A
inspiração lhe acende o verso
Tendo
por musa o Amor e a Natureza...
Castro Alves
Natureza,
eu voltei, e eu sou teu filho!
Castro Alves
Um dia, Castro Alves se quis definir
através de uma citação de Henrique Heine; foi na epígrafe da Cachoeira de Paulo Afonso: "a
poesia, seja qual for o meu amor por ela, foi sempre para mim apenas um meio,
consagrado a um santo objetivo... Nunca dei grande apreço à glória dos meus
poemas; pouco me importa que os louvem ou censurem... O que eu fui, foi um
bravo soldado na guerra de emancipação da humanidade". Assim ele pensava,
assim o acreditavam os seus contemporâneos, assim até agora insistem em o
julgar a maioria dos sufrágios de seus admiradores e até o maior número dos seus
críticos e apologistas. Mas o mundo anda, as causas sociais passam, enquanto o
sentimento subsiste e se os Châtiments de Hugo quase já não são lidos, de Heine
o que se lerá sempre será o Intermezzo.
Aqui a campanha da Abolição teria em
71 o seu primeiro triunfo, que ele previra, suplicando,
Senhor
Deus, dá que a boca da inocência
Possa
ao menos sorrir
Como
a flor da granada abrindo as pétalas
Da
alvorada ao surgir.
para conseguir todo e definitivo em
88, como confiara
Moços,
creiamos, não tarda
A
aurora da Redenção!
No ano imediato alcançaria o Brasil a
primeira e alta reforma que lhe permitiria todas as outras:
República,
voo ousado
Do
homem feito condor!
Se vivesse ate nós, Castro Alves teria
encerrado o seu apostolado, deposto as armas, e em vez de "trompa
bronzeada" com que lhe imaginou a musa Raimundo Correia, tomaria a divina
lira só afinada para os cantos ternos e íntimos, comovidos e comunicativos que
ele tantas vezes entoara e que no seu entusiástico clangor e na sua fúria
sonorosa abafaram as odes revolucionárias e os poemas sociais.
Não viveu, mas, passando o tempo,
trabalhou por ele, e quando em nossa lembrança desmereceu a emoção daqueles
combates, foi da memória emergindo a comoção mais profunda e duradoura do outro
poeta que ele era, e Castro Alves nos aparece agora ainda maior, porque é o
nosso maior lírico, o nosso grande lírico da natureza e do amor. Não quero,
porém, que me acrediteis sem provas; haveis-vos de convencer, ouvindo,
afinadas, todas as cordas do seu lirismo, sem par no Brasil.
Foi Castro Alves religioso, de um
deísmo liberal, como o que o Século XVIII legara ao XIX, entre a negação
científica, que se pronunciava neste, e a reação ultramontana que lhe fez face
e continuava a reação católica:
Nos
lábios dos horizontes
Há
um riso de luz. É Deus.
Dessa imagem graciosa ele passa a
outra, mais atrevida: Deus é animador e fecundante da própria obra :
Deus
fala, quando a turba está quieta
Às
campinas em flor
Noivo
— Ele espera que os convivas saiam,
E
n'alcova onde as lâmpadas desmaiam
Então
murmura — amor!
ou, se é preciso, ainda
antropomorfizado, é um filósofo ou sociólogo progressista, animador à energia:
Trabalhar!
brada nas sombras
A
voz imensa de Deus
Braços,
voltai-vos p'ra terra
Frontes,
voltai-vos p'ra os céus...
sem os medíocres ciúmes de sua própria
obra, como nos faz crer a moral dos homens:
Deus
não corta a roseira porque medra...
entretanto que tudo predetermina, nuns
fatalismo evolucionista, sem exceção:
...Na
terra tudo vai... gravita
Lá
para o ponto que lhe marca Deus:
Os
raios tombam, as estrelas sobem,
Lutar
com a sorte — é combater os céus...
A sua religiosidade governada pela
imaginação, como das ideias de Hugo disse Renouvier, assume um aspecto
grandioso, como se a natureza inteira rezasse louvor ou penitência ao seu
Criador:
Na
hora em que a terra dorme
Enrolada
um frios véus,
Eu
ouço uma reza enorme
Enchendo
o abismo dos céus
Nos
boqueirões há soluços...
Tem
remorso o vendaval...
O
mar se atira de bruços
Com
a barba pelo areal
As
nuvens ajoelhadas
Nos
claustros ermos e vãos
Passam
as contas douradas
Das
estrelas pelas mãos...
Há
luzes fosforescentes
Acesas
pelos marnéis
São
as larvas penitentes
Rezando
pelos fiéis.
Monstro
e anjo a noite agrupa
No
pedestal da oração...
Quem
sabe se a catadupa
Bate
nos peitos do chão?
Reza
tudo que tem boca
Cheio
de graça ou terror
O
ninho — junto da toca
Ao
pé da cratera a flor!
Só,
enquanto a reza enorme
Reboa
pela amplidão
Como
Loth... — o homem dorme
No
colo da criação!
Desse "panteísmo", que
testemunha entretanto, paradoxalmente, de um só Deus, há um sublime poema em
versos difíceis, O Vidente, que é a
mais formosa poesia religiosa escrita no Brasil:
Ouço
os astros cantar no mar do firmamento;
No
mar das matas virgens — ouço cantar os ventos
Aromas
que se elevam, raios de luz que descem,
Estrelas
que despontam, gritos que se esvaecem
Tudo
me traz um canto de imensa poesia
Como
a primícia santa da grande profecia;
Tudo
me diz que o Eterno na idade prometida,
Há
de beijar na face à terra arrependida.
E
desse beijo santo, desse ósculo sublime
Que
lava a iniquidade, a escravidão, e o crime,
Hão
de surgir virentes nos campos das idades,
Amores
e esperanças, glórias e liberdades.
Então,
no êxtase santo, escuto a terra e os céus.
E
o vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus!
Hugo e Junqueiro, só eles alcançariam
tamanha altura de inspiração religiosa; Lamartine ou Antero de Quental se
honrariam em assinar aqueles versos, Pelas sombras, dos mais belos poemas das Espumas Flutuantes, em que o poeta volve
à condição desamparada, do homem sem a fé, tateando na escuridão:
Senhor!
