"Pego
o compêndio... inspiração sublime
P'ra
adormecer... inquietações tamanhas
Violei
à noite o domicilio — ó crime
Onde
dormia uma nação de aranhas"
Castro
Alves
Pensando em vós, estudantes, escreveu
um humorista, que somos o desespero de nossos pais até os vinte anos, para
sermos desesperados por nossos filhos, cerca de outros vinte depois. Assim vai
a vida: quer o destino que aqui mesmo paguemos as nossas dívidas; o que hoje
inquieta e aflige, será amanhã inquieto e aflito: a tristeza é que a ordem
natural não seja o contrário, que a mocidade venha antes com a inexperiência e,
portanto, o descuido de viver, enquanto provações e cuidados se acumulam, para
o fim, quando só nos resta a saudade, dessa alegre e feliz juventude que não
volta mais, como da flor do lótus disse o poeta, que em cem anos floresce
apenas uma vez...
NETOS VINGAM OS AVÓS
O avô de Castro Alves, português e de
condição conservadora, deveu ser contrariado pelo filho que adotou profissão
liberal e, logo no segundo ano de estudos médicos, os interrompia, para se
meter na tropa enviada contra uma sedição, a Sabinada, de 1837, bater-se, e ser
louvado pela sua bravura. Quando chegou a vez desse estudante, Antônio José
Alves, ser pai, e já era médico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia,
desejou ter um filho que pudesse formar com os recursos e vantagens de seu
tirocínio aperfeiçoado na Europa, disputado na clínica, aplaudido na cátedra,
e, todos três lhe haviam de recusar cumprir esse desejo, desviados para as
letras, como que vingando o avô... Até os vinte desesperamos os nossos pais,
para aos quarenta nos parecermos com eles, na mesma sorte, que nos reserva o
destino...
Os três filhos do Dr. Antônio José
Alves foram poetas: José Antônio, o mais velho, que prometia muito, talvez
demais, morreu precocemente, louco; Guilherme, o mais moço, não foi feliz, não
teve, imerecidamente, a consagração pública dele viria a dizer o segundo irmão:
"Cerca-te
o gelo, a morte, a indiferença,
E
são lavas, lá dentro, o coração..."
NO COLÉGIO
Esse, o grande Castro Alves, o do
meio, foi poeta, antes de o ser. Contou-me um seu colega de colégio que fora
seu decurião, e já era, a esse tempo, um menino sujeito a abstrações; desatento
ao que andava pela aula; muitas vezes chamou-o à ordem e só mais tarde, quando
lhe chegou a glória, compreendeu que o seu decurião já era poeta, sem versos,
desde esses mais verdes anos. Poeta não é quem anda sempre fora de si?
Desse colégio Sebrão, em 56 e 57,
passara para outro, em 58, o Ginásio Baiano, fundado pelo Dr. Abílio César
Borges, educador famoso, de nome nacional, que além de novos métodos
pedagógicos, abolição de castigos corporais, tinha por programa estimular a produção
literária precoce de seus jovens discípulos. Eram versos e discursos
pronunciados em festas cívicas, festejos íntimos, saraus de arte, e depois
publicados: os jovens Castro Alves não faltavam à colaboração e, a contragosto
do pai, versos deles foram reunidos nas coletâneas de 60 a 61. Castro Alves, o
nosso poeta, ensaiava o voo, traduzindo, nas aulas de latim e francês, odes de
Horácio e poesias de Hugo, em verso português. Distinguia-se por isso nessas
disciplinas, mas, ao invés, a aritmética lhe constituía um pesadelo. Ainda no
ano imediato, 62, quando foi para o Recife completar os preparatórios no curso
anexo à Faculdade de Direito, não conseguiu a matrícula, porque foi reprovado
em geometria.
