Castro Alves: O poeta da liberdade
Artigo publicado na revista "Ilustração Brasileira", em edição de 1947. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Castro Alves encarnou o espírito de
liberdade do século XIX. O Brasil apresentava à contemplação do mundo, dentro
da moldura maravilhosa das suas montanhas e das suas florestas, o cenário
hediondo das senzalas. A alma do poeta baiano sentiu a dor e a tortura de uma
raça que trazia sobre a fronte a infinita renúncia das aspirações e das ânsias
que revelam no homem a essência da divindade, e a sua submissão silenciosa ao
látego e à ignomínia. O poeta compreendeu tudo isso. Mas, dentro do coração do
negro cativo, ele sabia existir a semente da rebeldia para a vingança e o
castigo, em busca da liberdade.
Os sofrimentos, as angústias, as
lágrimas amontoadas, entre aparentes resignações e ódios ocultos, preparavam
lentamente o caminho para o dia da redenção. O poeta foi atraído para a raça
infeliz. Com ela chorou o mesmo pranto e fez da sua alma a alma irmã do negro.
A sua mocidade, cheia de beleza e de vida, transformou-a numa força impetuosa.
Desencadeou sobre a terra brasileira o tropel de uma luta que só cessaria com
os clangores da vitória. O ideal de Castro Alves estava destinado a marcar uma
das épocas mais intensamente ligadas ao problema da formação histórica da nossa
pátria. Esse ideal tinha, além de tudo, o cunho de uma solidariedade humana que
não conhecia limites dentro das fronteiras do pensamento universal. Era o ideal
que vinha de Deus, porque se iluminava das auroras e não mergulhava nas sombras
dos crepúsculos.
Os versos de Castro Alves foram, a bem
dizer, o início da revolução abolicionista, da mais bela revolução que já se
processou no Brasil, porque todos os seus combates se verificaram no terreno
dos debates e das ideias e todas as suas conquistas, até o último dia,
assinalaram êxitos memoráveis da tenacidade, da bravura, da persistência, da sinceridade,
dos que nela se empenharam. Não houve ministérios, não houve parlamentos, nem
força alguma que esmagasse o ideal abolicionista, porque o ideal, quando é
nobre e humano, resiste às intempéries, aos ódios e às paixões. Acima da
miséria social, acima dos egoísmos vulgares, acima da melancolia da
passividade, o abolicionismo pairou como uma grande bandeira de reivindicações.
O poeta baiano não tirou os olhos
daquela bandeira. Na rebeldia e nos arroubos dos seus versos e dos seus poemas,
Castro Alves escreveu o prefácio de uma grande obra. O poeta fez de cada um dos
seus versos uma arma formidável. Eles tinham, vestidos pela música e pelo
ritmo, alguma coisa de proféticos. Tinham os gritos dos negros escravizados, as
lágrimas das mães despojadas dos filhos, o desespero das mulheres arrancadas
aos braços do companheiro amigo, das virgens sacrificadas à brutalidade erótica
dos senhores. Mas, tinham, também, a voz terrível do futuro, anunciando a hora
do ajuste de contas. Todo aquele cortejo de dores, toda aquela fisionomia
agonizante da raça infeliz, passam pelos versos lampejantes de Castro Alves.
Castro Alves foi bem o poeta do
Brasil. Nos seus versos além do sentimento generoso que o colocou na defesa dos
negros, existe, também, o reflexo de todas as grandezas da pátria, a música
bárbara das nossas florestas, o eco estrondoso das nossas cachoeiras, a
imponência dos nossos rios cortando o ventre da terra, a glória dos nossos
heróis e dos nossos mártires. Já o comparam a “uma árvore solitária e altíssima,
sensível aos ventos de todas as direções, desde os do mar, ásperos e violentos,
aos das montanhas e das selvas, carregados de cheiros agrestes." O Brasil
não poderia ter poeta mais representativo da sua grandeza. Até nas
extravagâncias das suas imagens e na incorreção de muitos dos seus poemas, ele
é bem o retrato da terra em formação, desordenada nos seus contornos
geográficos, maravilhosa nos seus cenários, inacabada nos seus anseios de
justiça e de liberdade. Por isso, o poeta se projetou, resistindo à ação do
tempo e à crítica demolidora dos iconoclastas. A sua fisionomia ficou gravada
nos versos que escreveu, que são, em suma, a fisionomia da pátria em busca dos
seus verdadeiros destinos. Versos imortais que palpitam de amor, de
sofrimentos, de glórias, de queixumes, de esperanças e de fé.
Rui Barbosa, em célebre conferência
que pronunciou sobre o poeta de Vozes d'África, disse: “Eis a obra de
Castro Alves. A sua obra é a sua vida. A mão da morte apagou-a dentre nós; mas
a glória restituiu-a ao horizonte, como a estrela da manhã, ao cativeiro. Doa
como doer aos dissecadores de gênios, o nome dele há de ligar-se indelevelmente
a uma das fases mais decisivas da história nacional e a sua poesia é bela,
dessa beleza indefinível, ante a qual a alma não enumera, não esquadrinha:
comove-se, quando não ajoelha. É bela perché é bela." Do mesmo Rui
são estas palavras: “Mas a sua musa não é somente a da natureza e do amor, é
também, e sobretudo, a do heroísmo, a do direito e a da glória."
José de Alencar escrevia: “Palpita na
obra de Castro Alves poderoso sentimento de nacionalidade, essa alma da pátria
que fez os grandes poetas." Joaquim Nabuco: “Castro Alves foi uma
inspiração elevada e uma imaginação nobre; seu maior título de glória é o de
ter posto seu talento ao serviço da causa emancipadora da liberdade da pátria.”
José Veríssimo: “Há em Vozes d'África e ainda no Navio Negreiro,
mais do que a ênfase ou a retórica, eloquência dos melhores quilates, profundo
sentimento poético, emoção sincera, e, sobretudo, no primeiro, uma formosa
idealização artística da situação do continente maldito e das reivindicações
que o nosso ideal humano lhe atribuía." Manoel Bonfim: “Último dos
românticos, ele resiste melhor do que os outros nossos líricos à moléstia — da
agonia incerta — em que se consumiu a portentosa escola da renovação
literária... Patente em Álvares de Azevedo, essa agonia incerta não pôde
atingir Castro Alves. Com uma imaginação bem coerente e sensível, regenerada
por ideal próprio em formas maleáveis e potentes, o seu lirismo se desenvolve
numa associação perfeitamente equilibrada — transes afetivos, interesses
humanos e desdobrar de imagens." Sílvio Romero: “Ele foi o porta voz, a
expressão grandíloqua da consciência da pátria."
Castro Alves foi, sem dúvida, um
bandeirante do amor, da justiça, da bondade, visando o bem coletivo da
humanidade. Nada no poeta é falso ou artificial. As suas imagens, a sua paixão,
o seu entusiasmo eram frutos das ideias e poucos são no Brasil os poetas que,
como ele, souberam cantar e defender a mais bela de todas as vocações humanas:
a vocação da liberdade.
Castro Alves, o lírico que escreveu Hebreia,
O Laço de Fita, Os Três Amores e Dalila, poderia não subir
aos altares do culto nacional. Mas o gênio que compôs Vozes d'África e O
Navio Negreiro, esse haveria de ficar, como ficou, na altura a que se
elevam os deuses.
AMARILHO PALHA
“Ilustração
Brasileira”, março de 1947.
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