1 - Já vimos como não causa
grande sensação em Lisboa a notícia que levara Gaspar de Lemos.
Não só se contava com o êxito
de Cabral, como a ilusão da índia, o sonho de que vivera quase um século a
monarquia, anda incendendo toda a corte.
Sentia D. Manuel, naquele
instante, o entusiasmo da sua fortuna; e os negócios da Etiópia e da Ásia preponderavam
no ânimo daquela geração. De sorte que o que retarda agora a ação de Portugal
no Atlântico é a própria situação que a sua obra lhe criara do mundo. O seu
teatro fizera-se muito mais amplo, além de vário e descontínuo, de longínquo e
disperso. Mas ainda que todas as preocupações estivessem voltadas para a Ásia, não
era possível descurar de todo o que estivesse dentro da jurisdição que com
tanto esforço se conseguira fixar.
Nem isso se explicaria, quando
não por mais nada, pelo menos por se saber positivamente que valor tinha o
feito de Cabral, e que proporções teriam as terras descobertas neste lado do
oceano.
Além disso, os sucessos da
coroa portuguesa nos mares, e afinal os da Espanha, com a expedição de Colombo,
haviam despertado da sua incredulidade e desídia outros povos da Europa; e
seria muito natural que se apresentassem, como logo se viu, temerosos
concorrentes no Atlântico.
Era urgente, portanto, que se
fizesse um reconhecimento completo da ilha de Vera Cruz; e para isso
preparou-se uma flotilha de três navios, cujo comando se confiou ao próprio
capitão Gaspar de Lemos, que de Porto Seguro voltara a Lisboa em 1500.
E a prova de que essa
expedição viera incumbida, não apenas de verificar a extensão da nova terra,
mas de revelar tudo que se incluísse no hemisfério português segundo o tratado
de Tordesilhas está no fato que já fizemos notar, de ter vindo a primeira
flotilha exploradora alcançar terra a cerca de 10 graus para o norte de Porto
Seguro.
2 - Tanto nesta, como na
segunda expedição, tomou parte o famoso navegante Américo Vespúcio, que D.
Manuel havia chamado a seu serviço.
Parece, no entanto, que
Vespúcio, pela sua autoridade em cosmografia e em ciência náutica, andava
encarregado secretamente pelo rei de algum trabalho mais que simples exploração
da terra descoberta.
O que sobretudo suscita essa
suspeita é a circunstância de haver ele perlongado a costa como às pressas,
vendo tudo de relance, e parecendo ter sempre a atenção dirigida para a solução
de algum problema.
Seja ou não legítima esta
desconfiança, o que é certo é que Vespúcio nada fez em relação ao conhecimento
da terra; e tanto assim que D. Manuel o dispensou, ou por essa razão, ou por
não ter ele dado conta satisfatoriamente da outra tarefa.
Nesta primeira expedição não
se sabe em que condições teria vindo o piloto florentino, nem mesmo se tivesse
o comando de alguma das naus.
Partiu de Lisboa a flotilha em
maio de 1501, poucos meses, portanto, depois que lá chegara o emissário de
Cabral com o anúncio da descoberta.
Em agosto tinham os
expedicionários vista de terra a cerca de 4 ou 5 graus de latitude. Ali
desembarcaram alguns, e sentiram logo que os selvagens se mostravam
desconfiados, conquanto muito curiosos. Assim que os estrangeiros se recolheram
às naus, multidões de íncolas afluíram à praia, parecendo que desejavam
comunicar-se. Dois homens de bordo obtiveram permissão, e afoitaram-se a ir à
terra metendo-se entre aquela gente; e nunca mais foram vistos.
Alguns dias depois mandou o
capitão à terra um escaler com uns quantos homens, à busca de notícias daqueles
aventureiros. Grande número de mulheres os receberam, ficando, porém, a certa
distância da praia, suspeitosas, mas dando mostras de quererem entrar em
relações com os hóspedes.
Um rapaz taludo e destemido
não hesitou em ir para o meio delas. Maravilhadas o examinavam, quando de
outeiro próximo vem, armada de clava, outra mulher, e de um golpe, à traição,
prostrou morto o mancebo incauto.
Enquanto as mulheres conduziam
o cadáver para o bosque vizinho, uma porção de flechas se lançavam contra os do
batel, ainda na praia.