Também, não devia estudar muito:
jogava bilhar, desenhava e fazia versos: — estudar, nunca foi o forte, ou o
fraco, dos estudantes... A um amigo escrevia, por essa época: "Minha vida
passo-a aqui numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando muito". Ia
de quando em quando à Soledade, diz ainda, porque aí havia uma menina — outra
ocupação dos estudantes... — formosa, de lindos cabelos negros, morena,
"sabes que sou doido pelas morenas", mas "flor sem
perfume", "coração leviano como o volver de seus olhos".
"Ela me diz que o seu coração é meu, mas eu penso que é do vento".
Considera-a, por fim, como um específico contra o spleen... aquele tédio romântico, de que tanto fala Álvares de
Azevedo. Naquele tempo, morria-se de aborrecimento aos dezesseis anos...
Apesar dessa idade, Castro Alves era
quase um homem, pela estatura; fino, esbelto, ligeiramente encurvado, como se a
cabeça lhe pesasse — a frase é de um amigo desse tempo que lhe descreve
romanticamente "a beleza dos olhos, a dourada palidez das faces, o negrume
intenso dos cabelos e sobretudo o sorriso angélico da fisionomia".
"Não era com certeza um belo modelo de estatuária, mas é impossível
encontrar-se um conjunto maior de graça e simpatia. Havia um não sei quê de
insinuante e de atrativo naquela criatura, que era impossível furtar-se à sua
influência". Um defeito, porém, descobre esse panegirista, seu colega Luís
Cornélio, — o orgulho. "Era orgulhoso, já naquele tempo, não sei de que
ele tinha orgulho, mas sei que já o tinha..." Seria talvez a consciência
ou a presciência de seu merecimento. Conta ainda o memorialista a predileção
dele pelas gravatas de cores vistosas, e o cuidado excessivo com a beleza das
mãos. "A alma desse menino era de uma pureza inexcedível, a inteligência
tinha lampejos que ofuscavam como relâmpagos — Hugo, em pequeno, devia ser
assim". Não é pequeno elogio para um estudante reprovado em geometria,
que, nesse ano de 63, só isto teria por obrigação — repetir esse exame. Enchia
o tempo com a convivência, os teatros, desenho e poesia. Num jornal acadêmico, A Primavera, de 17 de maio de 63,
publicou os seus primeiros versos abolicionistas: A Canção do Africano. Deste ano conservam-se Pesadelo, Meu Segredo, Cansaço, nos quais já aparece Castro
Alves. Nesse ano, ainda, conheceria, talvez apenas de aplaudi-la no teatro de
Sta. Isabel, talvez de desejá-la desde esse tempo, a atriz portuguesa Eugênia
Câmara, que despertava então ingênuos e fervorosos entusiasmos.
NA FACULDADE E... NA VIDA
Matriculou-se, finalmente, em 64, mas
não foi feliz na faculdade porque, tendo vindo à Bahia, deu assim oito ou nove
faltas que não logrou ver justificadas, perdendo por isso o ano.
Prossegue no imediato, ainda no
primeiro ano, fazendo dos lazeres que lhe dava a matéria já estudada, emprego
na atividade social, intelectual, e até sentimental. Foi desse tempo o seu
primeiro grande sucesso público, com a recitação d'O Século, a 10 de agosto de 65, no salão de honra da faculdade,
entusiasticamente aplaudido por admiradores, que já os contava numerosos.
Passou então a residir na rua do Lima, em Santo Amaro, diz outro seu amigo,
Regueira Costa, "onde o fui encontrar no convívio de sua encantadora
Idalina, a preparar o poema d'Os Escravos".
Dessa Idalina ficaram reminiscências no poema Aves de Arribação, rimado anos depois, e que é um primor de poesia
lírica. Devia ser em setembro:
"A
primavera desafia as asas
Voam
os passarinhos e os amantes!
Um
dia eles chegaram. Sobre a estrada
Abriram
à tardinha as persianas;
E
mais festiva a habitação sorria
Sob
os festões das trêmulas lianas."
"Quem
eram? Donde vinham? — Pouco importa
Quem
fossem da casinha os habitantes
—
São noivos — as mulheres murmuravam!
E
os pássaros diziam — são amantes!