Um facho ao menos empresta ao caminhante
A
treva me assoberba... Oh Deus! dá-me um clarão!
E
uma voz respondeu nas sombras triunfante
Acende,
ó Viajor! — o facho da Razão!
Senhor!
ao pé do lar, na quietação, na calma
Pode
a flama subir brilhante, loura, eterna
Mas
quando os vendavais rugindo, passam n'alma,
Quem
pode resguardar a trêmula lanterna?
Torcida...
desgrenhada aos dedos da lufada
Bateu-me
contra o rosto... e se abismou na treva
Eu
via-a vacilar... e minha mão queimada
A
lâmpada sem luz embalde ao raio eleva.
Quem
fez a gruta — escura, o pirilampo cria!
Que
fez a noite — azul, inventa a estrela clara!
Na
frente do oceano — ascende uma ardentia!
Com
o floco do Santelmo — a tempestade aclara!
Mas
ai! Que a treva interna — a dúvida constante
Deixaste
assoberbar-me essa funda escuridão!
E
uma Voz respondeu nas sombras triunfante,
"Acende
ó Viajor! — a Fé no Coração!
A razão materialista fará luzes que
acendam claridades à treva exterior no caminho do homem, no mundo... "mas
ai! a treva interna — a dúvida constante", quem a pudera expungir, para
alentar o caminhante da vida, na confiança e na certeza, para viver?
"Acende
ó Viajor! — a Fé no Coração!"
Se à Igreja negou o poder temporal, e
antes de 70, foi para desejar-lhe o retorno à tradição cristã, onipotente
porque sem poder oficial, rica dos pobres que acolhia:
Quebre-se
o cetro do Papa
Faça-se
dele uma cruz.
A
púrpura sirva aos pobres
P'ra
cobrir os ombros nus.
mas não lhe negou nunca a missão
divina das almas pela civilização cristã da catequese. Outro de seus poemas,
épico pelo heroísmo de tom e das ideias é esse d'Os Jesuítas:
Homens
de ferro! Mal na vaga fria
Colombo
ou Gama um trilho descobria
Do
mar nos escarcéus,
Um
padre atravessava os equadores,
Dizendo:
"Gênios! Sois os batedores
Da
matilha de Deus!"
Depois
as solidões surpresas viam
Esses
homens inermes, que surgiam
Pela
primeira vez.
E
a onça recuando s'esgueirava
Julgando
o crucifixo... alguma clava
Invencível
talvez!
O
martírio, o deserto, o cardo, o espinho
A
pedra, a serpe do sertão maninho
A
fome, o frio, a dor,
Os
insetos, os rios, as lianas,
Chuvas,
miasmas, setas e savanas
Horror
e mais horror...
Nada
turbava aquelas frontes calmas,
Nada
curvava aquelas grandes almas
Voltadas
p'ra amplidão.
No
entanto elas só tinham na jornada
Por
couraça — a sotaina esfarrapada...
E
uma cruz — por bardão.
..........................................
Grandes
homens! Apóstolos heroicos
Eles
diziam mais do que os estoicos;
Dor
— tu és um prazer!
Grelha,
— és um leito! Brasa — és uma gema,
Cravo,
— és um cetro! Chama — um diadema
Ó
morte — és um viver!
Outras
vezes no eterno itinerário
O
sol que vira um dia no Calvário
Do
Cristo a Santa Cruz,
Enfiava
de vir achar nos Andes
A
mesma cruz, abrindo os braços grandes
Aos
índios rubros, nus.
Eram
eles que o Verbo de Messias
Pregavam
desde o vale às serranias,
Do
Polo ao Equador...
E
o Niágara ia contar aos mares...
E
o Chimborazo arremessava aos ares
O
nome do Senhor!
Não terá sido das mais singulares
adivinhações de Castro Alves, ele que fez tantas profecias, como vate e
vidente, que era, que a dessa imagem, quarenta anos depois dele feita uma
concreta realidade, entre dois mares, aproximando dois mundos para que de
outros climas e de todas as crenças venham homens achar nas terras da América
...nos Andes
A
mesma cruz abrindo os braços grandes...
Para Cristo só achou Castro Alves na
terra um pedestal, e a posteridade lhe ratificou a escolha, dando à sua imagem
a representação adequada — Cristo nos Andes!
Essas imagens, de alcance moral tão
surpreendente, têm, vezes sem conta, tal grandeza na eloquência desmedida e
entretanto perfeita, que me acode chamar a esse de Castro Alves — lirismo
cósmico.
São mais que "palavras
equestres", como as de Ésquilo, são imagens-meteoros, são comparações
siderais, são metáforas-relâmpagos, que resumem céus, mundos, auroras,
vendavais, luares ou crepúsculos, em alguns termos breves, exatos e felizes:
Calcinado
aos relâmpagos da glória...
........................................
O
pensamento indômito, arrojado
Galopa
no sertão.
........................................
...com
o sol — pena de ouro — eu escrevia
Nas
lâminas do céu.
A amplidão celeste, essa
"amplidão", e esse "infinito" de que tanto ele abusou, é
Cúpula
imensa de um sepulcro enorme...
........................................
Desperta
o infinito... Co'a boca entreaberta
Respira
a borrasca do largo pulmão.
.............................................
E
tinha nos olhos fulgor de meteoros
Um
céu de procela no escuro cabelo.
.............................................
E
o mar — corcel que espuma ao látego do vento...
.............................................
Vagas!
Dalilas pérfidas
Moças,
que abris um túmulo,
Quando
de amor no cúmulo
Fingis
nos abraçar.
.............................................
Morreste...
E ao teu saimento
Dobra
a procela no céu
E
os astros — olhar dos mortos
A
mão da noite escondeu...
Se o tom baixa algumas oitavas, e já
não é a fúria sonorosa ou a gravidade apreensiva, mas a observação pinturesca,
a fantasia deleitosa, nem por isso, esse lirismo cósmico é menos admirável.
Como
um negro e sombrio firmamento
Sobre
mim desenrola o teu cabelo...
.............................................
As
trevas rolam como as tranças negras
.............................................
