1 - Resolvido o problema da
índia pelo contorno da África, trata agora a coroa portuguesa de dois outros
problemas que deviam ser consequências da cautelosa política que tinha seguido
sempre: — o de entrar na posse do que, para o seu patrimônio, existisse no
Atlântico dentro da jurisdição fixada, e o de fundar na Ásia o império português.
Deixou-se D. Manuel absorver
por este último; não, no entanto, até o ponto de por inteiramente de lado o
primeiro daqueles problemas. Não tinha a expedição do Gama conseguido,
conquanto bem feliz como empresa econômica, estabelecer no Oriente a influência
portuguesa. Andavam por lá os mouros em grandes assanhes e alaridos, a criar
para os cristãos uns tantos obstáculos, que só à custa de força militar
poderiam ser vencidos.
É com esse fim que se apressa
D. Manuel a aparelhar uma poderosa frota de guerra, cujo comando se confia a
Pedro Alvares Cabral.
Compunha-se essa esquadra de
naus, caravelas, um navio de mantimentos, além de duas embarcações mercantes
que se lhe incorporaram — tudo formando o total de treze vasos.
Eram todos os capitães homens
afeitos à vida marítima, e já conhecidos por serviços que haviam prestado.
Iam também pilotos e práticos
que tinham figurado até na viagem do Gama.
Tinham ainda posto na
expedição: Pero Vaz de Caminha, que ia como escrivão da feitoria que se devia
assentar em Calicute, e que veio a ser autor da célebre carta escrita da Ilha
de Vera Cruz a D. Manuel; o mestre, ou bacharel Joanes, médico (físico) e
astrônomo, e ao qual se deve também uma carta com a indicação precisa da
situação da terra descoberta; o cronista Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de situ Orbis; oito missionários
franciscanos, tendo por guardião fr. Henrique de Coimbra; alguns padres
seculares, e um vigário para Calicute.
2 - Era a frota tripulada por
mais de 1 000 homens, "gente escolhida e bem armada"; e ia provida do
necessário para dezoito meses, tanto em armas como em munições de boca.
Ao chefe da expedição
deram-lhe instruções escritas em um regimento especial. Além disso recebeu ele
verbalmente do próprio rei, e dos mais autorizados conselheiros da coroa,
muitas recomendações reservadas, e avisos para casos que pudessem sobrevir
durante a viagem.
Desde os primeiros dias de
março (de 1500) era extraordinário o movimento em Lisboa, devido à grande afluência
de gente de todas as províncias, como acontecia sempre que se anunciava a
partida de expedições de certa importância para os mares longínquos.
Nos primeiros tempos, as
solenidades da despedida davam ensejo a cenas comoventes, como de pompa feral.
Ninguém sabia se aquela gente que parte voltaria ao carinho dos lares. De tais
temeridades contra o velho oceano não eram todos que triunfavam.
Aquele adeus podia ser o
último.
Depois, as coisas foram
mudando.
Os heróis pouco a pouco se
familiarizavam com o mar.
E então a alegria e a
esperança iam podendo mais que o terror.
Até que, desvendados de uma
vez todos os mistérios, a partida de grandes expedições passava a ser motivo de
festas para toda a população do reino.
3 - É uma de tais cenas que
alvoroça agora toda Lisboa.
No dia 8 de março, tendo à
frente o capitão-mor, saía do paço da Alcáçova a expedição, no meio de
aclamações, dirigindo-se para a margem do Tejo.
O rio simulava agora uma
floresta de mastros. As naus estavam embandeiradas, e ostentando profusão de
flâmulas de vivas cores.
Sob o troar dos vivas e o
estridor das trombetas, seguiu a gente para bordo; e não demorou que as naus
salvassem à terra, sob vasto delírio de ovações.
Pelas três da tarde,
levantavam âncoras, e desciam vagarosamente até Belém.
Na manhã seguinte, assistiam
os expedicionários à missa solene celebrada na ermida do Restelo, com a
presença do rei e de toda a corte.