Eram
vozes — que uniam-se co'as brisas
Eram
risos — que abriam-se co'as flores
Eram
mais dois clarões — na primavera!
Na
festa universal! — mais dois amores!"
Outra reminiscência é a anedota que
representa Augusto Álvares Guimarães, seu amigo e colega, entrando-lhe
esbaforido pela casa "a casa branca à beira do caminho", "o
asilo do amor e da poesia", a informá-lo que havia sido chamado a exame,
dando-lhe no leito em que o supunha jazer, todo enrolado em lençóis, uma
palmada de aviso, como para obrigá-lo a levantar-se... Recebera-a, ao invés, o
bonito pecado, essa que fazia Castro Alves esquecer-se até do dever tremendo do
exame. Por isso mesmo nele seria aprovado simplesmente, em Direito Romano e
Direito Natural, embora se diga que foi brilhante o ato, e minguada a
graduação: — também é de regra, nunca ser estudante aprovado devidamente... O
caso, porém, é que ficara ressentimento político e religioso, da poesia O Século recitada pelo estudante na
festa da faculdade, que tinha sonoridades de revolta contra as ideias aceitas,
conservadoras e ultramontanas, e pelas incitações liberais e emancipadoras,
confiadas à mocidade:
"Luz!
sim: que a criança é uma ave
Cujo
porvir tendes vós;
No
sol é uma águia arrojada,
Na
sombra — um mocho feroz.
Libertai
tribunas, prelos...
São
fracos, mesquinhos elos...
Não
calqueis o povo-rei!
Que
este mar d'alma e peitos
Com
as vagas de seus direitos,
Virá
partir-vos a lei.
Quebre-se
o cetro do Papa,
Faça-se
dele uma cruz.
A
púrpura sirva ao povo
P'ra
cobrir os ombros nus.
Ao
grito do Niágara
Sem
escravos Guanabara
Se
eleve ao fulgor dos sóis.
Banhem-se
em luz os prostíbulos,
E
das lascas dos patíbulos
Erga-se
estátua aos heróis!
Basta!
Eu sei que a mocidade
É
o Moisés no Sinai;
Das
mãos do Eterno recebe
As
tábuas da lei! marchai!
Quem
cai na luta com glória,
Tomba
nos braços da história,
No
coração do Brasil!
Moços,
do topo do Andes,
Pirâmides
vastas grandes
Vos
contemplam séculos mil!"
Esse "simplesmente",
atribuído a tal causa, doeu ao poeta que então dissera, prosaicamente, e no
calão de examinando: "Um lente talentoso vinga-se do estudante,
"espichando-o"; um "burro", dando-lhe um coice". Em verso,
saberia melhor apostrofar.
Passa Castro Alves as férias de 65-66
na Bahia, onde viera visitar o pai enfermo e a cuja morte assistiu.
Torna para Pernambuco, em começo de
66, e funda à rua do Hospício, uma sociedade abolicionista, da qual fizeram
parte também Rui Barbosa, Plínio de Lima, Augusto Álvares Guimarães, Regueira
Costa e outros colegas seus. Além disto, acende-se a campanha teatral por duas
atrizes festejadas, que reúnem em torno dois partidos: Castro Alves é chefe de
um em prol de Eugênia Câmara, Tobias Barreto, do outro, por Adelaide Amaral.
Amigos até aí, rompem-se as relações entre ambos: da desavença chegam às
invectivas. Tobias, mais violento, pragueja e insulta, em verso. Apesar de
presumir-se grego, não frequenta as cortesãs:
"Meus
instintos não esmago
Não
sonho, não embriago
Nos
banquetes de Friné..."
Castro Alves responde de improviso
atingindo o outro, e lhe aludindo à dama que não podia ser propriamente
comparada a uma hetera, pois era casada:
"Sou
hebreu... não beijo as plantas
Da
mulher de Putifar..."
Parece que o nosso poeta levou a
melhor, porque Tobias, corrido, havia de dizer tomando o empréstimo de uma
imagem a Hugo embora vertida em má língua:
"De
tantas pedras que atiram-me,
Hei
de fazer um altar..."
