongava por boa extensão da praia, onde se iam localizando os comerciantes
e industriais.
Era o grupo mais denso de população do país, e devia
ter por muito tempo, com o seu predicamento de capital da colônia, a fama de
primeiro centro de riqueza em todo o Brasil. Pernambuco, é certo aliás, não se
sabe se teria alguma coisa a invejar-lhe, tendo tido a fortuna de estar sempre
sob o esforço daquela digna família de suseranos, que nunca esqueceram a
tradição do seu grande patriarca.
A capitania de Duarte Coelho, que até princípios do
século XVII foi na costa a guarda avançada para o norte, é talvez a única que
poderia sancionar aquela providência de D. João II (criando as capitanias);
pois até a invasão holandesa não sofrera no seu progresso um momento de eclipse,
nem mesmo de declínio.
Eram estas duas as mais ricas partes da seção do
Norte. Ilhéus, ao sul da Bahia, leva a sua vida mofina; e para o norte, não há
nada feito pelos portugueses.
Logo que acordara com o seu colega do Sul aqueles
artigos a respeito dos índios, quis logo Luís de Brito dar provas de que, mesmo
guardando as novas disposições que tanto desagradaram à maioria dos moradores, bem
se poderiam assegurar as antigas vantagens de que ninguém queria abrir mãos.
Não se compreende semelhante política; e é fácil de
ver como teria de sair-se o Governador, que, com franqueza tão inexplicável,
vai segui-la. Durante os cinco anos que ali esteve, não cuidou Luís de Brito
senão quase só de guerra... a tal guerra
justa com que se burlavam todas as recomendações da corte, e até ordens
formais em favor do gentio.
A primeira se fez sob o pretexto de desbravar aquele
trecho da costa entre a Bahia e o rio Real, conforme lhe ordenavam de Lisboa.
E daí continuou cedendo sempre aos escravistas, pondo
sempre em ação, ora as armas, ora a perfídia.
Com isto reanimou-se a população, e foi agora, livre
de riscos, estena terra em alaridos.
Fora de tal desserviço em relação aos índios, apenas
animou Luís de Brito uma ou outra tentativa de descobrir esmeraldas; mas isso
mesmo fez, como diz Frei Vicente, mais por "buscar peças que
pedras"...
3 — Estava no governo da cidade, Cristóvão de Barros
(que havia sucedido a Salvador Correia de Sá), quando chegou ao Rio de Janeiro,
como Governador do Sul, o Dr. Antônio Salema.
Continuou Cristóvão como capitão-mor da cidade;
enquanto o Governador, superintendendo todos os negócios, mesmo da administração,
cuidava principalmente das fortificações do porto e da colonização do litoral.
O que mais preocupava os moradores era ainda o
constante perigo em que se viam de ser a todo momento atacados pelos franceses,
que se obstinavam em manter a sua feitoria do Cabo Frio, de onde saíam a pilhar
colônias desguarnecidas.
Apenas assumiu o governo, resolveu Salema expulsar
dali aqueles traficantes. Com mais de mil combatentes, foi o próprio
Governador, em companhia do capitão-mor da cidade (que era homem de guerra),
investir a posição.
Encontraram em Cabo Frio muitas naus francesas, e os
contrabandistas de novo entrincheirados, e vigorosamente protegidos de
multidões de tamoios.
Bloquearam a barra, e foram perseguindo sem descanso
os intrusos por terra, pondo-os em sítio cada vez mais apertado.
Como o objetivo principal dos portugueses era
escarmentar aqueles índios (sem cujo concurso não se animariam os aventureiros
a continuar o seu tráfico), usou o Governador de um recurso político de que se
não arrependeu: assim que os sitiados propuseram capitulação, apenas exigiu deles
a entrega de armamentos e munições, assegurando-lhes o direito de vida e de
sair livremente.
Aconteceu o que se calculara: com a retirada dos
franceses sofreram os tamoios tal destroço que se viram na contingência de
abandonar aquele trecho da costa, fugindo para as montanhas e sertões do
Noroeste.
Só agora (por 1576 mais ou menos) é que se poderiam
as colônias do Sul considerar definitivamente desassombradas dos franceses.
4 — Teve então o Dr. Salema tempo de varrer, de todo
o litoral da baía e redondeza, os restos de tribos que ainda depredavam
engenhos e fazendas, e que foram, ou submetendo, ou afastando-se para o sertão.
Com isto reanimou-se a população, e foi agora, livre
de riscos, estendendo-se pelas imediações da cidade, e até por distritos
isolados.
Adiantou o Dr. Salema (e foi nesta obra continuado
pelos seus sucessores) o problema do povoamento, fazendo explorações de campos
e florestas, abrindo caminhos onde era menos difícil esse trabalho, e provendo como
podia às necessidades gerais.
Da seção do Sul depois do Rio de Janeiro, a parte
mais importante era a capitania de São Vicente, cujas vilas, e outras povoações
que se iniciavam, tomaram novo impulso depois da vitória contra os franceses e
os tamoios.
Tinham afluído para ali muitos imigrantes, e crescia
aquela geração de mamelucos que tão extraordinário papel vai ter na história do
século que se segue, por isso mesmo o mais dramático e o mais fecundo de todo o
período colonial.
Os dois núcleos de mais valia eram Santos, na
marinha, e em serra acima. São Paulo.
De Santos ia a população adventícia volvendo as
vistas para as vizinhanças. Mesmo antes do estabelecimento do Governo Geral, já
os colonos visitavam paragens das costas para o sul, como já se viu, e indo até
o porto dos Patos.