Durante a cerimónia esteve o
capitão-mor ao lado de D. Manuel, na tribuna real.
Depois da missa, e do sermão
do bispo D. Diogo de Ortiz, o próprio rei entregou a Cabral uma bandeira da
ordem de Cristo, signo glorioso daquele novo heroísmo que andava assombrando o
mundo.
Ordenou-se outra vez o
cortejo, pondo-se logo em marcha para a praia, indo Cabral "a par
del-rei", à frente a bandeira conduzida pelo alferes, os frades com cruzes
alçadas cantando orações.
Chegados à praia, o
capitão-mor e todos os capitães despediram-se de D. Manuel, beijando-lhe a mão;
e seguiram para bordo, recebendo os últimos votos e manifestações de todo o
povo que enchia a praia.
4 - Saindo do Tejo, tomou a
armada rumo ao sul.
No dia 14, pela manhã,
estava-se à vista das Canárias. A calmaria ali os reteve todo o dia.
Por isso mesmo, dali em diante
começou Cabral a afastar-se quanto possível da costa africana, conforme os
avisos de Vasco da Gama.
Uma semana depois iam
reunir-se os navios no ancoradouro da ilha São Nicolau, das de Cabo Verde.
Dali prosseguiu a frota cada
vez mais pelo alto mar.
Por experiência já se sabia
que o cabo da Boa Esperança devia ser dobrado muito por fora.
Pelos meados de abril
estava-se na latitude de uns 17 graus, longe da África umas trezentas milhas.
Tomou-se, então, o rumo aberto
de leste, como à busca de ponto conhecido. E era isso mesmo o que se fazia com
segurança.
Começaram logo a ter sinais de
costa não distante.
No dia 21 acentuaram-se os
indícios.
No outro dia, 22, desenhou-se
aos olhos dos navegantes a linha de terra em certa extensão, de norte a sul.
Não demorou a destacar-se da
fita escura o relevo de um monte, a que se deu o nome de monte Pascoal.
Ali fundearam as naus,
pernoitando no local.
No dia seguinte, apenas
puderam os descobridores verificar que a terra era habitada por selvagens.
Sobrevindo mau tempo, procuraram e encontraram, no dia 24, um porto abrigado,
ao norte, suficiente para toda a esquadra.
Subiram, então, as naus até
aquele ponto, e foram ancorar junto a uns ilhéus, numa larga enseada a que se
deu o nome de Porto Seguro e agora localizada em Santa Cruz — Cabrália.
5 - No dia 26 de abril
(domingo) armou-se num dos ilhéus (o da Coroa Vermelha) um tosco altar, onde se
rezou a primeira missa em terra do Brasil.
Alguns dias depois, repetiu-se
a cerimonia com muito aparato em terra firme, no alto de uma colina, onde se
levantou uma grande cruz de madeira, à frente da qual se erigiu um altar, onde
foi celebrada a missa oficial, pregando fr. Henrique de Coimbra.
Pela primeira vez, naquelas
paragens que nasciam para a história, salvou a artilharia; enquanto Cabral
tomava posse formal da Terra, em nome do seu soberano, dando-lhe o nome de Ilha de Vera Cruz (1 de maio). Convém
que se não perca ensejo de notar como tudo se vem fazendo desde que se saíra
das Canárias.
Desce-se pelo alto mar. Em
certa altura, ruma-se para leste, quebrando a linha quase em ângulo reto.
Avista-se dentro de alguns
dias, a terra procurada.
Desembarca-se ali; celebra-se
missa; chanta-se ao lado da cruz o padrão da coroa.
E no outro dia, 2 de maio,
estava a frota de novo ao mar, agora, sim, rumo do seu destino.
Tudo isso se passa sem nenhuma
surpresa, sem um gesto de espanto e admiração, como se o que se faz é tarefa já
sabida.
Cabral comunica o fato ao rei.