Como se não bastasse a causa da
Abolição, a do Amor, defendendo a sua dama, que então o enfeitiçava todo, ainda
a República, pregada na praça pública, era seu ministério. Por ocasião de ser
dissolvido um meeting republicano,
improvisara uma das suas inflamadas poesias, da qual apenas se conservam estes
dois versos, significativos:
"A
praça, a praça é do povo,
Como
o céu é do condor..."
De outra feita numa questão Ambrósio
Portugal, ao povo exaltado improvisa algumas estrofes, recitadas da janela de
uma casa à rua do Imperador, que haviam de ecoar nos corações jovens que o
ouviam:
"Moços!
A inépcia nos chamou de estúpidos
Moços!
O crime nos cobriu de sangue,
Vós,
os luzeiros do país erguei-vos!
Perante
a infâmia ninguém fica exangue.
Protesto
santo se levanta agora,
De
mim, de vós, da multidão, do povo;
Somos
da classe de justiça e brio,
Não
há mais classe, ante esse crime novo.
Sim!
mesmo em face da nação, da pátria,
Nós
nos erguemos com soberba fé;
A
lei sustenta o popular direito
Nós
sustentamos o direito em pé!"
Ainda teria tempo para estudar o
Direito canônico e o Direito público e constitucional, quem assim sustentava o
"direito em pé"? Talvez, mas foi-lhe melhor que estudar ter na mesa
de exame um lente liberal e talentoso — Aprígio Guimarães, que o admirava, e
até, além de sonoros discursos, fazia talvez também poemas clangorosos. Como
quer que fosse, possuía eloquência festejada, o que lhe mereceu, de invejosos,
a pecha de só dizer "palavrões". Revidou, com solene desprezo, em uma
réplica-açoite:
"Palavrão...
palavrão... só diz quem pode...
Palavrão...
palavrão... não diz quem quer..."
Aprígio Guimarães defendendo-se,
defendia a Castro Alves contra a increpação muito repetida, a das suas
"bombas", como se a sua musa, às vezes épica, não conhecesse ainda
mais os acentos ternos e melodiosos, como se não fosse da História repetir-se,
e já o divino Ésquilo não tivesse sido acusado por Aristófanes, de dizer também
esses mesmos "palavrões"...
Nessa época, os pontos de exame eram
tirados com antecedência de vinte e quatro horas, e o estudante chamado
procurava colega ou amigo, que debatesse com ele o assunto sorteado: — era o
que se chamava procurar "uma objeção" — espécie de training ou treinamento, como fazem os
campeões de box com os seus managers ou treinadores, e os adestram
para a luta definitiva — também assim os examinandos se adestravam, para a
dialética em público com os mestres que os iam arguir e combater, no ato de
exame. Conta Regueira Costa, não sem vanglória, que serviu de parceiro a Castro
Alves, e no dia seguinte o poeta, bem treinado, "deslumbrou o
auditório", discutindo com Aprígio Guimarães sobre "o poder temporal
do Papa", assunto no qual estavam ambos de íntimo acordo, aludindo-se, na
brilhante controvérsia, a estrofes d'O
Século, vingando o poeta da aprovação medíocre do ano anterior, por essa
mesma causa, com plena aprovação.
Feitos os atos de exame, refugia-se o
poeta com a sua amada num arrabalde do Recife, no Barro, caminho de Tigipió e
Jaboatão, compondo um drama, para ela: em fevereiro de 67 estava terminado o Gonzaga ou a Revolução de Minas, que
Eugênia Câmara devia representar, amorosamente criado para ela o papel de
Maria: idealmente o poeta se encarnava em Gonzaga,
emprestando-lhe sentimentos cívicos e ardoroso entusiasmo, que o outro não
teve.
Esse ano de 67 perdeu-o para os
estudos Castro Alves, porque, em março veio com sua dama à Bahia, para rever a
família, e o lar paterno, enquanto a atriz torna ao teatro e em setembro
consegue mesmo, na plateia do Teatro São João, representar o Gonzaga com o auxílio de alguns atores e
amadores de boa vontade.
