Traze
a benção de Deus ao cativeiro,
Levanta
a Deus do cativeiro o grito!
Castro Alves
Ergue-te
ó luz! estrela para o Povo,
Para
os tiranos — lúgubre cometa.
Castro Alves
Não foi somente Castro Alves o Profeta
da Abolição, o "Poeta dos Escravos", como deveu ser chamado, pela
vibração prolongada e intensa dos seus cantos contra a Escravidão, pela piedade
sincera e diligente suscitada em favor dos cativos — foi também,
historicamente, um dos primeiros abolicionistas de nosso país, em tempo e,
talvez, o de influência mais perdurável, até à emancipação.
A PROPAGANDA DA ABOLIÇÃO
Há na história da libertação dos
escravos no Brasil que considerar três fases distintas. Primeiro os
precursores, sem influência manifesta, de Manuel Ribeiro Rocha, desde 1758,
Pedra Branca em 1821, ou José Bonifácio, em 26, aos dois Ferreira França em 31,
a Silva Guimarães, em 50. Depois, o movimento que vai terminar na lei preliminar
do ventre livre — começado em 57 com Silveira da Mota, desde 63 com Tavares
Bastos, na imprensa, e Perdigão Malheiro, no livro, em 65 com o visconde de
Jequitinhonha no parlamento, e de 66 a 71 com Pedro II, São Vicente, Nabuco,
Zacarias, finalmente, e vitoriosamente, Rio Branco. Por último, desde aí,
preparo para a lei definitiva, em que a propaganda das ruas ganhou as câmaras e
se impôs ao governo, em 88.
Na fase ativa da propaganda, antes de
71, na imprensa com Tavares Bastos e Urbano Pessoa, no Instituto dos Advogados
com Caetano Alberto Soares e Perdigão Malheiro, no parlamento com Silveira da
Mota e Jequitinhonha, junto da Coroa como o visconde de São Vicente e o
conselheiro Nabuco de Araújo, a causa tinha defensores contados e o seu proselitismo
era escasso ou nulo nas classes dirigentes do Brasil: éramos então inteiramente
insensíveis à infâmia da escravidão e à agonia dos escravos, e acreditávamos
ter feito muito, tudo ter feito quando, forçados pela Inglaterra, tivemos,
enfim, a contragosto, de abolir o tráfico dos negros africanos.
Pedro II, se tinha o respeito a seus deveres
constitucionais, não era porém insensível à vergonha nacional que ele, melhor
que os outros, podia julgar, sentindo a humilhação, para o seu povo, ser o
último do mundo a explorar ainda a maldita instituição. Refere o barão do Rio
Branco que ao gabinete Olinda, em 65, dissera: "É preciso preparar essa
reforma com prudência", o que não impediu a esse governo rejeitasse, in-limine, os projetos de São Vicente,
em 66, apenas Nabuco e Saraiva opinando com o imperador.
Quando, nesse ano, teve de responder
ao apelo da Junta Francesa de Emancipação, declarava que a abolição dos
escravos era "uma questão de forma e oportunidade". Se fora o
ministro Martim Francisco quem oficialmente firmara a resposta, a minuta da
carta foi do imperador. Relata Joaquim Nabuco o seu efeito, de torna-viagem: o
"de um raio, caindo de um céu sem nuvens. Ninguém esperava tal
pronunciamento. Tocar assim na escravidão pareceu a muitos, na perturbação do
momento, uma espécie de sacrilégio histórico, de loucura dinástica, de suicídio
nacional. Estava-se tão imbuído da perpetuidade da escravidão, que a dúvida a
respeito de sua duração equivalia para todos os interesses sociais, à
antecipação de um novo Ano Mil".
Pois bem, foi num Brasil com esse
estado de espírito que, desde antes, deste 1863, principalmente desde 65,
começara Castro Alves a compor, publicar, recitar os seus poemas
abolicionistas. A causa era tão nova e tão desinteressante para a sua própria
geração de moços, que me afirma um seu contemporâneo, causava a todos espanto,
e pena, que o jovem Castro consagrasse o seu talento e sua heroica juventude a
um apostolado sem simpatia na multidão, nem favor nas classes dirigentes. Ainda
em 70, aludir à emancipação numa fala do trono, considerava o barão de Cotegipe
que "jogava com a sorte da pátria" e se recusava com os seus colegas
do gabinete Itaboraí ao permitir.
Anos mais tarde um liberal, Silveira
Martins, acharia na emancipação dos escravos formal antinomia com a própria
existência do Brasil, dizendo: "amo mais ao meu país que ao negro",
para significar que eles eram indispensáveis à existência nacional. Outros, por
caridade, tal aquele também liberal, Martinho Campos, temiam com a abolição
"uma hecatombe de inocentes vítimas", e para os proteger,
mantinha-os, aos "seus negrinhos", na servidão... Que não seria, anos
atrás, no tempo de Castro Alves?