...Iam
caindo
Dos
dedos do crepúsculo os véus de sombra
Com
que a terra se vela, como noiva
Para
o doce himeneu das noites límpidas
Como a modéstia e o pudor que se
escondem, e escondem a grandeza,
Também
o espaço esconde-se entre névoas
E
no entanto é... sem fim!
..........................................
...a
tarde, quando o sol, condor sangrento
No
ocidente se aninha sonolento
Como
a abelha na flor...
..........................................
...Do
céu azul a cúpula azulada
Como
uma taça para nós voltada
Lança
a poesia a flux!
..........................................
A
terra é como inseto friorento
Dentro
da flor azul do firmamento
Cujo
cális pendeu!
..........................................
Do
céu azul na profundeza escura
Brilhava
a estrela como um fruto louro
O poeta, no entanto,
Pega
da lira... canta, uma canção de amor
Ouvi-o!
Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga
pela ogiva um raio de languor...
Nem em Hugo antes dele, nem em
Junqueiro depois — os dois poetas do século que se recordam, lendo Castro
Alves, nenhum deles teve dessas imagens nem tão profusas, nem tão belas, dessa
magia cósmica da natureza. E tão perfeitas são, que, uma vez lidas ou ouvidas,
nunca mais se as pode esquecer. Confesso-vos que, se me vejo a sós no campo
escuro, numa dessas maravilhosas noites estreladas em que a gente sente a
misteriosa palpitação da vida também no céu, dois grandes poetas me lembram...
Um é Corneille, que lhes definiu a "obscura claridade":
L'obscure
clarté qui tombe des étoiles...
o outro é Castro Alves, que lhes
contou a profusão, a forma, o brilho ou oriente, as variedades de tamanho e uma
languidez romântica em que tremeluzem, a inconstância da cintilação:
As
estrelas no céu cintilam lânguidas
Pérolas
soltas de um colar sem fio...
SINCERIDADE DE EXPRESSÃO: IMPRESSIONISMO SUGESTIVO
Um problema de estética que interessa principalmente à arte literária é este da definição própria ou vaga do que se
quer descrever. Buffon, no seu célebre discurso sobre o estilo, aconselhava a
não chamar às coisas senão pelos "termos mais gerais", preceito que
adotado no Século XVIII deu uma literatura perifrástica, frouxa e bamba, antes
envolvendo e dissimulando, do que pintando e definindo. Entretanto a doutrina
clássica era em tudo contrária a esses arrebiques e disfarces; censurava
Pascal: "os que mascaram a natureza"; queria Fénelon que se chamassem
"às coisas pelos seus nomes; Boileau era incisivo, impondo que se devia
chamar "um gato" a "um gato"; finalmente, La Bruyère resumia essa estética,
dizendo que o mérito de um autor "consiste em bem definir, e pintar bem...
exprimir a verdade, para escrever naturalmente, fortemente, delicadamente".
Mas a expressão exata da verdade pode chegar a tão fina minúcia e tão complexa,
que, ao invés de sugestão perfeita da realidade, dê notação difusa e confusa do
objeto descrito. Foi o que aconteceu à estética do naturalismo, que, em vez de
reproduções da vida nos dava inventários exaustivos das qualidades e impressões
da vida. Vigny acertara entretanto, definindo: l'art, c'est la vérité choisie; Taine viria a insistir em história
e crítica, no petit fait caracteristique.
Louvou a Tolstoi, Merejkowski, por um prodígio de sua arte, que consistia em
lograr profundos efeitos realistas, não com intermináveis descrições
reprodutivas, mas apenas com a acentuação firme e exata de pequenos incidentes
ou reparos materiais, os quais melhor definem uma situação ou um objeto de que
epítetos repetidos e circunlóquios perifrásticos. A arte de Castro Alves, devia
dizer o seu gênio espontâneo, porque
não há tratado de estética que isto ensine, se
não é do gosto e da índole, tinha esse dom maravilhoso:
Uma
noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa
rede encostada molemente...
Quase
aberto o roupão... solto o cabelo
E
o pé descalço do tapete rente.
Quereis em menor número de palavras
pintura mais acabada de um interior, uma mulher que dorme descuidada, numa rede
que oscila brandamente, entremostrando o colo pelo decote, os cabelos soltos e
o pé descalço a roçar a fímbria da tapeçaria? Entretanto, as palavras são as
mais exatas e insubstituíveis na sua precisão, é a "verdade", mas
"escolhidas" para o efeito.
Por
mim eu sei que há confidências ternas
Um
poema saudoso, angustiado
Se
uma rosa de há muito emurchecida
Rola
acaso de um livro abandonado.
Este simples fato, "pequeno fato
característico" — uma flor murcha que acaso cai de um livro — não contará
todo um romance, não sugere logo confidências ternas, mais impressivas do que
um longo poema de amor? Ela, a amada partiu há pouco e, apesar da saudade que
cresce e aumenta com os minutos de ausência, ainda está tão viva a sua presença
querida, que
Inda
a almofada em que pousaste a fronte
O
teu perfume predileto exala.
A timidez dos jovens ao amor não se
definiria senão por um livro de psicologia sentimental: pois bem, num verso a
define Castro Alves quando diz, em intenção à amada, que não o saberá talvez
nunca,
Que
tremia ao roçar do teu vestido...
Entretanto, a essa timidez sensual não
escapa o tormento de um colo opresso, — quem o pudera libertar! —
E
o seio que palpita a rebentar a seda...
Que não será a maravilha desse colo,
desejado pela própria luz, quando, despindo os adornos e roupagens,
N'alcova
onde a vela ciosa... crepita...
Mas, nem assim será despida: há de
resguardá-la um halo aromado:
O
perfume é o invólucro invisível
Que encerra as formas da mulher bonita.
Que encerra as formas da mulher bonita.
Confesso que essa ideia, ou essa imagem,
de vestir com uma túnica de perfume à bela criatura amada, deve a ela ser mais
sensível, a seu pudor, do que a ousadia oposta de Eugênio de Castro:
Embora,
senhora andeis
De
finas telas vestida
Por
meus olhos sois despida...