A terra natal, porém, não lhe era
propícia, surgiam-lhe invejosos, como os que deixara no Recife, e a voz pública
comentava o escândalo de uma ligação, que se ostentava sem recato, entre rapaz
conhecido e amado da sociedade, e cômica que não tinha renome de virtuosa. Além
disto, Castro Alves ansiava por vir ao Sul, ao Rio, onde esperava encontrar a
glória, a São Paulo, em cuja gloriosa faculdade queria terminar o seu curso.
Em fevereiro de 68, com Eugênia,
embarca, de fato, para a corte. No Rio é recebido festivamente por toda a
imprensa; sobe à Tijuca, para apresentar-se a José de Alencar, a quem por carta
o recomendara Fernandes da Cunha, "Cícero que vinha trazer Horácio";
no Correio Mercantil carta pública do
príncipe de nossas letras a Machado de Assis, então potentado da crítica
literária, faz-lhe o maior encômio, e pede que o apresente aos meios
intelectuais, servindo de "Vergílio do jovem Dante". Só as comparações
eram uma sagração: o reticente Machado de Assis também se entusiasmou: "a
musa do Sr. Castro Alves abre os olhos em pleno Capitólio".
A uma assembleia de letrados é lido o Gonzaga, na redação do Diário do Rio de Janeiro, que aplaudem
entusiasticamente ao formoso poeta, modesto na sua atitude, romanticamente
vestido de preto, lembrando Eurico — o
cavaleiro negro. Depois dos competentes, o povo: da sacada desse diário
carioca, à passagem de uma manifestação popular em regozijo pela vitória de
Humaitá, profetiza, em soberbas estrofes, que ao Brasil,
"O
vil tirano há de beijar-lhe os pés..."
NA FACULDADE DE SÃO PAULO
Finalmente, em fins de março de 68,
via Santos, estava ele em São Paulo, e matriculado no terceiro ano jurídico,
discípulo de José Bonifácio, que ensinava Direito civil e do Conselheiro Manuel
Dias de Toledo, professor de Direito criminal: aquele, deputado, pouco depois
levado à Câmara, mas pela dissolução desta, ao meio do ano, em agosto, de novo
em São Paulo. Castro Alves, a primeira impressão que confessa é esta — acha-se
em São Paulo, "ouvindo o grande José Bonifácio". Entre o mestre e o
discípulo a admiração mútua apaga a diferença e aproxima a distância: em breve,
lado a lado, passeariam juntos. Teriam ocasião de medir-se, as alturas andinas
do gênio do poeta e o do orador. "Num rapto sublime" diz um jornal do
tempo "foi Castro Alves quem interpretou os sentimentos liberais da
mocidade quando José Bonifácio tornou à sua terra, após a ascensão inesperada
dos conservadores, por um ato do poder pessoal. Num banquete a José Bonifácio,
mestre e alunos — que alunos! — Joaquim Nabuco preside... Rui Barbosa faz a sua
estreia... Américo de Campos saúda ao moço poeta, de vinte e um anos apenas...
como o "representante democrático das províncias do norte..."
A multidão, conquistara-a, confirmando
as credenciais de Alencar e a amizade de José Bonifácio, em festas de arte, no
salão da Concórdia, promovidas pelo Arquivo Jurídico, ou pelo Ateneu Paulistano. Os jornais
acadêmicos, nesta época, eram prestigiosos, e sua redação disputada pelas mais
nobres inteligências como se fora a direção de um partido ou um posto na
representação nacional. Nesse ano de 68, Martim Cabral Moreira dos Santos é
eleito redator-chefe da Imprensa
Acadêmica, e Joaquim Nabuco vem a público declarar que não fora candidato,
entre sincero e ressentido: "não quiseram nem eu queria". O Ateneu Paulistano elegia seu presidente
a Rui Barbosa, em lugar de Joaquim Nabuco, cujo mandato expirava.