É verdade que ele arrancava aplausos,
comovia, entusiasmava, mas eram os seus dons pessoais, a sua poesia sonora e
inflamada que os colhia, das assembleias literárias ou das plateias
predispostas que o admiravam. Sem o querer, e sem o saber, ia, entretanto, essa
turba se impregnando da emoção e do espírito abolicionista.
Raras poesias suas escaparam ao
extravio, antes de 1865, mas de 63, nos resta a Canção do Africano (tinha ele 16 anos) e de 65 são: O Século, Ao romper d'alva, A visão dos
mortos, Mater dolorosa Confidência. O sol e o povo, Tragédia no lar, O Sibarita
romano, A Criança, A Cruz da Estrada, Bandido Negro, A América, O Remorso, A
órfã na sepultura, Antítese, Canção do violeiro, Súplica, O Vidente, Mãe de
cativo, Manoela, Estrofes do solitário, Adeus meu canto... em que perpassam
todas as infâmias da escravidão e todas as agonias dos cativos. Em 67, já ele
escrevia a um amigo: "Vou hoje para a Boa Vista terminar o prólogo dos
Escravos, aos quais só falta a descrição da Cachoeira
de Paulo Afonso". De 67 é o drama Gonzaga,
onde, a propósito da Inconfidência Mineira, o tema da liberdade civil se casa
ao da liberdade política; de 68 são: O
Navio Negreiro, Prometeu, Lúcia,
Vozes d'África... e não cessou de cuidar no seu apostolado, porque até o
fim de sua curta vida, a invocação de Palmares como que à insurreição que havia
de mover, e moveu, a abolição; O
derradeiro amor de Byron, à liberdade, é como que o próprio; e é a Cachoeira de Paulo Afonso, que recebe os
seus últimos carinhos de artista.
Joaquim Nabuco que em torno do pai, no
Instituto dos Advogados, no Senado, no Conselho do Estado, fez a história da
propaganda abolicionista antes de 71 no seu monumental livro Um estadista do
Império, como em torno de si próprio faria a da Abolição até 88, no seu
delicioso livro Minha formação, esqueceu o nosso poeta, para só atender à gente
de qualidade, jornalistas, advogados e políticos, como se estes fossem para a
propaganda das ideias os mais qualificados, quando apenas, se tanto, refletem
as da opinião pública, que essa é que é preciso formar; esqueceu Castro Alves,
seu colega de São Paulo, a quem não podia perdoar talvez ter-lhe precedido de
quase vinte anos na vocação abolicionista, que viria a servir, sem outra
influência entretanto senão a dos seus discursos, como a do outro fora também,
na multidão, a dos seus poemas: apenas Nabuco encabeçara, com outros muitos, um
movimento feito, e feito certamente com as emoções e as ideias de Castro Alves,
que habituaram as gerações novas do seu tempo à piedade pelos cativos, à
indignação contra o cativeiro, para vinte anos mais tarde, virem a ser a
geração dos libertadores. Castro Alves trabalhou para Nabuco, que assim era
justo o esquecesse.
Nem sempre, porém. Em uma série de
artigos publicados em 1873 n'A Reforma,
não conseguira ainda abafar a voz da justiça, desprendimento mais fácil aos
moços, que têm menos interesses; Nabuco não era ainda abolicionista, e pois,
podia dizer do outro: "Castro Alves foi uma inspiração elevada e uma
inteligência nobre; seu maior título (de glória) é o de ter posto seu talento
ao serviço da causa da emancipação e da pátria. As suas mais felizes ideias,
seus versos mais melodiosos foram-lhe inspirados pela sorte dos cativos".
"Esse é um título sério à gratidão do país e não sei que se possa apontar
um melhor exemplo aos moços que a glória de Castro Alves seduz, do que...
empregando todo o seu talento e sua inspiração ao serviço da redenção dos
escravos. Essa é a grande causa da mocidade e a melhor homenagem que pode
prestar à memória do jovem poeta é a de inspirar-se do mesmo sentimento que deu
tanta eloquência e tanto movimento às Vozes
d'África e à Tragédia do mar. Nunca o poeta subiu tanto como nesses dias em
que abandonando a toada melancólica e o cético desespero dos Réné e dos
Obermann apoderou-se resolutamente de uma grande ideia e deixou-se dominar por
um forte sentimento. É esse o mérito que antes de qualquer outro eu queria
atribuir ao poeta para chamar em seu favor os corações generosos que não
conhecem maior prêmio para o talento do que servir à liberdade e que sabem que
a musa que se torna eco das desgraças imerecidas coroa-se duas vezes, pela
inspiração e pela caridade".
Estes sentimentos e estas ideias foram
próprias, e esta é a originalidade de Castro Alves, que não seguiu a nenhuma
corrente de sensibilidade de seu tempo, a nenhum partido de ideias de sua
geração, antes impôs as próprias sensações e pensamentos ao seu povo e ao seu
país, quando os motivos de arte e de política eram uma idealização do selvagem
primitivo, incumbido de representar o brasileiro e uma guerra contra o
estrangeiro, que daria foros de nação respeitável ao Brasil. Castro Alves
sentiu que mais perto de nós estava uma componente de nossa nacionalidade,
vencida e espoliada, que era preciso redimir e reabilitar como à outra, à raça
branca, seria preciso restituir à consciência do próprio esforço no trabalho
livre e digno, saneados o lar, a atividade, os costumes e a inteligência, para
não nos humilharmos diante do mundo, para termos o orgulho de nossas qualidades
e virtudes.
