3/24/2018

Castro Alves por José de Alencar e Machado de Assis (Cartas)



Castro Alves por José de Alencar e machado de Assis


(Carta do excelentíssimo Sr. Conselheiro José de Alencar ao ilustríssimo Sr. Machado de Assis)

Ilmo. Sr. Machado de Assis.
Tijuca, 18 do fevereiro de 1868.
Recebi ontem a visita de um poeta.
O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto.
O Sr. Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a São Paulo concluir o curso que encetou em Olinda.
Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros.
Podia acrescentar que é filho de um médico ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema. E que pergaminhos valem estes selados por Deus?
O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um dos pontífices da tribuna brasileira. Digo pontífice, porque nos caracteres dessa têmpera o talento é uma religião, a palavra um sacerdócio.
Que júbilo para mim! Receber Cícero que vinha apresentar Horácio, a eloquência conduzindo pela mão a poesia, uma glória esplêndida mostrando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora!
Mas também quanto, nesse instante, deplorei minha pobreza, que não permitia dar a tão caros hóspedes régio agasalho. Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os poetas-oradores, para preparar esse banquete da inteligência.
Se, ao menos, tivesse nesse momento junto de mim a plêiade rica de jovens escritores, à qual pertencem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocaiúva, Múzio, Joaquim Serra, Varela, Rozendo Moniz, e tantos outros!...
Entre estes, por que não lembrarei o nome de Leonel de Alencar, a quem o destino fez ave de arribação na terra natal? Em literatura não há suspeições: todos nós, que nascemos em seu regaço, não somos da mesma família?
Mas a todos o vento da contrariedade os tem desfolhado por aí, como flores de uma breve primavera.
Um fez da pena espada para defender a pátria. Alguns têm as asas crestadas pela indiferença; outros, como douradas borboletas, presas da teia de aranha, se debatem contra a realidade de uma profissão que lhes tolhe o voo.
Felizmente estava eu na Tijuca.
O senhor conhece esta montanha encantadora. A natureza a colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão.
Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu azul.
Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade do berço.
Elevando-se a estas eminências, o homem aproxima-se de Deus. A Tijuca é um escabelo entre o pântano e a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por este genuflexório, para se prostrar aos pés do Onipotente, conta três degraus; em cada um deles, uma contrição.
No alto da Boa Vista, quando se descortina longe, serpejando pela várzea, a grande cidade réptil, onde as paixões pululam, a alma que se havia atrofiado no foco do materialismo, sente-se homem. Embaixo era uma ambição; em cima contemplação.
Transposto esse primeiro estádio, além, para as bandas da Gávea, há um lugar que chamam Vista Chinesa. Este nome lembra-lhe naturalmente um sonho oriental, pintado em papel de arroz. É uma tela sublime, uma decoração magnífica deste inimitável cenário fluminense. Dir-se-ia que Deus entregou a algum de seus arcanjos o pincel de Apeles, e mandou-lhe encher aquele pano de horizonte. Então o homem sente-se religioso.
Finalmente, chega-se ao Pico da Tijuca, o ponto culminante da serra, que fica do lado oposto. Daí os olhos deslumbrados veem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dois oceanos, o oceano do mar e o oceano do éter. Parece que estes dois infinitos, o abismo e o céu, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio dessas imensidades, um átomo, mas um átomo-rei, de tanta magnitude. Aí o ímpio é cristão e adora o Deus verdadeiro.
Quando a alma desce destas alturas e volve ao pá da civilização, leva consigo uns pensamentos sublimes, que do mais baixo remontam à sua nascença, pela mesma lei que faz subir ao nível primitivo a água derivada do topo da terra.
Nestas paragens não podia meu hóspede sofrer jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse à natureza que pusesse a mesa, e enchesse as ânforas das cascatas de linfa mais deliciosa que o falerno do velho Horácio.
A Tijuca esmerou-se na hospitalidade. Ela sabia que o jovem escritor vinha do Norte, onde a natureza tropical se espaneja em lagos de luz diáfana, e, orvalhada de esplendores, abandona-se lasciva como uma odalisca às carícias do poeta.
Então a natureza fluminense, que também, quando quer, tem daquelas impudências celestes, fez-se casta e vendou-se com as alvas roupagens de nuvens. A chuva a borrifou de aljôfares; as névoas resvalavam pelas encostas como as fímbrias da branca túnica roçagante de uma virgem cristã.
Foi assim, a sorrir entre os nítidos véus, com um recato de donzela, que a Tijuca recebeu nosso poeta.
O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outrora escrevera para o teatro. Avaliando sobre medida minha experiência neste ramo difícil da literatura, desejou ler-me um drama, primícia de seu talento.
Essa produção já passou pelas provas públicas em cena competente para julgá-la. A Bahia aplaudiu com júbilos de mãe a ascensão da nova estrela de seu firmamento. Depois de tão brilhante manifestação, duvidar de si, não é modéstia unicamente, é respeito à santidade de sua missão de poeta.
Gonzaga é o título do drama que lemos em breves horas. O assunto, colhido na tentativa revolucionária de Minas, grande manancial de poesia histórica ainda tão pouco explorado, foi enriquecido pelo autor com episódios de vivo interesse.
O Sr. Castro Alves é um discípulo de Vítor Hugo, na arquitetura do drama, como no colorido da ideia. O poema pertence à mesma escola do ideal; o estilo tem os mesmos toques brilhantes.
Imitar Vítor Hugo só é dado às inteligências de primor. O Ticiano da literatura possui uma palheta que em mão de colorista medíocre mal produz borrões. Os moldes ousados de sua frase são como os de Benvenuto Cellini; se o metal não for de superior afinação, em vez de estátuas saem pastichos.
Não obstante, sob essa imitação de um modelo sublime desponta no drama a inspiração original, que mais tarde há de formar a individualidade literária do autor. Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos.
Não se admire de assimilar eu o cidadão e o poeta, duas entidades que no espírito de muitos andam inteiramente desencontradas. O cidadão é o poeta do direito e da justiça; o poeta é o cidadão do belo e da arte.
Há no drama Gonzaga exuberância de poesia. Mas deste defeito a culpa não foi do escritor; foi da idade. Que poeta aos vinte anos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se derrama sobre a natureza e a inunda?
A mocidade é uma sublime impaciência. Diante dela a vida se dilata, e parece-lhe que não tem para vivê-la mais que um instante. Põe os lábios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de poesia, de glória, e quisera estancá-la de um sorvo.
A sobriedade vem com os anos; é virtude do talento viril. Mais entrado na vida, o homem aprende a poupar sua alma. Um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou convencido que ele há de achar um drama esboçado, em cada personagem desse drama.
Olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões.
— Maria, achando em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angústia, parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A ação, dirigida uma ou outra vez pelo acidente material, antes do que pela revolução íntima do coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna.
Mas são esses defeitos da obra, ou do espírito em que ela se reflete? Muitas vezes já não surpreendeu seu pensamento a fazer a crítica de uma flor, de uma estrela, de uma aurora? Se o deixasse, creia que ele se lançaria a corrigir o trabalho do supremo artista. Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma individualidade.
Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves recitou-me algumas poesias. A Cascata de Paulo Afonso, As Duas Ilhas e A Visão dos Mortos não cedem às excelências da língua portuguesa neste gênero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo desse metro natural, dessa rima suave e opulenta.
Nesta capital da Civilização brasileira, que o é também de nossa indiferença, pouco apreço tem o verdadeiro mérito quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia. Não lhe parece?
Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o jornalismo, a sociedade, para que a flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade.
Para Virgílio do jovem Dante nesse ínvio caminho da vida literária, lembrei-me do senhor. Sobram-lhe os títulos. Para apresentar ao público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter foro de cidade na imprensa da corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera seu cantor.