Se muda o cenário, e de aristocrático
se faz humilde, a notação do poeta não é menos exata
A
grama um beijo te furta,
Por
baixo da saia curta
Que
a perna te esconde em vão.
Lembra aquela trova popular de
Espanha:
Quisiera
ser zapatito
De
tu diminuto pié
Para
ver, en ocasiones,
Lo
que el zapatito vé...
EXPRESSÃO EXATA E IMPRESSIONISMO EVOCATIVO
Este assunto, da notação realista e
exata, do poeta, nos traz outros, sem sair dele, dois outros casos de estilo.
Reprocharam a Vítor Hugo, muitas vezes, na incontinência, a banalidade dos
adjetivos; a Guerra Junqueiro, também rico e perdulário, a incoerência deles
sem seriação nem progresso, ascensão ou declínio previsíveis, como um capricho,
senão do ritmo ou da rima, ao menos de toda ausência de lógica. A Castro Alves
essa culpa não caberia, nem nos qualificativos nem nas ações verbais, sempre
rigorosamente exatas. É a "Deusa Incruenta", a Imprensa, que aparece, e a sucessão dos qualificativos é lógica,
como a das ações verbais:
Quando
ela se alteou das brumas da Alemanha
Alva,
grande, ideal, lavada em luz estranha
Na
dextra suspendendo a estrela da manhã
O
espasmo de um fuzil correu nos horizontes...
Clareou-se
o perfil dos alvacentos montes,
Das
cimas do Peru às grimpas do Indostan.
Mirabeau investe titânico contra a
Bastilha e o antigo regime:
Eriçado,
feroz, suado, monstruoso
Magnífico
de horror, divino, proceloso...
Se a amada canta, o poeta anota:
Depois
suave, plena, harmoniosa
Uma
voz de mulher se alevantava,
E
o pássaro inclinava-se das ramas
E
a estrela do infinito se inclinava.
Ainda outra voz, ou essa mesma:
Na
voz clara, sonora, ardente, larga, extensa
Escada
de Jacob — prendia a terra aos céus.
Se estes adjetivos se ordenam
expressivos e seguidos, que dizer dessa notação fiel, ondeante, verista na sua
exatidão cinemática?
Quando
a sangrenta luz do alampadário
Estala,
cresce, expira, após ressurge
Como
uma alma a penar...
Castro Alves, se era um visual, era
também um auditivo: os versos e as imagens que depõem por esses seus apanágios
de sensação dariam para um curioso estudo de psicologia. Ele sabia pintar, não
só desenhando com habilidade, como colorindo com viveza: tenho à vista provas
disto! também tocava e gostava de ouvir cantar: a Agnese Murri, cuja bela voz
lhe foi um dos últimos encantos, às mãos e ao piano de sua irmã Adelaide,
ficaram versos preciosos que o atestam. Mas, nos seus poemas, as provas, por
inesperadas, e não acinte, são mais interessantes. Muitas de suas poesias
poderiam ser desenhadas e coloridas: são quadros de gênero, são paisagens e cenários
reais. As Aves de arribação, A Queimada, Uma página de Escola Realista,
veem-se. Vede se não sentis esta cena, como se pudésseis dizer, tal um outro
poeta "vi claramente visto", essa evocação de uma aventura apaixonada
numa "noite cúmplice", quando o luar escorre na caliça alvadia das
paredes, e no balcão, fugindo talvez desataviada ao leito, Julieta ou Roxane,
esperam uma prova de amor:
Como
o gênio da noite, que desata
O
véu de rendas sobre a espádua nua
Ela
solta os cabelos... Bate a lua
Nas
alvas dobras de um lençol de prata...
O
seio virginal, que a mão recata,
Embalde
o prende a mão... cresce, flutua...
Sonha
a moça ao relento... Além na rua
Preludia
um violão na serenata!
Furtivos
passos morrem no lajedo...
Resvala
a escada do balcão discreta...
Matam
lábios os beijos em segredo...
Afoga-se
os suspiros, Marieta!
Oh,
surpresa! Oh, palor! Oh, pranto! Oh, medo!
Ai!
noites de Romeu e Julieta!
Nesse quadro admirável o visual
debuxou o desenho, mais foi o auditivo que lhe deu a harmonia íntima: ouvem-se
lá fora os passos "furtivos" que morrem no lajeado da rua; resvala do
balcão a escada que sobe Romeu; morrem abafados nos lábios cautelosos os beijos
que de outras ocasiões cantam uma música feliz:
Furtivos
passos morrem no lajedo...
Resvala
a escada do balcão, discreta...
CULTO DA FORMA E AMOR DO SENTIMENTO
Não é admirável? Sobretudo, porque em
tudo se antecipou Castro Alves, como acontece com os gênios a seu tempo, não em
ideias sociais e políticas, como ainda em estética. Alberto de Oliveira, com a
autoridade de grande poeta e de príncipe dos nossos parnasianos, já lhe
conferiu a primazia, em data, sobre Gonçalves Crespo, havido por Veríssimo,
como o nosso primeiro parnasiano: as Miniaturas foram publicadas um ano depois
das Espumas Flutuantes.
Castro Alves, o romântico hugoano
atingia a era seguinte, do culto da forma, como os românticos Banville e
Gautier se misturaram aos Lecomte de Lisle e Herédia, do Parnaso, como se fora
aqui o traço de união entre as gerações de Álvares de Azevedo e Fagundes
Varela, de um lado e a de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, do outro. Por
prova, mandariam José Veríssimo e Luís Murat ler às Vozes d'África em que reconheceram aquela perfeição de forma; nós
preferimos seguir Alberto de Oliveira citando um soneto, o mimo preferido
desses cinzeladores de mármore e ouro... Este tem algo daqueles primores
exóticos, no espaço e no tempo, de Gautier e de Herédia, com uma alma que nem
sempre puseram nos seus:
Vem!
no teu peito cálido e brilhante
O
nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te
na longa caxemira
Como
as Judias moles do Levante.
Alva
a clâmide aos ventos — roçagante...
Túmido
o lábio, onde o psaltério gira...
Ó
musa de Israel! pega da lira...
Canta
os martírios de teu povo errante!