"A sua influência foi enorme...
diz José Veríssimo e explica Amadeu Amaral, porque "não foi apenas um
poeta... foi um apóstolo, um propagandista, um lutador, ciente e consciente dos
frutos bons e dos frutos amargos de sua semeadura". Apóstolo, foi também
vidente e profeta: a sua grandeza está nisto, acerta Euclides da Cunha,
"ele os viu e melhor do que seus contemporâneos", os grandes
pensamentos políticos e sociais do seu tempo, chegando no momento de os
proclamar "aparecimento... certo oportuno como o de todo grande homem. Realizada
a sua aspiração, que começou a realizar, e nos deixou estímulos para cumpri-la,
não é senão justo que o nome dele se ligue "indelevelmente, a uma das
fases mais decisivas de história nacional".
CONTRA A ESCRAVIDÃO
Para isso, a sua lira de cem cordas
não deixou de vibrar em nenhuma daquelas que podiam comover ou indignar a
multidão. Para o próprio Deus apela:
Senhor!
Não deixes que se manche a tela
Onde
traçaste a criação mais bela
De
tua inspiração.
O
sol de tua glória foi toldado,
Teu
poema da América manchado,
Manchou-o
a escravidão.
À África empresta voz e com os acentos
de um profeta, Jó ou Moisés, argui ao Eterno de injustiça e clama misericórdia
e reparação:
Senhor
Deus dos desgraçados
Dizei-me
vós, Senhor Deus
Se
é mentira, se é verdade
Tanto
horror perante os céus...
e ao silêncio que lhe responde à
aflição, exclama, desesperada:
Há
dois mil anos te mandei meu grito,
Que
embalde, desde então, corre o infinito.
Onde
estás, Senhor Deus?
A seu povo, a sua nação, concita em
arroubos de indignação e, às vezes, de esperança:
Não
manches a folha de tua epopeia
No
sangue do escravo no imundo balcão
.......................................
Arranca
este peso das costas do Atlante
Levanta
o madeiro dos ombros de Deus!
.......................................
Auriverde
pendão de minha terra
Que
a brisa do Brasil beija e balança
Estandarte
que a luz do sol encerra
E
as promessas divinas da esperança
Antes
te houvessem roto na batalha
Que
servires a um povo de mortalha.
.......................................
Oh...
pátria desperta... Não curves a fronte
Que
enxuga-te os prantos o sol do Equador
Não
miras na fímbria do vasto horizonte
A
luz da alvorada de um dia melhor?
Aos sacerdotes, reis, tribunos,
bardos, ricos, poderosos, "fariseus" que toleram a escravidão e
renegam a Jesus, amaldiçoa:
Sinto
não ter um raio em cada verso
Para
escrever na frente do perverso
Maldição
sobre vós!
Entretanto, inclinado sobre o escravo
sente o que ele sofre e às vezes sofre com ele: é aqui a mãe privada de filho,
a donzela de sua pureza de que dispõe o senhor, o chicote retalhando as carnes
como a vergonha, as irmãs prostituídas à vista dos irmãos, os lares desfeitos e
os esposos separados e vendidos para rumos diferentes, as cãs da velhice
insultadas e nem no túmulo o resguardo da morte. Porque ser escravo
É
do lodo, no lodo sacudido
Ver
que aqui, ou além, nada o espera,
Que
em cada leito novo, há mancha nova
No
berço... após no toro... após na cova!
Ser
escravo — é nascer no alcouce escuro
Dos
seios infamados da vendida,
Filho
da perdição no berço impuro,
Sem
leite para a boca ressequida.
É
ver, viajante morto de cansaço
A
terra — sem amor! sem Deus... o espaço!
Nem o amor, que é condição de vida
imposta aos mais misérrimos seres de natureza, porque dele o privam, se o
destroem:
Não!
tudo isto é mentira! o que é verdade
É
que os infames tudo me roubaram...
Esperança,
trabalho, liberdade,
Entreguei-lhes
em vão... não se fartaram
Quiseram
mais... Fatal voracidade!
Nos
dentes meu amor despedaçaram...
Se este se rebela, outro geme sem consolo:
Ai
triste que eu sou escravo,
Que
vale ter coração?
E quando chega a velhice, é o abandono
e, à morte, nem uma cova:
É
ele, o escravo maldito
O
velho desamparado
Bem
como o cedro lascado,
Bem
como o cedro no chão
Que
o cadáver insepulto
Nas
praças abandonado,
É
um verbo de luz, um brado
Que
a liberdade prediz...
Mas, nem essa esperança consola o
poeta, que exclama:
Do
berço à sepultura a infâmia escrita
Senhor
Deus! compaixão!
Por isso todos os crimes se
justificam:
E
vens falar de crimes ao cativo
Então,
não sabes o que é ser escravo!