O partido de Nabuco deixava o poder, o
de Castro Alves, bem que não houvesse antagonismo entre ambos, subia, e cada
vez mais, no conceito público. Onde se apresentasse, reclamava o povo uma
poesia — O Século, a Visão dos Mortos, Pedro Ivo... e era o mesmo estrepitoso triunfo. Contou-me um
contemporâneo, Bueno de Andrade, então de tenra idade, que o pai lhe chamara a
atenção: "Atende bem, no futuro ouvirás falar de um grande homem, esse
jovem poeta, que estamos aplaudindo". Outro, amigo dele e dos seus
dedicados, Carlos Ferreira, escreveu: "O grande Castro Alves! como diziam
todos, na Academia e fora dela..." "quando ele recitava, toda a gente
que o ouvia tinha arrepios de assombro e enxergava na esbelta e simpática
pessoa do jovem acadêmico mais um semideus do que um poeta, menos um poeta que
um vidente e nunca se fartava de o ouvir. Ele também, valha a verdade, nunca se
fartava de recitar, e seria capaz, se instassem, de passar a vida inteira
declamando as suas inspiradíssimas estrofes".
O SÃO PAULO DE CASTRO ALVES
O São Paulo, de então, se era uma
pequena cidade provinciana, e não, como hoje, — a outra capital do Brasil, —
tinha uma intensa vida espiritual, que essa nunca mudou. As ruas mais centrais,
como a de São Bento, ou do Imperador, agora marechal Deodoro, que hoje têm
palácios, eram todas de casinhas baixas, de rótulas escuras, pelas quais
espiavam de dentro, às vezes, olhos negros curiosos. Quando não se escondiam
atrás das rótulas, disfarçavam-se as moças bonitas indo à missa ou ao teatro,
nas amplas dobras das mantilhas de renda. Castro Alves achava que tais casas
negras pareciam feitas antes do mundo, tais ruas, de tão desertas, feitas
depois do mundo...
O estudante, esse, era o dono da
terra, indo e vindo à faculdade, que então vulgarmente se chamava a Academia,
escrevinhando nos jornais, promovendo festas literárias, passando pelo Garraux,
de sempre, que então, como agora, vendia os mesmos livros, colarinhos, bengalas
e chapéus, à mesma clientela, culta e elegante. Apesar dessa vida de atividade
dispendiosa, vivia facilmente e ricamente com 80 ou 100 mil reis mensais: era a
mesada farta de Castro Alves, Rui, Nabuco, Barros Pimentel... José Felizardo
Júnior, estudante e poeta, do Rio Grande, companheiro de casa de Castro Alves
na rua do Riachuelo, e a quem ele dedicou o poema Ashaverus e o Gênio, esse
era nababo e tinha 200 mil réis de mesada, desperdício que lhe estragou a vida,
perdulariamente. Apesar do ensino obrigatório, das chamadas contínuas à lição,
e das sabatinas que eram, ao tempo, efetivamente todos os sábados, havia
concessões amáveis para certos alunos. Castro Alves, por exemplo, não ia às
aulas, também não saía de casa, diz um seu companheiro de
"república", Carlos Ferreira, fumando, escrevendo, lendo ou proseando
inexaurivelmente.
COMO ESTUDAVA
Quando ia, de raro em raro, à
Academia, era para ajustar contas com o bedel, e fazer-se ver pelo lente:
durante a lição entretinha-se em rimar seus versos, enquanto o Direito civil ou
criminal era explicado, incansavelmente: só a torrente encachoeirada da
eloquência de José Bonifácio conseguia prendê-lo e arrastá-lo sob a sua
fascinante grandeza, de cimos inacessíveis e insondáveis abismos... Quando não
era ele, para não perder tempo, fazia versos... Referiu-me Barros Pimentel que
o vira assim, rimando as estrofes do Laço
de fita.
"Não
sabes criança? Sou louco de amores...
Prendi
meus afetos, formosa Pepita...