Mas
não... Brisa da pátria, além revoa,
E
ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe
de partir... e parte... e voa...
Qual
nas algas marinhas desce um astro...
Linda
Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só
me resta um perfume... um canto... um rastro.
Mas o "parnasianismo" era
uma estética não só de forma sintáxica e métrica perfeita, como de contexto
impassível.
Est
elle en marbre ou non, la Venus de Milo?
à qual se havia de substituir outra
poética reacionária, de metros diversos e bizarros, às vezes sintaxe descuidada,
mas de alma comovida e profunda, a qual Verlaine, que definira a outra e dela
foi trânsfuga, viria também a definir na sua arte poética:
De
la musique avant toute chose...
Se o parnasiano é visual, o
simbolista, o decadente, o verlainiano é auditivo... Castro Alves visual, como
auditivo, antecedeu ao Parnaso, como à poesia verlainiana. Como neste soneto a Ester se misturam delicadamente as
impressões desses sentidos, elas se misturam também vivamente no quadro e na
orquestração da A Queimada.
...Já de
listrões vermelhos
O
céu se iluminou,
Eis
súbito, de barra do ocidente,
Doido,
rubro, veloz, incandescente,
O
incêndio que acordou!
A
floresta rugindo as comas curva...
As
asas foscas o gavião recurva,
Espantado
a gritar...
O
estampido estupendo das queimadas
Se
enrola de quebradas em quebradas
Galopando
no ar.
Mas as notações auditivas mais puras
são nos quadros íntimos. O murmúrio da cidade, essas ilhas de ruído e
torvelinho, em meio da natureza, ouve-se de longe, n'amplidão do campo
solitário, como:
Som
vago que gagueja em meio à imensidade
No silêncio e na solidão, as horas se
estiram indefinidamente:
As
horas passam longas, sonolentas...
Às vezes pesam, apavorantes:
Parei...
volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém!
A solidão pejava os descampados!
Albert Samain, um simbolista, não
anotaria mais fielmente:
Le silence est si grand que mon coeur en frisonne...
Nesta placidez do deserto até os sons
ajudam a emoção da soledade:
Ouviam-se,
alongando a paz dos ermos
Os
sons doces, plangentes, de um piano...
Na solitária casa paterna, ouve e revê
o passado com a lembrança
Mas
eu no teu vazio — vejo uma multidão
Fala-me
o teu silêncio — ouço-te a solidão.
No jardim familial, ora triste e
abandonado:
Oh
jardim solitário! Relíquia do passado
Minh'alma
como tu é um parque arruinado!
Não é uma precursão, e mais dolorosa,
daquele simbolista lusitano, Eugênio de Castro:
Casas
abandonadas, minhas irmãs!?
Eu prefiro o outro Castro, e o repito,
porque é um estado de alma em dois versos:
Oh
jardim solitário! Relíquia do passado
Minh'alma
como tu é um parque arruinado!
Certamente que há precursão até nas
extravagâncias, que não o são, porque são do domínio da psicologia, naquele
"trasfert" de sensações, muito de moda na música moderna e na poesia
decadentes. Recordemos Cesar Franck que diz da sua Redenção: "Pus apenas tons sustenidos nesta partitura para dar
o efeito luminoso de Redenção",
ou Artur Rimbaud, no seu soneto das Vogais:
A,
noir, E, blanc, I, rouge, U, vert, O, bleu, voyelles
é a audição corada; também o oposto é
possível, a visão sonora, e até a audição aromada: Castro Alves as teve todas,
logrando efeitos deliciosos de impressionismo:
Ontem
à tarde, quando o sol morria
A
natureza era um poema santo;
De
cada moita a escuridão saía
De
cada gruta rebentava um canto,
Ontem
à tarde, quando o sol morria
"Larga
harmonia" "embalsamava" os ares!
É que os sentidos são como portas do Palácio Encantado das Imagens por onde
entram e saem, sem tento, sem preferência, o Estro e os Ritmos, as Impressões e
a Inspiração... Baudelaire o dissera:
Comme
des longs echos que loin se confondent
En
une ténebreuse et profonde unité
Vaste
comme la nuit et comme la clarté,
Les
parfums, les couleurs et les sons se repondent.
Castro Alves traz seu testemunho:
No
drama do crepúsculo eu escutava atento
A
surdina da tarde ao sol, que morre lento...
O POETA DA NATUREZA BRASILEIRA
No lirismo de Castro Alves tão
colorido, musical, fiel à sensação, delicioso de impressões, íntimo e profundo
tantas vezes, há porém mais, muito mais, a analisar. Não me quero, entretanto,
desviar do objetivo que me impus de estudar aqui o poeta da natureza e do amor.
Entre os maiores elogios que tem
Castro Alves merecido, está certamente este: foi um poeta brasileiro! Não
creiam que me desvaire na ênfase nacional que supõe um mérito, e o maior, o ser
desta terra e desta gente: não há civilizado antigo ou moderno, heleno ou
americano do norte, bárbaro da vetusta Assíria ou da África selvagem, que não
tenha tido ou não tenha ainda o mesmo ingênuo orgulho. Ele não é vão, porque
esse patriotismo é o egoísmo social coletivo, autofilia ou egocentrismo
naturais, pois que são rudimentares e iniciais afirmações da personalidade: sem
ela uma nacionalidade não pode ter noção própria da existência. O patriotismo é
a consciência da nacionalidade...
Não é, porém, aqui o caso. Apesar do
patriotismo político, sempre em toda a parte e em todo o tempo, houve
alienígenos, literários e artísticos, inevitáveis. Também é uma lei natural: é
imitando os mais perfeitos, que nos aperfeiçoamos. Desprezavam os romanos
politicamente os gregos, aos quais submeteram a jugo, e entretanto se
impregnaram de sua língua, filosofia, ciências, poética e artes plásticas,
servilmente adotadas e copiadas; os escravos gregos lhes ensinavam aos filhos o
aticismo, como eles em tempo o iam mesmo aprender em Atenas. O ódio alemão ou o
orgulho britânico não impediram nunca a Albion de ter a sua própria divisa em
francês e a Frederico II de nesse idioma escrever suas próprias obras... Os
nossos escritores coloniais foram lusitanos: Gonçalves Dias o foi ainda, e é o
nosso maior poeta português. Aqui não há só estrangeiros, como até almas do
outro mundo; há poetas franceses e novelistas à russa: há quem imite Vieira ou
se castigue à Bernardes: como se o mérito de ser romano em Roma ou escrever bem
a língua de seu tempo não devesse ser o dever e o galardão de um escritor de
juízo. É que "não vamos, voltamos à Europa", pois que de lá somos,
daqui não queremos ser.