As mães sufocam os filhos ao nascerem,
para lhes poupar a escravidão:
Não
me maldigas... num amor sem termo
Bebi
a força de matar-te... a mim...
Viva
eu cativa, a soluçar, num ermo,
Filho
sê livre... sou feliz assim...
A criança a quem mataram ao açoite a
mãe escrava:
Choras,
antes de rir... Pobre criança
Que
queres, infeliz?
—
Amigo, eu quero o ferro da vingança
Mais tarde, ele será o "Bandido
negro":
Para
vós fez-se a púrpura rubra
Fez-se
o manto de sangue p'ra nós...
e então:
Cai
orvalho de sangue do escravo!
Cai
orvalho da face do algoz!
Cresce,
cresce, seara vermelha
Cresce,
cresce, vingança feroz...
E essa vingança pode ser social e
será, talvez, a revolução. A amante próxima, e cujos encantos chega a esquecer,
diz o poeta, em "Confidência":
Por
isso quando vês as noites belas
Onde
voa a poeira das estrelas
E
das constelações
Eu
fito o abismo que a meus pés fermenta
E
onde como santelmos da tormenta
Fulgem
revoluções...
Se às vezes, a dúvida o assoberba,
...levantando
a voz por sobre os montes
"Liberdade,
pergunto aos horizontes,
"Quando
enfim hás de vir?"
Outras ocasiões, vem-lhe a certeza:
"Oh
ver não posso esse labéu maldito!
Quando
dos livres ouvirei o grito?
Sim...
talvez amanhã!
.......................................
Moços,
creiamos não tarda
A
aurora da redenção...
Por isso, no poema que desejou pôr por
fecho aos outros d'Os Escravos,
despedindo-se deles, no Adeus, meu canto... resumiu seus desesperos e
esperanças:
E,
mesmo quando a turba horripilante,
Hipócrita,
sem fé, bacante impura
Possa
curvar-te a fronte de gigante,
Possa
quebrar-te as malhas da armadura,
Tu
deixarás na liça o férreo guante,
Que
há de colher a geração futura...
Mas,
não! crê no porvir, na mocidade,
Sol
brilhante do céu da liberdade!
Canta,
filho do sol da zona ardente
Destes
cerros soberbos, altanados!
Emboca
a tuba lúgubre, estridente,
Em
que aprendeste a reprimir teus brados;
Levanta
das orgias do presente
Levanta
dos sepulcros do passado,
Voz
de ferro! levanta as almas grandes
Do
sul ao norte... do Oceano ao Andes!
E
pendido através de dois abismos
Co'os
pés na terra e a fronte no infinito
Traze
a bênção de Deus ao cativeiro
Levanta
a Deus do cativeiro o grito!
LIBERDADE OU REVOLUÇÃO
Haveis de ter notado, de relance, que,
para resolver o problema de Escravidão, Castro Alves chega a apelar para a
Revolução, e a revolução com a República: não contente em ser um precursor,
seria também um profeta.
Não esqueceremos que o vate, capaz de
vaticínio, tinha esse dom divino de adivinhar. Não lhe faltou, ao gênio, nem
esse condão maravilhoso. Numa de suas poesias abolicionistas, as Estrofes do
solitário, ele o diz, precisamente aos moços:
Basta
de cobardia!... a hora soa...
.....................................
E
vós cruzais os braços... Cobardia!
E
murmurais com fera hipocrisia
—
É preciso esperar...
Esperar?
mas o quê? que a populaça
Este
vento que tronos despedaça
Venha
abismo cavar?
Ou
quereis, como o sátrapa arrogante
Que
o porvir, n'antessala, espere o instante
Em
que o deixeis subir?
Já se esqueceram do destino das
dinastias ineptas, da sorte de Luís XVI, e o poeta exclama:
Desvario
das frontes coroadas!
Nas
páginas das púrpuras rasgadas
Ninguém
mais estudou!
E,
no sulco do tempo, embalde dorme
A
cabeça dos reis — semente enorme
Que
a multidão plantou!
Assim havia de ser. O governo — que no
Brasil sempre foi a expressão de certas oligarquias parasitárias, e nunca do
povo — defendendo mesquinhos interesses, retardou a abolição da escravatura e
de tantas outras reformas reclamadas pela opinião pública, tornando impopular a
Coroa: quando veio a hora apertada das resoluções, imposta pela propaganda das
ruas e pelas insurreições e fugas nas fazendas de São Paulo e do Rio, já sem
tempo e a mais com outros descontentamentos, agora dos interessados que aos
primeiros se somaram, ruiu a Monarquia, sem veemência nem esforço. O Terceiro
Reinado, que teria por introito a emancipação dos cativos, foi frustrado,
porque o Segundo Reinado não soubera preparar e realizar essa abolição, exigida
pela consciência liberal do mundo, a que a maioria dos brasileiros não podia
ser insensível. Pactuando com os senhores de escravos até a undécima hora, para
os abandonar, in extremis, o trono ruiu mais depressa, porque esses o ajudaram
a cair. Isto que nós vemos hoje, Castro Alves o previra e a previsão só não
teve a completa exação sanguinolenta, porque, nem sequer a Coroa reagiu e a
aventura republicana achou, no primeiro instante, um povo de aderentes.