Mas
onde? No templo, no espaço, nas névoas
Não
rias, prendi-me
Num
laço de fita."
Castro Alves pela sua vida airada
notoriamente ligada à de uma atriz, nem casta nem cauta, evitava frequentar a
sociedade. Entretanto, assediado de convites, uma vez ou outra, nos dias de
festa nacional, em que o patriotismo desculpava a ousadia, aparecia nos salões,
ao 2 de julho, data baiana, ao 7 de setembro, data paulista, e se recitava,
dançava, também fazia como os outros estudantes, pois que tinha mocidade
desejosa e expansiva — namorava. Formosas poesias líricas são impressões desses
momentos. O Adeus de Tereza, talvez a
Adormecida, esse Laço de Fita, relembram tais ocasiões. Dizia-se ao tempo que essa
"formosa Pepita" era uma linda rapariga de nome Maria Carolina de
Almeida Torres, enteada de uma irmã de Álvares de Azevedo... Recentemente, tive
confidência de que fora Sinhá Lopes dos Anjos, filha de um médico conceituado,
amigo do poeta, o qual dera esses versos à inspiradora deles, em meio de um
baile, na casa paterna, à rua do Imperador...
Seriam essas, seriam outras. Lamartine
só fez versos a Elvira... mas Elvira fora Graziela, fora Julie Charles, fora
Mlle. Birch, depois Mme. Lamartine, fora finalmente Mlle. Lamartine... Haverá
poesias "circulares" que andem de lindas em lindas mãos, e façam bater
ardentes corações crédulos que por eles bateu também o coração do poeta.
Por isso, e por tudo, se Nabuco depõe
que: "Vimo-nos (ele e Castro Alves) um ano inteiro, dia por dia e nunca o
vi dar um momento de atenção às realidades da vida, nem às ambições da mocidade",
como se não fora deste mundo; se Barros Pimentel acha-o incapaz de atender
sequer a estudos mesmo perfunctórios de direito, quando o queria, embora com
esforço, podia Castro Alves mostrar-se estudante, como qualquer e obter as
notas precisas que permitiam, depois, os exames felizes; contou-me Rodrigues
Alves que lhe ensinara uma sabatina, e, chamado com o poeta, tirara este uma
nota boa, e ele a única nota sofrível do seu curso.
Não era, porém o seu forte, nem
atender às aulas, nem mesmo ir à faculdade: quando isto ocorria, procurava a
convivência dos amigos, os aplausos explícitos ou silenciosos da curiosidade,
que sentia despertar; às vezes apenas o eco que suas poesias publicadas no Ypiranga, na Independência, no Arquivo,
na Imprensa Acadêmica, não deixavam
de provocar. De uma feita, lembra-se Dídimo da Veiga, seu contemporâneo, aqui
entrara ao lado dele no saguão da Academia, quando veem na parede escritas
algumas quadras do poeta, da poesia Rezas,
a que um comentário jocoso frisava a enormidade:
"Na
hora em que a terra dorme
Enrolada
em frios véus
Eu
ouço uma reza enorme
Enchendo
o abismo dos céus
Acendem-se
os bentos círios
Dos
vagalumes sutis...
Ave!
— murmuram os lírios!
Ave!
— dizem os covis!
Nos
boqueirões há soluços...
Tem
remorso o vendaval...
O
mar se atira de bruços
Co'as
barbas pelo areal.
As
nuvens ajoelhadas
Nos
claustros ermos e vãos,
Passam
as contas douradas
—
Das estrelas — pelas mãos..."
Castro Alves, ao sentir a crítica,
olímpico, o seu desdém à altura do seu gênio, sacudira os ombros e dissera para
o seu colega, respondendo ao aleive da parede: "Não tenho culpa se as
grandes orelhas não permitem ouvir sons finos e delicados..." Não se dirá
que sendo ameno no trato, modesto na atitude, não tivesse razão de orgulho, não
o manifestasse quando ferido. Como, porém, sucede aos moços, doía-lhe muito
qualquer pública ou ainda apenas divulgada censura.