José de Alencar na prosa de ficção, e
Castro Alves na poesia, são os precursores de um brasileirismo, natural e
intencional, como que a nossa independência literária. Antes deles, aqui e ali
haveria as primeiras manifestações desse espírito novo, mas eles foram os
orientadores certos e fortes do movimento. Basílio da Gama, no seu medíocre
poema épico o Uraguay, já tem
formosas paisagens americanas; raras em Casimiro de Abreu, mais frequentes em
Fagundes Varela, neles já se revelam aspectos nacionais: em nenhum, como em
Castro Alves, a nossa natureza se retratou com mais naturalidade e portanto
maior perfeição.
Daí a sua originalidade: no Brasil não
quis ser grego, latino, francês ou lusitano — foi brasileiro. Não descreveu
mármores helenos, façanhas romanas, nem pretendeu representar o seu drama em
Paris ou que a vernaculidade de seu estilo pudesse agradar a Alexandre
Herculano: méritos fáceis e medíocres. "É se nacionalizando, diz ilustre
escritor, que uma literatura toma lugar na humanidade e significação no concerto
do mundo... Que há de mais espanhol que Cervantes, de mais inglês que
Shakespeare, de mais italiano que Dante, de mais francês que Voltaire ou
Montaigne, que Descartes ou Pascal, que há de mais russo que Dostoievsky e
entretanto de mais universalmente humano?" Castro Alves quis apenas e foi,
somente brasileiro: teve a intenção e realizou-a.
Numa página de crítica escrita aos 17
anos ele acusou a nossa literatura da "falta de brasileirismo".
"Dir-se-á que os poetas no Brasil, enquanto que Chateaubriand vem pedir
aos panoramas da América a inspiração dos seus Natchez e à sombra destas selvas seculares, escrever as páginas
olorosas de René e Atala, dir-se-á, digo, que os nossos
poetas, não acham em tudo isto que nos cerca um canto de poesia".
Compara a alheia e a nossa poesia de
natureza e exclama: "e no entanto quanto talento se tem naturalizado
estrangeiro!" Castro Alves quis ser e ficou brasileiro; daí a sua
originalidade.
Reconheceu-a Machado de Assis:
"achei um poeta original". A musa do Sr. Castro Alves tem feição
própria. Fora mais adiante José de Alencar: "Palpita em sua obra o
poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria que faz os grandes
poetas, como os grandes cidadãos". José Veríssimo viria a ser mais claro
ainda: "poeta nacional, se não mais, nacionalista". Finalmente, José
Oiticica os resume, incisivamente: "criou essas três coisas que não
existiam na poética nacional antes dele: a paisagem brasileira, o estilo
brasileiro, o tema social brasileiro".
Nem o ático Nabuco, nem o luso
Gonçalves Dias são nacionais: brasileira é a ênfase do estilo de Castro Alves,
grandiosa, colorida, sonora, terna ou saudosa. O tema brasileiro social no seu
tempo não era evocar selvagens, orná-los de virtudes cavalheirescas para
humilhar por contraste a nossa descendência de portugueses, quando havia muitos
anos já nos emancipáramos das dependências coloniais; nem cantar uma guerra
infeliz contra o Paraguai, na qual um ditador imperialista se vingava de nossas
imprudentes intervenções imperialistas nos negócios alheios do Prata: era a
abolição da escravatura, que nos degradava e a República que nos prometia
enganosamente a liberdade. A paisagem brasileira não tem loureiros e mirtos,
casais e castelos, rouxinóis e cotovias, parques e repuxos... como os que se
veem na prosa e nos versos dos "nossos" escritores
"estrangeiros". Por isso, porque se reconhecia nosso, de nossa
natureza, só Castro Alves podia dizer
Abre-me
o seio ó Madre Natureza
Regaços
da floresta americana
..........................................
Natureza,
eu voltei... eu sou teu filho!
E parte para ela, para a comunidade
com ela.
Já
do largo deserto o sopro quente
Mergulha
perfumado em meus cabelos
Ouço
das selvas a canção cadente
Segredando-me
incógnitos anelos.
...........................................
Novo
alento selvagem, grandioso,
Treme
nas cordas desta frouxa lira,
Dá-me
um plectro bizarro e majestoso
Alto
como os ramais da sicupira.
Cante
o meu gênio o dédalo assombroso
Da
floresta, que ruge e que suspira,
Onde
a víbora lambe a parasita,
E
a onça fula o dorso pardo agita.
Onde,
em cális de flor imaginário,
A
cobra de coral rola no orvalho,
E
o vento leva a um tempo o canto vário
Da
araponga e da serpe de chocalho...
Onde
a solidão é o magno estradivário...
Onde
há músc'los em fúria em cada galho,
E
as raízes se torcem, quais serpentes...
E
os monstros jazem no ervaçal dormentes.
E,
se eu devo expirar, se a fibra morta
Reviver
já não pode a tanto alento,
Companheiro!
uma cruz era selva corta
E
planta-a no meu tosco monumento!
Da
chapada nos ermos... (o que importa?)
Melhor
o inverno chora... e geme o vento.
E
Deus para o poeta o céu desata
Semeado
de lágrimas de prata.
Essa Natureza, mãe e confidente,
ditar-lhe-ia os seus mais lindos versos:
Se
aponta a alvorada por entre as cascatas
Que
estrelas no orvalho que a noite verteu,
As
flores são aves que pousam nas matas
As
aves são flores que voam no céu.
Mais tarde, sol a pino...
Ali
a luz cruel, a calmaria intensa,
Aqui
a sombra, a paz, os ventos, a cascata...
E
a pluma dos bambus a tremular imensa
E
o canto de aves mil... e a solidão e a mata...