Joaquim Nabuco, colega de Castro Alves
em São Paulo, e que viria a ter ciúmes de sua glória literária, concedendo-lhe
apenas a de poeta social e abolicionista, quando, em 1873, ainda não ouvira a
sua própria vocação, chegado o cumprimento desta, omitiria qualquer alusão ao
nome dele na sua história de emancipação, não esquecendo entretanto o seu lugar
e o do pai... Nabuco, moço, liberal, talvez sem compromissos, também não quis
admitir fosse Castro Alves republicano. Mais tarde, proclamada a República, monarquista
impenitente e irônico à balbúrdia do novo regímen, magnânimo, chamou-lhe
"o poeta republicano do Gonzaga".
Nabuco fingia não ter lido ou ouvido estes versos, dos quais se lembraria mais
tarde, complacentemente,
Cantem
eunucos devassos
Dos
reis os marmóreos paços
E
beijem os férreos laços
Que
não ousam sacudir...
Ele... canta a liberdade, bastante
forte
Pra
levar de derribada,
Rochedos,
reis, multidões...
Mas, momentaneamente vencido,
Não
importa! A liberdade
É
como a hidra, o Anteu:
Se
no chão rola sem forças
Mais
forte do chão se ergueu.
E essa liberdade, ele a concebe com a
República, quase misticamente
...sonha
a escada
Que
também sonhou Jacob:
Cisma
a República alçada.
Porque ela é
República!
voo ousado
Do
homem feito condor!
Raio
de aurora inda oculto
Que
beija a fronte ao Tabor.
Como o poder dinástico dos reis,
era-lhe antipático o poder temporal dos papas: antes de 71 previa-lhe a
decadência e lhe dava o endereço cristão, como também antevia o crepúsculo dos
reis na Europa e o alvorecer das reivindicações proletárias:
Quebre-se
o cetro do papa,
Faça-se
dele uma cruz.
A
púrpura sirva aos pobres
P'ra
cobrir os ombros nus...
Não faltou quem lhe achasse ainda uma
previsão naquela poesia do Fantasma e a canção em que descreve o rei exilado,
coberto de cãs e que só tem por consolo às mágoas, o verso "último
refúgio": lendo-se hoje, de fato, a grande figura de Pedro II nos passa na
imaginação.
Notai bem que esse republicano é de
antes de 70, quando se publicou o célebre Manifesto, se fundou o Club
Republicano, se imprimiu a República: Castro Alves ainda aqui é um precursor.
Republicano, por oposição à monarquia,
como forma de governo que desejava mais liberal ou mais livre, não se limitava
ele a sonhar a liberdade apenas para o seu país; queria-a para todos os
oprimidos, escravos ou súditos, para a Grécia, para a Polônia:
Quando
a Polônia casta — essa Lucrécia nova,
Para
fugir a um leito, arroja-se a uma cova...
E
mata-se de nojo... aos beijos de um czar...
Como profeta, ele anunciava ainda a
ressureição dessas "nações cadáveres", sonhando-lhes:
O
sonho que os cadáveres renova,
O
amor que o Lázaro arrancou da cova...
e, com a vida, a liberdade.
O
POETA-PROFETA
Onde, porém, alcançou Castro Alves o
cimo de sua ideias generosas, liberais e humanitárias, foi naquela ode No meeting do Comité du Pain, em que
descreve o horror da Humanidade ao crime de 70, que apunhalava a França e ia
trazer a malvada hegemonia da Alemanha no mundo:
Já
que a terra estacou na órbita imensa
Já
que tudo mentiu — a glória! a crença!
A
liberdade! a cruz!
.........................................
Já
que o amor transmudou-se em ódio acerbo
Que
a eloquência é o canhão, a bala — o verbo
O
ideal, o horror!
E
nos fastos do século os tiranos
Traçam
com a ferradura dos ulanos
O
ciclo do terror
.........................................
Já
que é mentira a voz da Humanidade,
Já
que riscam da Bíblia a Caridade,
E
d'alma o coração...
E
a noite da descrença desce feia,
E
tropeçando em ossos cambaleia
Dos
povos a razão!
O poeta alça-se então ao apelo
profético com o tom divinatório do seu gênio, invocando os livres filhos de
América, para salvarem o mundo:
Filhos
do Novo Mundo! ergamos nós um grito
Que
abafe dos canhões o horríssono rugir,
Em
frente do oceano! em frente do infinito!
Em
nome do progresso — em nome do porvir!
.............................................
Nós
que somos a raça eleita do futuro,
O
filho que o Senhor amou qual Benjamim,
Que
faremos de nós... se é tudo falso, impuro,
Se
é mentira o progresso! e o erro não tem fim!
Não!
clamemos bem alto à Europa, ao globo inteiro!
Gritemos
— liberdade — em face da opressão!