Caminha escreve a D. Manuel a sua famosa missiva. Mestre Joanes também escreve
ao rei. Mas nenhum deles tem uma exclamativa, uma palavra de ufania ao menos
diante daquela fortuna.
É como se aqueles homens
dissessem ao rei que tinham desempenhado o encargo que traziam.
E para que o rei não assuste a
Europa levantando logo todo o pano, fala-se ainda em ilha, como sempre se fazia, e como sem dúvida se combinara ao sair
de Lisboa.
Se era uma ilha, como é então que, no ano seguinte,
a primeira expedição exploradora, em vez de vir à latitude de Porto Seguro, vem
ganhar terra duzentas léguas para o norte?
É que os portugueses já sabiam
que a ilha de Vera Cruz era muito grande...
6 - Antes de prosseguir na sua
derrota, fez o capitão-mor retroceder para Lisboa o capitão Gaspar de Lemos,
com a incumbência de dar ao rei notícia do descobrimento.
Por esse capitão escreveram a
D. Manuel, tanto o chefe da expedição, como Pero Vaz de Caminha e o bacharel
Joanes.
Em Lisboa não produziu a
notícia nenhuma sensação. Apressou-se apenas D. Manuel (e isso é o que queria)
a comunicar o sucesso às outras cortes, e sem grandes mostras de quem sentisse
a sua fortuna aumentada: achara-se uma ilha
que ia ser de vantagem como estação para os navegantes da Ásia...
Ainda hoje discutem-se muito
certas particularidades da obra de Cabral; como por exemplo: se foi ele o primeiro
que chegou a esta parte do novo mundo, e se teve o propósito de descobrir
terras neste lado do Atlântico.
Quanto ao primeiro ponto,
torna-se já impertinente a discussão; pois o feito do navegante português é o
único que tem autenticidade histórica.
E se a controvérsia se
ampliasse para abranger todos os aspectos da questão, é claro que a prioridade
dos portugueses encontraria fundamentos na própria obra das grandes navegações,
que eles iniciaram, e nas quais não tiveram competição de nenhum outro povo
senão depois de desvendados os caminhos.
Mesmo que se viesse a criar um
ou outro predecessor de Cabral no Brasil, a tais predecessores poderiam os
portugueses opor mais de um de navegantes seus a quem a América não era
desconhecida mesmo antes de Colombo.
Que valor podem ter, portanto,
as tais viagens de Jean Cousin, de Vicente Pinzon, de Diogo de Lepe?
7 - O outro ponto discutido é
ainda mais frágil.
Até certa época, todos os
cronistas, e até historiadores de nota, nacionais como estrangeiros, davam o
sucesso como puramente casual.
Desde os princípios do século
passado, começaram a aparecer algumas dúvidas; e em breve se foi atacando,
primeiro timidamente, e por fim com grande vigor, a velha versão, que tinha por
si uma coerência de três séculos.
Hoje pode considerar-se
inteiramente desfeita a antiga lenda da tempestade e das correntes pelágicas.
Enquanto abriam pelo sul o
caminho da Ásia, nunca deixaram os portugueses de ir devassando, ao mesmo
tempo, o Atlântico ocidental.
De Vasco da Gama por diante, o
pensamento de assegurar a posse de terras descobertas neste oceano tornou-se
obsidente para os portugueses.
Até que, discriminadas entre
as duas coroas ibéricas as zonas respectivas de domínio, puderam eles fazer o
que até então não tinham feito por não arriscar a grandeza do seu patrimônio.
Decerto que Cabral não saiu do
Tejo para descobrir o Brasil. Nem isso se conceberia, sabendo-se como sempre
andou precavida a corte de Lisboa. O que ela sempre quis, ainda quer agora,
isto é, fazer passar a descoberta do Brasil como feita por acaso.
Por isso mesmo é que, em vez
de mandar uma caravela direito à terra de Vera Cruz, incumbe a uma grande
expedição, que tinha outro destino, de vir, de passagem, achar a dita terra.
Cabral propriamente não fez
mais que um reconhecimento.
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