Seu melhor título, porém, é outro. O Sr. foi o único dó nossos modernos escritores que se dedicou à cultura dessa difícil ciência, que se chama crítica. Uma porção do talento que recebeu da natureza, em vez de aproveita-lo em criações próprias, não duvidou aplicá-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria.

JOSÉ DE ALENCAR
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1868. 

✤✤✤

(Carta do ilustríssimo Sr. Machado de Assis, em resposta, ao excelentíssimo Sr. Conselheiro José de Alencar)
Rio de Janeiro, 29 de Fevereiro de 1868.

Exmo. Sr. — É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de vossa excelência, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz introito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre.
Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fera dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de vossa excelência mais do que uma animação generosa.
A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloquente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido.
Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela ideia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como vossa excelência, sabem exprimir sentimentos e ideias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal.
Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende vossa excelência que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade: chama-se antipatia o que é consciência. Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também.
Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias?
Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas: tal é, porém, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel; contudo, entendia e entendo — adotando a bela definição do poeta que vossa excelência dá em sua carta — que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras.
Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estreias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a vossa excelência?
Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de vossa excelência não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito.
Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos.
Não tive, como vossa excelência, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que vossa excelência chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano, em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.
No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão.
Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.
Vossa excelência já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta.
Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista — no dizer, nas ideias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.
Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas ideias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito, não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.
O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada página do volume.
O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.
Esta exuberância que vossa excelência com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje.
Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washingtons. Condenou-os a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.
Condensar estas ideias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não se pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como vossa excelência, conhecem esta aliança, hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.
A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendários amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o seu nome ligado ao da tentativa de Minas.
Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance, casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horácio corneiliano: entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.
O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta.
Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a ideia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento.
Concordo que a ação parece às vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça.
O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação, ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento juvenil, mas que é com certeza uma invejável estreia.
Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê vossa excelência que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui à figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a ideia da abolição. Luís representa o elemento escravo Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem.
Cumpre mencionar outras situações igualmente belas. Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que vossa excelência aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnâncias para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.
As cenas amorosas são escritas com paixão: as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes!
Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais — duas ou três imagens que me não parecem felizes: e uma ou outra locução suscetível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las: mas como não aceitar agradecido esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã?
Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.
Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a mão na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas.
O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de vossa excelência. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e vossa excelência. o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim.
Quanto a vossa excelência, respirando nos degraus da nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem vossa excelência um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.
MACHADO DE ASSIS
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 1 de março de 1868.

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