3 - Este caso é realmente
estranho, como a alguns autores parece, por singular nos primeiros tempos. Mas
a parte da costa, onde se deu, já estava ocupada por aquele gentio que depois
se tornou famoso pela repulsa heroica aos colonizadores: os potiguares. Ainda
assim, não se sabe se aquele seria o primeiro encontro do bárbaro com o europeu,
como bem pondera um dos nossos historiadores.
Desenganado de encontrar por
ali da mesma gente que recebera os portugueses em Porto Seguro, levantou ferros
a esquadrilha, e continuou a navegar à vista da costa, rumo sueste.
No dia 16 de agosto dobrava o
cabo a que se deu o nome de São Roque. E veio descendo, sem arriscar-se demais
a tentativas de entendimento com os naturais.
Como se tivesse à vista um
calendário, ia o capitão dando o nome do santo do dia aos acidentes da costa
que mais se destacavam: cabo de Santo Agostinho (28 de agosto); rio São Miguel,
rio São Jerônimo (29 e 30 de setembro); rio São Francisco (4 de outubro); baía
de Todos os Santos (1 de novembro); rio de Santa Luzia (13 de dezembro); cabo
São Tomé (21 do mesmo mês); rio de Janeiro (1 de janeiro de 1502); angra dos
Reis (6 de janeiro) ; ilha de São Vicente (22 de janeiro).
Do cabo de Santo Agostinho em
diante é que se fizeram mais frequentes visitas a paragens da costa, descendo à
terra mais confiantes os próprios capitães, à medida que encontravam menos
hostis os selvagens.
Chegara a expedição em
fevereiro à latitude de 32 graus, nas vizinhanças do cabo Santa Maria. Ali assumiu
Vespúcio o comando da flotilha, e fez provisões para longa viagem, conservando,
porém, o seu intento em segredo.
Afastou-se, então, da terra
tomando rumo sueste, e descendo além dos 50 graus. Dali teve de voltar para o
norte; e alcançando a costa africana, foi em setembro (1502) chegar a Lisboa.
Esta expedição, que não se
pode mais contestar, prestou o grande serviço de verificar a extensão da terra,
e de fazer boa parte da nomenclatura do litoral.
4 - Por menos que tivesse
feito esta primeira expedição relativamente ao conhecimento do país, fizera o
bastante para autorizar uma tentativa no sentido de descobrir pelo extremo sul
uma passagem para as índias.
Viria, no entanto, a segunda
expedição ainda como exploradora, dissimulando assim o seu intuito principal,
ao mesmo tempo que conseguisse adiantar alguma coisa quanto à terra descoberta.
O que confirma plenamente esta
versão é o fato bem significativo da indiferença em que caiu a metrópole em
seguida ao novo esforço tentado. Saíra do Tejo a frota de Gonçalo Coelho em julho
de 1503. Comandava-lhe um dos seis navios o mesmo Américo Vespúcio, que era o mais
afanoso em assegurar ao rei a possibilidade de ir à Ásia pelo poente. Logo que
se fizeram ao mar, entraram em desavenças Coelho e Vespúcio. Este é o primeiro
a voltar para o reino, sem haver descido sequer até o porto da costa onde já
estivera, e dando logo como perdido o chefe da expedição. Gonçalo Coelho,
abandonado de Vespúcio, depois de visitar várias paragens da costa talvez até o
rio que mais tarde se chamou da Prata, retrocedeu até à baía do Rio de Janeiro,
onde esteve cerca de dois anos. Daqui regressou em 1506 para Lisboa.
Frustrara-se ainda uma vez
aquele intento, para o qual não mostrou Vespúcio as qualidades de Colombo.
Desiludido, dispensou D.
Manuel os serviços do piloto florentino; e tão escarmentado ficou das
desilusões que nunca mais deu ouvidos a quantos "visionários"
insistiam na inculca de semelhante projeto. Já para os fins do seu reinado,
ainda fez com Fernão de Magalhães o que fizera D. João II com Cristóvão
Colombo.
Afinal, com os insucessos de
Vespúcio não perdera a coroa portuguesa mais que a prioridade da navegação do
Pacífico e a glória da primeira volta ao globo: pois o tal caminho da índia
pelo ocidente nada ofereceu de mais vantajoso que o aberto já pelo Gama
contornando a África.