Ao
tirano dizei — tu és carniceiro!!
És
um crime de bronze — escreva-se ao canhão!
Falemos
de justiça — em frente à mortandade!
Falemos
do direito — ao gládio que reduz!
Se
eles dizem — rancor — dizei — fraternidade!
Se
erguem a meia-lua, ergamos nós a cruz.
A América havia de ouvi-lo, e quando
quase cinquenta anos depois o mesmo gênio malvado premeditara a morte da
Civilização, foram eles, esses filhos do Novo-Mundo, para quem apelou, que nos
campos devastados de França, vingaram o ideal, redimindo a consciência do mundo
do maior pesadelo da história, e foi por eles, como anunciou Castro Alves, que
A
herança de suor vertida em dois mil anos
Há
de intacta chegar às novas gerações.
CASTRO ALVES — POETA ÉPICO
A forma desses cantos só podia ser
uma, e a musa de Castro Alves esteve à altura de seu generoso e heroico
coração: foram versos épicos, como nenhum poeta português ou brasileiro, antes
ou depois dele, os conseguiu maiores ou mais sonorosos. Pôde Alberto de
Oliveira dizer que "exceto algumas estrofes camonianas", não conhecia
em nossa língua versos tão vibrantes de heroísmo como alguns de Castro Alves.
O nome de Camões pronunciado neste
assunto, e não por mim, merece detença. De fato Os Lusíadas são incomparável obra-prima, cuja intenção final,
execução no detalhe, extensão no conjunto, não tem rival, e os colocam com
vantagem entre as grandes obras poéticas da humanidade. Não se trata, pois, de
uma comparação com Os Lusíadas, mas
de referência às estrofes ou aos versos propriamente heroicos da grande
epopeia. O seu objeto, uma empresa de navegação, — apesar dos perigos reais ou
imaginários, da querela de deuses no Olimpo, manhas e ardis dos infiéis
indianos, — é uma aventura pacífica e civilizadora, antes industrial e técnica,
que militar ou guerreira: daria poucas ocasiões a Camões de exercitar o seu
plectro grandioso: foi-lhe preciso recorrer a episódios da história lusitana, descrever
os tormentos e perigos do mar, para manter a narrativa à altura da fama e do
alcance da navegação.
Pode-se bem dizer que, propriamente
heroico, foi mais o assunto que a Alexandre Herculano coube, esse o majestoso
épico da prosa portuguesa.
Com efeito, no Eurico, no Bobo, na História de Portugal, em muitas páginas
das Lendas e Narrativas, ficaram
escritas as palavras mais ardentes e vibrantes que se devem ter lido e se podem
ler em nossa língua, inspiradas pela fé, pelo patriotismo, pela dignidade e
abnegação humanas, ao serviço de grandes causas. Herculano foi o épico da
epopeia portuguesa ao formar-se a nacionalidade, fiel à sua crença antiga,
independente na sua linguagem nova, raça diferenciada a este extremo da Europa,
"onde a terra se acaba e o mar começa", aí mesmo achando a sua
vocação civilizadora, e que seria Portugal. Camões foi o épico da epopeia
portuguesa, constituído Portugal, e que se vinha afirmar ao mundo nessa vocação
civilizadora que lhe coube, "por mares nunca dantes navegados", dando
a volta ao mundo, "e se mais mundo houvera lá chegara". Apenas
Herculano veio depois de Camões, quando já não podia recorrer ao verso, ainda
que tivera o gênio do poeta, porque o ciclo das epopeias poéticas estava
fechado e para uma grande obra só lhe restavam outras formas recentes de arte,
— o drama, o romance, a história, que ele devia adotar.
Vede bem que aqui me insurjo contra a
perenidade dos chamados "gêneros literários", como se fossem
comparáveis aos "gêneros biológicos".
Apesar dos nomes de convenção que
persistem, tanto não há gêneros literários, que estes nomes ou continuam a
servir a endereços diversos ou desaparecem mesmo umas espécies deles e por
outras vão sendo substituídas. Com aquela visão aquilina do seu gênio, que, se
não pensava, adivinhava, precedendo à filosofia e à estética de Benedetto
Croce, — Hugo, no prefácio do Cromwell,
esboçou essa teoria, uma das mais ousadas da história literária: "A poesia
tem três idades, correspondentes a uma época da sociedade: a ode, a epopeia, o
drama. Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos são épicos, os
tempos modernos são dramáticos... A ode canta a eternidade, a epopeia soleniza
a história, o drama pinta a vida... A ode vive do ideal, a epopeia do
grandioso, o drama do real".