Depois ainda
...quando
o sol, nas matas virgens
A
fogueira das tardes acendia
E
como ave ferida, ensanguentava
Os
píncaros da longa serrania
...............................................
...embaixo
o vale a descantar saudoso
Na
cantiga das moças lavadeiras!
E
o riacho a sonhar nas canabravas
E
o vento a se embalar nas trepadeiras.
Ó
crepúsculos mortos! voz dos ermos!
Montes
azuis! sussurros da floresta!
..........................................
Hora
meiga da tarde, como és bela
Quando
surges no azul da zona ardente!
..........................................
De
cada moita a escuridão saía
De
cada gruta rebentava um canto
Ontem
à tarde quando o sol morria.
É o lusco-fusco, a nambu trila a sua
escala saudosa; andam pelos caminhos os bacuraus; as boninas, na terra,
precedem as estrelas, no céu.
E
a juriti do taquaral no ramo
Povoa
soluçando a solidão...
Vem descendo os véus da treva
As
garças metiam o bico vermelho
Por
baixo das asas da brisa ao açoite
E
a terra na vaga de azul do infinito
Cobria
a cabeça com as penas da noite...
Então
Chora
orvalhos a grama que palpita
...acende
o vagalume o facho seu...
Tudo é paz e recolhimento...
"tudo dorme e vela Deus" diria o poeta; não, no Brasil, o silêncio
das noites tropicais é uma imensa orquestra em surdina:
Sussurro
profundo! marulho gigante
Talvez
um silêncio! Talvez uma orquestra
Da
folha, do cális, das asas, do inseto
Do
átomo à estrela... do verme à floresta.
As vezes, porém,
Das
noites tropicais na mansa calma
...entre
rendas sutis surge medrosa
A
lua plena, qual moreno seio...
Em nenhum dos nossos poetas, da prosa
ou do verso, encontrareis tantas imagens da natureza, e da natureza do Brasil.
Seria de espantar, sendo assim, que
fosse Castro Alves, um sensual e um sentimental, bem amável e bem amoroso, à
brasileira? Ele mesmo se descreveu:
Tendo
por musa — o amor e a natureza!
Amou muito, de fato, e ainda amor lhe
sobrou, para as imagens mais formosas que essa paixão pode despertar. A
natureza não vive aqui numa ebriedade erótica?
Tudo
o que vive, que palpita e sente
Chama
o par amoroso para a sombra.
........................................
E
que amores que sonham as esferas,
A
brisa é de volúpia um calafrio!
Por
isso, também o poeta quer o seu quinhão:
E
do gozo de amar, louco, sedento,
Viver
a eternidade num momento!
Nunca a mulher amada recebeu louvores
mais íntimos, nem mais efusivos:
No
seio de mulher há tanto aroma,
Nos
seus lábios de fogo, há tanta vida...
..........................................
O
seio da amante é um lago virgem,
Quero
boiar à tona das espumas.
..........................................
O
globo de teu peito entre os arminhos,
Como
entre as névoas se balouça a lua.
..........................................
Dá-me
um abrigo nos teus seios túmidos.
..........................................
Teu
seio é vaga dourada,
Ao
tíbio clarão da lua...
..........................................
Do
seio às vagas — pede um outro amor.
Essa comparação de vagas e ondas torna
outras vezes: o peito descoberto da amada é
Mar
de amor onde vogam meus desejos.
Outras vezes é mais carinhoso:
Entram
pela janela quase aberta
Da
meia-noite os preguiçosos ventos,
E
a lua beija o seio avinitente,
—
Flor que abria das noites ao relento.
Não esquece também aos cabelos:
Como
a violeta as faces escondendo,
Sob
a chuva noturna dos cabelos
.........................................
Na
selva sombria de tuas madeixas,
.........................................
Na
torrente caudal de seus cabelos negros.
.........................................
É
noite ainda em teu cabelo preto
.........................................
Como
um negro e sombrio firmamento
Sobre
mim desenrola o teu cabelo.
.........................................
Que
tenda mais sutil que meus cabelos
Estrelados
no pranto de teus olhos!
Também esses olhos...
Teus
olhos são negros, negros
Como
noites sem luar
..................................
Se
a natureza apaixonada acorda
Ao
quente afago do celeste amante
Dize:
quando em fogo teu olhar transborda
Não
vês minh'alma reviver ovante
..................................
Meus
olhos nos teus morriam...
Considerai nessa imagem e dizei se
alguma jamais foi tão expressiva e tão simples — é a perfeição da verdade e da
sensualidade amorosa
Meus
olhos nos teus morriam...
Já alguém notou que o fraco de Machado
de Assis eram os braços... todos temos os nossos — lede O Pé de José Bonifácio ou a Pata
de Gazela de José de Alencar — ou o nosso fetichismo, se não quisermos
dizer as nossas preferências, se não somos ecléticos: Castro Alves teria bom
quinhão — o colo e os cabelos, — mas não era exclusivista:
...teu
riso me penetra n'alma
Como
harmonia de uma orquestra santa
É
que teu riso tanta dor acalma
...................................
Passava
em meus cabelos perfumada
Aquela
mão tão pura!
.....................................
A
frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe
voluptuosa os teus contornos
Ó
deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao
doido afago de meus lábios mornos
...em
toda a parte
Meu
pensamento segue o passo teu
Até as fitas, as rendas, as roupas
Não
rias... prendi-me... num laço de fita!
......................................
Tu
levas minh'alma, ó filha
Nas
rendas desta mantilha
Seria a mantilha, a de Eugênia Câmara,
que muitas vezes lembram os versos de Castro Alves.
Esse amor não será o amor terno e
respeitoso à Lamartine, nem o tranquilo e feliz à Hugo, é o comovido e sensual
à Musset que está mais em nossa índole e foi propriamente o de Castro Alves.