5 — Logo que se viam mais desafrontados de selvagens,
piratas e corsários, iam os moradores do litoral formando diversos outros
núcleos, entre os quais os que em seguida constituíram as vilas de Itanhaém, de
Iguapé, de Cananeia, de Paranaguá.
Todas estas povoações, aliás, já eram aldeias de
índios, sendo a de Cananeia a mais importante, e talvez a mais antiga. Os
colonos que se estabeleciam nesses núcleos viviam da pesca e do comércio com os
naturais.
Alguns empregavam-se também na lavoura, cultivando
principalmente a cana-de-açúcar, a mandioca, etc.
Em serra acima, a vida era mais difícil, porque ali
não se contava com uma cultura que se pudesse tornar base da economia local.
É assim que entre os moradores do campo se vai
gerando aquela tendência de procurar o alto sertão.
Os que não sentem renascer-lhes esse instinto da
aventura e da temeridade, têm de voltar daquele caminho, onde se esvanecem as
miragens dos primeiros dias, ou de viver ali em penúria, naquela fase de
ensaio.
Chegou a ser proverbial a pobreza de São Paulo antes
da avançada dos mamelucos para os sertões.
Os próprios jesuítas sentiram aquela miséria, e
tiveram de mudar para a marinha o Colégio de Piratininga.
6 — Nem foram só os padres que desanimaram naquele
momento crítico. Em São Paulo quase que só ficaram os mestiços e seus
ascendentes.
Com o aparecimento do espírito de aventura, dirigido
para as florestas do interior, ainda se tornam, por algum tempo, mais escassos
os recursos de vida ali na vila, e em todo o planalto.
Mal se iniciava a indústria pastoril em escala
insignificante, criando-se algumas fazendas e sítios de pequenos proprietários.
A lavoura é que não podia medrar, limitada a uns
quantos produtos de quase exclusivo consumo da terra.
Cultivou-se ali, nos princípios, a vinha com
proveito, algumas frutas e legumes. Ensaiou-se a cultura do trigo, mas sem
vantagem de monta.
A vinha sempre despertou mais interesse; mas logo se
viu que como indústria valia pouco.
Demais, o vinho da Europa, melhor e muito barato, era
preferido pelos consumidores.
É provável, em suma, que os gêneros que se produziam
nos campos não fossem suficientes para o sustento da própria população.
Era natural, portanto, que tudo isto tivesse mesmo
como consequência o refluxo de moradores do planalto para o litoral, e o
empobrecimento de toda a capitania por muitos anos, até que lhe abrissem novos
horizontes.
7 — Além dessas causas particulares, atuaram ali
outras que eram gerais no país; como, por exemplo, a anarquia reinante na
administração, e principalmente o abandono em que se viam as populações,
devido, antes de tudo, à situação em que se encontrava a metrópole naqueles
tempos, e que se refletia em todas as colônias.
Desde o falecimento de D. João III (1557) que a
monarquia entrara numa fase acentuada de declínio; mas principalmente com o
reinado do cardeal, podia considerar-se em crise, até a perda da independência
(1580).
A corte não tinha tempo senão para as vastas intrigas
que precediam aquele próximo desenlace de comédia.
Entregue inconscientemente à astúcia de Filipe II,
perdera de todo o cardeal a consciência da sua autoridade, sobretudo quando o
desastre da África o elevou àquele trono periclitante.
No meio do desconcerto crescente da corte, e da
angústia que oprimia a pobre alma da nação sob os agouros que a inquietam, não
havia senso e lucidez para cuidar-se do destino.
Por mais de um decênio ficaram as colônias quase
inteiramente esquecidas da sua metrópole.
No Brasil, os donatários, em luta com a versatilidade
e a desídia do governo, mais do que com a carência de recursos, deixavam tudo à
mercê dos colonos, e viviam a mendigar da própria coroa, como se aquilo fosse mesmo
uma liquidação, alguns favores em troca das capitanias doadas.
Por mais que ali se houvesse feito, São Vicente não
podia, pois, fazer exceção no meio do desânimo geral, que invadiu a maior parte
das colônias.
Refluindo, no entanto, para a marinha, não davam nem
por isso os moradores de serra acima a desejada solução aos embaraços daquele
penível momento,
E então, o salvatério de todos pareceu-lhes que só
poderia estar fora daquela terra.
Esta ilusão foi geral no país, se excetuarmos
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Inquietos e sôfregos, andavam os colonos de
umas para outras capitanias, num como pleito desvairado de fortuna.
É realmente um momento curioso aquele que vai de 1567
a 1580. Cada um começa a ver o bem-estar e a riqueza sempre fora da terra onde
está vivendo.
Primeiro tinha sido Pernambuco o alvo de todas as
ânsias. Em seguida, com a instalação do Governo Geral, foi a Bahia. Por último,
é o Rio de Janeiro que todos procuram, principalmente das capitanias do Sul.
O Dr. Salema parecia nem se aperceber da latitude do
seu cargo. Nunca foi mais que um simples governador do Rio, nada sabendo sequer
do que se passa nas outras colônias por onde se estendia a sua jurisdição.
Nada mais seria preciso para se apurar a completa
falência daquela medida (de dividir o Brasil em dois governos).
Em
1577 era ela derrogada pela carta régia de 12 de abril, sendo nomeado para o
Governo Geral, Lourenço da Veiga.
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