Aí está; o gênero literário é
condicionado ao tempo, e os tempos mudam, mais depressa que os homens;
escrevia-se outrora uma Eneida, das
aventuras de um herói troiano, a Cartago e ao Latio; hoje se escreve Salambô, das aventuras de um povo dentro
e fora dessa Cartago, entre Tiro e Roma: um poema ontem, agora um romance. O
talento descritivo e a inspiração heroica de Vergílio e de Flaubert não serão
diversos, homens de gênio, sensivelmente comparáveis através das idades, nas
quais, entretanto, a humanidade muda de gosto e busca novidades, e ontem
cantava em verso heroico, com fantasias e invenções, conta hoje numa prosa
heroica, com miudezas e observações. Outrora uma aventura militar, a posse de
uma pequena cidade, Troia ou Jerusalém, dava um poema épico; agora uma imensa
guerra, onde os atos de heroísmo nunca foram maiores nem tão numerosos, onde
muitos milhões de homens se entrematam com os mais formidáveis engenhos de
destruição, e a terra inteira, no ar, nas trincheiras, nos subterrâneos, nos
próprios abismos do oceano, e o mundo vacila, desconjuntadas as nações, as
dinastias, as raças, os direitos, instituições políticas, econômicas, morais...
violências, anátemas e esperanças nunca imaginadas... e, entretanto isso não dá
o mais modesto poema épico, embora produza bibliotecas inteiras e subemergentes
de narrativas militares, documentos diplomáticos, livros de história, evocações
comovidas, processos-crimes, inquéritos sanguinolentos infindáveis, memórias
políticas indiscretas...
É que não há "gêneros literários",
fixos, para nesses moldes verter a humanidade as suas sensações e pensamentos,
e esses, embora os mesmos, têm ao menos a novidade de expressão, procurada, e,
por isso diversa, a forma literária.
Alexandre Herculano já não escreveria
um poema no seu tempo, e para traçar a epopeia das origens lusitanas teve de se
conformar à história: Hugo, que apesar de sua teoria, mais segura que o seu
gênio versátil, havia de tentar o último poema épico — A Lenda dos Séculos — realizou apenas, em versos às vezes líricos,
outros heroicos, uma história simbólica da humanidade. Não se foge ao seu
tempo. Esses cantos dispersos, sem unidade, vivem por si como trechos de
epopeia, sem um fio que os conduza, como a sucessão dos séculos, não seguidos,
que os inspiraram. Entretanto, se Hugo não conseguiu realmente mais um
verdadeiro poema épico, nem por isso na imensidade de sua obra, no seu lirismo
cósmico, no seu heroísmo dramático, nas suas objurgatórias sociais, políticas,
humanitárias, nos seus grandes quadros da história universal, o poeta épico,
talvez o maior que tenha existido, teve mil e uma ocasiões de se manifestar.
Também Castro Alves, poeta social, político, humanitário, ainda no delírio
cósmico ou apocalíptico do outro, como ele voz do seu tempo, foi também um extraordinário
poeta épico. Alberto de Oliveira teve, pois, razão de assim o considerar e de
dizer que, à parte algumas estrofes camonianas, não conhece na língua versos
tão vibrantes como os seus. Com efeito só aludiria a Camões, o maior, porque os
épicos menores portugueses somem-se naquela irradiação camoniana, como
asteroides junto do sol.
OS ÉPICOS NACIONAIS
Em nossa literatura, os cantos épicos,
ou porque os assuntos fossem miúdos ou o tempo deles transato, foram todos
medíocres: O Uraguay, de Basílio da
Gama, diminuto; Caramuru, de Santa Rita
Durão, diluído; Os Timbiras, de
Gonçalves Dias, ou a Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves Magalhães, sem interesse; finalmente, o Colombo, de Araújo Porto Alegre,
fatigante: nenhum deles é heroico, senão na intenção, manifestada pelo verso.
Do Uraguay salvam-se algumas
paisagens americanas; do Caramuru,
algumas prosaicas descrições, em boa linguagem: não sei se ficará alguma coisa
dos outros. Nem a Inconfidência, nem as guerrilhas da Independência, nem a
unidade do Império, nem as rebeliões nacionalistas ou republicanas, nem a
guerra do Paraguai, nem a proclamação da República, darão jamais um poema
qualquer. A história da conquista portuguesa na América, o drama da catequese e
da escravidão dos índios e dos Negros, a chacina dos Bandeirantes, a maravilha
da terra e a tenacidade da gente... darão livros fortes e completos,
interessantes e diversos, de gênero indefinido ou sem gênero, tais esses Os Sertões, de Euclides da Cunha, que
nem têm categoria literária, mas foram proseados certamente por um grande
épico, o Castro Alves da prosa nacional.
Poeta épico, foi, até agora, Castro
Alves o maior de sua terra. Nunca em nossa língua se ouviram cantos heroicos
tão emocionantes e tão elevados como esses poemas de Pedro Ivo, de Ode ao Dois de
Julho, de Deusa incruenta, do No meeting do Comité du Pain, de Visão dos mortos, do Navio Negreiro, do Adeus, meu canto...
Aí estão os versos mais vibrantes e
arroubados que já se escreveram em linguagem portuguesa, alguns tamanhos, que
nem os maiores, do mesmo Camões, os podem seguir e medir-se com eles.
Lembrai-vos daqueles imensos versos do clássico, quando conta, pelo Adamastor:
Estes
membros que vês e esta figura
Por
estas longas águas se estenderam...
C.
V., 59, e v. 3-4.