5 - Depois do insucesso da
segunda expedição, limitou-se o governo de Lisboa a manter capitães de vigia
nos mares litóreos, e a deixar que se fizesse o tráfico pela costa, fechando os
olhos a tudo que não revelasse intento de fixação no país, e até estimulando os
próprios súditos a concorrer com os contrabandistas, concedendo-lhes favores
convidativos.
É assim que ao lado de
intrusos se encontravam, nos primeiros tempos, traficantes do reino em perfeito
convívio, auxiliando-se mutuamente.
Desde 1503 pelo menos (e até
desde a expedição de Cabral) havia em certos pontos da costa aventureiros
portugueses vivendo entre os índios.
Explica-se deste modo a
circunstância de haverem todas as expedições subsequentes a 1515 encontrado
europeus em vários sítios do litoral primeiro conhecido.
Cabo Frio, por exemplo. São
Vicente, Bahia (e talvez alguma outra enseada) tornaram-se estações certas dos
navegantes; e por aí tinham sempre os capitães muito cuidado em não facilitar o
desembarque do pessoal de bordo, para evitar as deserções a que de terra se
induzia a marinhagem.
Também os aventureiros que
viviam aqui quase todos explicavam a sua presença entre os selvagens dizendo-se
vítimas de naufrágios: o que, na maioria dos casos, era natural, pelo temor dos
castigos em que haviam incorrido pela deserção.
6 - Teria sido mesmo de plano
assentado que D. Manuel começou assim, procurando tirar proveito do espírito de
aventura, só garantindo a posse da terra, e pondo tudo o mais à mercê de
especuladores, a quem desse modo entregava a difícil tarefa daquele primeiro
encontro com uma natureza desconhecida.
Para entender-se bem essa
política, é preciso não perder de vista umas tantas circunstâncias daquele
momento, e sobretudo o que se dizia do país descoberto, principalmente depois
que se divulgou a notícia dos horrores praticados pelos índios contra os
primeiros visitantes da costa.
O que era natural, pois, é
que, assegurada a posse da terra, todo o empenho da coroa estivesse em contar
com gente que se incumbisse de desbravá-la. E nem D. Manuel disfarçou esse
intuito quando foi até fazer da terra um valhacouto de criminosos e bandidos.
É por isso que se exagera
talvez o pouco interesse com que o monarca venturoso cuidou da ilha de Vera
Cruz, mesmo depois que ela crescera até fazer-se um continente. O fato de não
haver D. Manuel juntado, aos seus títulos, o de senhor da nova terra, parece
ainda estar indicando a pouca importância que o rei ligara ao feito de Cabral.
De fato, quem se fizera logo senhor da Guiné não se lembrou de ser também
senhor da Santa Cruz, ou do Brasil.
Sem embargo de tudo isso, hoje
não seria mais possível contestar que se conservou sempre aqui um ou alguns
navios de guarda da costa; e que, portanto, a desídia em iniciar a conquista e
o povoamento era menos desinteresse pela terra, que expediente, o único que era
possível naqueles dias, a embaraços cuja solução era preciso deferir sem
sacrificar a causa da monarquia.
7 - O próprio D. Manuel teve
por fim de ir mudando de orientação relativamente à parte americana do seu
vasto patrimônio, e de ir fazendo alguma coisa mais que estimular o espírito de
ganho e de aventura com as concessões que fazia aos traficantes.
Está averiguado que em 1516
ordenara ele "por alvará, ao feitor e oficiais da Casa da índia (a nova
repartição por onde corriam os negócios do ultramar) que dessem machados e
enxadas e toda a ferramenta às pessoas que forem povoar o Brasil". Logo
depois, por outro alvará, ordenara aos mesmos funcionários que
"procurassem e elegessem um homem prático e capaz de ir ao Brasil para dar
princípio a um engenho de açúcar; e que se lhe desse sua ajuda de custo, e
também todo o cobre e ferro e mais coisas necessárias para a fatura do dito
engenho".
Sente-se que em relação à
América vai entrando em aflições a corte portuguesa. Os vigias da costa já não
podiam conter a especulação, que tomava cada dia proporções inquietantes. Nem
mesmo, em competição com ela, as poucas " pessoas que se dispunham a povoar"
uma terra bravia e desconhecida, se animariam a aproveitá-la.
Por sua parte multiplicam-se
os entrelopos e fortalecem-se, constituindo-se em associações poderosas, e
tornando-se assim graves empecilhos para o futuro, quando a metrópole quisesse
colonizar o país.
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