Com uma certa ingenuidade inexperiente, Nabuco, em 73, exprobrou ao nosso poeta
não ter no amor o sentimento de Varela, ou do bardo das Meditações... Nem todos os vates têm a desgraça de perder um filho
para chorar o Cântico do Calvário,
nem a mulher amada — possuída e logo arrependida e extinta — para lembrar-se,
chorar e esperar no O Lago, O Crucifixo,
Imortalidade... Nada mais pessoal do que o amor, e por isso nada mais
diverso do que a imagem dele que nos deixam os que o sentiram e sofreram
bastante, para nos transmitirem os seus excessos na confidência da poesia.
Castro Alves, como só acontece aos grandes poetas que sabem com sinceridade
confessar-se, nos deu efígie fiel do seu.
A felicidade para ele, como para todo
o mundo, seria o amor; como para poucos, os raros e os melhores, bastava-lhe,
porém, apenas amar. Amabam amare,
disse Santo Agostinho, que "gostava de amar". Confessa também o nosso
poeta:
P'ra
ser feliz basta amar.
E essa felicidade é tamanha que por
ela cometeu a maior impiedade que já se escreveu na terra, se é que também por
isso não pronunciou a mais bela declaração do amor que pudera ouvir uma
criatura:
Amar-te ainda
é melhor do que ser Deus!
Chega a ser mais explícito:
Oh!
se Deus algum dia orgulhoso
O
seu livro infinito volvesse
E
nas letras de estrelas relesse
Seu
passado nas folhas azuis...
Não
teria o orgulho que tenho
Quando
o abismo dest'alma sondando,
No
infinito de amor me abismando,
Eu
me engolfo num pego de luz...
Sem ele, o amor, sem ela, o objeto
dele, a vida não tinha alegria nem destino.
Mas
tu vieste... e acreditei na vida...
Abri
os braços... caminhei p'ra luz...
O
tronco morto refloriu de novo
Ergue-se
vivo, perfumado em flor
Abençoando
a Primavera amiga...
Ai!
primavera de meu santo amor!
A quem ama deste jeito, o sentimento
correspondido ensina veementes indiscrições:
Oh!
amar é viver... Deste amor santo
—
Taça de risos, beijos e de prantos
Longos
sorvos beber
No
mesmo leito adormecer cantando...
Num
longo beijo despertar sonhando...
Num
abraço morrer.
Linguagem íntima incomparável, cujo
magnífico despudor não sei se algum poeta — e eles são tão ousados, quanto inconfidentes!
— já ousou algum dia:
Mulher
do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme
tu'alma, como lira ao vento,
Das
teclas de teu seio que harmonias
Que
escalas de suspiros bebo, atento!
Ai!
canta a cavatina do delírio,
Ri,
suspira, soluça, anseia e chora...
Marion!
Marion! É noite ainda,
Que
importa os raios de uma nova aurora?
Como
um negro e sombrio firmamento
Sobre
mim desenrola o teu cabelo
E
deixa-me dormir, balbuciando
—
Boa noite, formosa Consuelo!
Se ela tarda e demora, seu apelo é
comovente:
Vem!
É tarde! Por que tardas?
São
horas do brando sono,
Vem
reclinar-te em meu peito
Com
teu lânguido abandono!
'Stá
vazio o nosso leito...
'Stá
vazio o mundo inteiro.
E
tu não queres que eu fique
Solitário
nesta vida...
Mas
porque tardas, querida!
Já
tenho esperado assaz...
Vem
depressa, que eu deliro!
Ó
minha amante, onde estás?
E se não vem, na sua insônia dolorosa,
invoca o sono, que faz momentaneamente esquecer
O
leite das eufórbias
P'ra
mim não é veneno...
Ouve-me,
ó Deus sereno
Ó
Deus consolador!
Com
teu divino bálsamo
Cala-me
a ansiedade!
Mata-me
esta saudade!
Apaga-me
esta dor!
porque ele mesmo diz
Sem
Ela que é a vida?
E a razão íntima, secreta, pertinente,
exclusiva, é esta: se todos sentem, os que amam verdadeiramente, só um poeta
disse-o, nestas palavras que resumem melhor que todos os livros de psicologia
amorosa, esse "egoísmo a dois" da paixão humana:
Eu
não posso ser de outra... Tu és minha!
Para quem assim ama, seria a saudade
um tormento exasperado e íntimo, depois não resignado e sempre doido, como só
ele sabia exprimir:
Tudo
vem me lembrar que tu fugiste
Tudo
que me rodeia de ti fala...
É a almofada em que ela posou a fronte
que exala o seu perfume, é o piano que ela tocava que ainda mostra a frase
musical interrompida, são as horas de Ave-Maria que soam, é o vento da tarde, é
a tristeza invasora e irresistível, e a sua voz balsâmica, seu riso santo que
não o confortam mais:
É
que tudo me lembra que fugiste
Tudo
que me rodeia de ti fala
Como
o cristal da essência do Oriente,
Mesmo
vazio a sândalo trescala...
No
ramo curvo o ninho abandonado
Relembra
o pipilar do passarinho
Foi-se
a festa de amores e de afagos...
Eras
aves do céu... minh'alma o ninho!
Por
onde trilhas um perfume espande-se
Há
ritmo e cadência, no teu passo!
És
como a estrela, que transpondo a sombra
Deixa
um rasto de luz no azul do espaço...
E
teu rasto de amor guarda minh'alma
Estrela
que fugiste aos meus anelos
Que
me levaste a vida entrelaçada
Na
sombra sideral dos teus cabelos.
Depois disto todos concordaremos com
Rui Barbosa: se é fato que "a natureza sorri, irradia, e magoa-se nos seus
versos", também é verdade que "ninguém desferiu ainda mais
maviosamente as cordas mais santas do amor humano".
Citei, de intenção, os poetas mais
sublimes do seu tempo, parentes do seu gênio — Hugo, Musset, Gautier, Banville,
Baudelaire, Herédia, Verlaine; acentuei a sua originalidade, espontânea,
sincera, magnífica, irradiante, nova, como a nossa natureza, de que ele foi uma
força e uma imortal expressão: concluo que "poeta do amor e da
saudade" ainda uma vez foi ele fiel às paixões de sua gente, que, como nenhuma
outra sabe amar e sofrer por amor, nesse desejo e naquela saudade: vós me
direis, agora, se Castro Alves não foi e não é, portanto — o primeiro poeta
brasileiro!
---
Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
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Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
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