Quereis ver maiores, para quem o mar
não baste e os cimos da terra se toquem e os horizontes se aproximem, ouvi e
dizei-me depois, quais versos heroicos em qualquer literatura se podem comparar
a estes. É a Imprensa, "a
consciência do mundo":
Quando
Ela se alteou das brumas da Alemanha
Alva,
grande, ideal, lavada em luz estranha,
Na
dextra suspendendo a estrela da manhã...
O
espasmo de um fuzil correu nos horizontes...
Clareou-se
o perfil dos alvacentos montes
Dos
cimos do Peru — às grimpas do Indostan!
.................................................
Ergueu-se!...
olhou de roda os plainos do universo
No
peito das nações seu braço longo imerso,
Palpou-lhe
o estrepitar do estoso coração!...
Gênio
e Santa! a mulher um grito ergueu profundo
Abriu
braços de mãe para acalentar o mundo
Asas
de Serafim — p'ra abrigar a amplidão.
..................................................
Rugiram
de terror ao ver-lhe o rir sublime...
O
sátrapa, o chacal, a tirania, o crime...
O
abutre, o antro, o mocho, o erro, a escravidão!
Disse
a gruta p'ra o céu: — Que Deusa é esta ingente?!
O
espaço respondeu: — É a diva do Ocidente!
A
consciência do mundo! o Eu da Criação!
E
quando Ela surgiu... — os polos se abraçaram
O
Zenith e o Nadir — surpresos se escutaram!
O
Norte ouviu chorando o soluçar do Sul!
O
abafado estertor do servo miserando
Da
deusa no clarim... gigante, reboando
Clamou
da terra verde — ao firmamento azul!
Passa
uma visão de relâmpago da história universal:
Quando
a Bastilha vil tremia desraigada
E
da mole do sopé soava a martelada
A
catapulta humana, a voz de Mirabeau...
Quando
aquele ideal — Quasímodo do abismo,
Se
agitava a ulular dos reis no cataclismo,
Sineiro
que o rebate aos séculos tocou...
Eriçado,
feroz, suado, monstruoso,
Magnífico
de horror, divino, proceloso...
A
deusa se atirou nos braços do titão!
Mas
sentindo que o deus inteiriçado tomba...
Dos
tronos co'a madeira — arvora-lhe a hecatomba
C'as
púrpuras dos reis — acende-lhe um clarão!
....................................................
Salve,
deusa incruenta! imensa Divindade!
Barqueira
desse mar chamado — a Eternidade!
Que
às margens do Cocito embarcas os heróis...
Em
prol da humanidade, a Deus levas o grito...
Tens
os joelhos na terra! a boca no infinito!
A
meia-lua — aos pés! na cabeleira — os sóis...
UM PARALELO
Considerai agora que esse gênio épico
foi posto dos dezoito anos de um adolescente, aos vinte e quatro de um moço, ao
serviço de todas as causas nobres e generosas do seu tempo, do Abolicionismo,
da República, da Liberdade de Consciência, da Ressurreição das Nações
Oprimidas, de Paz e de Fraternidade Universal, sem uma vacilação, sem um
esquecimento, com uma constância e com uma antecedência que são ainda outros
méritos aos do seu apostolado.
Também Hugo teve a lira de cem cordas
para cantar todas as causas beneméritas do seu tempo, mas Hugo viveu mais de
oitenta anos e cantou a Revolução e o Império, Luís XVIII e Carlos X, Luís
Filipe e a República; ele mesmo se definiu como um "reflexo" do
tempo:
Mon âme aux mille voix que le Dieu que j'adore
Mit
au centre de tout comme un echo sonore.
Castro Alves durante os instantes que
viveu, entre menino e moço, viveu-os intensamente, com uma grande fé, um só
coração e um gênio épico incomparável; de seus lábios e de sua pena só saíram
cantos comovidos e entusiastas, pela bravura e pela liberdade, pela fé e pelo
amor, pela pátria e pela humanidade; foi antes um precursor, entre vidente e
profeta, que os outros seguiram e perseguiram, de quem se poderia dizer, também
com palavras próprias:
Quando
a fanfarra tocas na montanha
A
matilha dos ecos te acompanha
Ladrando
pelas pontas dos penedos...
Lembrai-vos da doutrina carlileana
"do herói": ele é messias, guerreiro, sábio ou político, também é
poeta; "o herói é o que exprime exteriormente, como lhe é próprio, sua
alma inspirada: inspiração que é a sua originalidade, sinceridade, gênio, sua
qualidade heroica; vive na esfera íntima das coisas, no Verdadeiro, no Divino,
no Eterno, que existem sempre, desconhecido do vulgo, sob os aspectos do Temporário
e do Trivial... por isso, o que ele diz será... e o mundo há de cumprir". Elevam-se
assim, os homens, como Castro Alves, a uma condição superior à própria
humanidade, heroica e divina, que lhes tributa, reconhecida e espantada, a
nossa admiração. Guilherme de Castro Alves resumiu esse julgamento, num verso:
Ele
era grande e bom — massa p'ra Deuses!
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