OUTROS CUIDADOS
Por isso quando outros cuidados, os de
amor, lhe tiravam o estro, para responder aos detratores, e consolar-se a si
mesmo traduzia aquela longa poesia de Hugo A
Olímpio datada daqui de São Paulo e que revela um estado de alma. Coincidia
o período de tensão amorosa, que havia de trazer tantas atribulações ao poeta.
Eugênia Câmara, já no Recife, ou na Bahia, dizem que lhe era infiel; em São
Paulo, morando sob outro teto, desviado ele nas suas festas literárias, ela nas
suas representações teatrais no São José,
ou no Provisório, depois Apolo, menos dissimulada e mais erradia,
viria o poeta a compreender e a ralar-se num doloroso ciúme, que tem suas
pausas e não raro o encanto da reconciliação. Um destes momentos ele o
descreve, compondo um recitativo para a comédia Meia hora de cinismo, peça de costumes acadêmicos, de França
Júnior, que é um primor de graça e de humorismo. Ela vos evocará, melhor que
longas páginas, a vida airada dos estudantes de 68, em São Paulo:
"Que
noite fria! Na deserta rua
Tremem
de medo os lampiões sombrios.
Densa
garoa faz fumar a lua,
Ladram
de tédio vinte cães vadios.
Nini
formosa! porque assim fugiste?
Em
balde o tempo à tua espera conto.
Não
vês, não vês?... Meu coração é triste
Como
um calouro quando leva ponto.
A
passos largos eu percorro a sala
Fumo
um cigarro que filei na escola...
Tudo
no quarto de Nini me fala
Em
balde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me
o relógio cinicando a um canto:
"Onde
está ela que não veio ainda?
Diz-me
a poltrona: "Porque tardas tanto?
Quero
aquecer-te, rapariga linda".
Em
vão a luz da crepitante vela
De
Hugo clareia uma canção ardente;
Tens
um idílio — em tua fronte bela...
Um
ditirambo — no teu seio quente...
Pego
o compêndio... inspiração sublime
P'ra
adormecer... inquietações tamanhas...
Violei
à noite o domicílio, ó crime!
Onde
dormia uma nação... de aranhas...
Morrer
de frio quando o peito é brasa...
Quando
a paixão no coração se aninha!
Vós
todos, todos, que dormis em casa
Dizei
se há dor que se compare à minha."
"Nini!
o horror deste sofrer pungente
Só
teu sorriso neste mundo acalma...
Vem
aquecer-me em teu olhar ardente,
Nini!
tu és o cache-nez dest'alma.
Deus
do boêmio!.... São da mesma raça
As
andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem
de mim se a primavera passa
Se
já nos campos não há flores de ouro
E
tu fugiste, pressentindo o inverno
Mensal
inverno do viver boêmio...
Sem
te lembrar que por riso terno
Mesmo
eu tomara a primavera a prêmio...
No
entanto ainda do Xerez fogoso
Duas
garrafas guardo ali... Que minas!
Além
de um lado o violão saudoso
Guarda
no seio inspirações divinas...
Se
tu viesses... de meus lábios tristes
Rompera
o canto... Que esperança inglória!
Ela
esqueceu o que jurar-lhe vistes
Ó
Pauliceia, ó Ponte Grande, ó Glória!
Batem!
Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se
as trevas... fabricou-se a luz...
Nini!
Pequei!... dá-me exemplar castigo!
Sejam
teus braços... do martírio a cruz!..."
Nem sempre havia de ser nesse tom de
humorismo que a sua lamentação teria eco: em julho, num Hino ao Sono, que
invoca, como consolo, vê-se que já não é mais a amada que lhe provoca a amorosa
insônia: mas em agosto, Boa Noite, a
mais sensual poesia lírica que já se escreveu, há como que uma reconciliação,
transbordante de paixão satisfeita. Em outubro, havia de ser representado o Gonzaga, por Joaquim Augusto, o primeiro
ator brasileiro, e era Eugênia ainda a Maria que o poeta desejava.
REPRESENTAÇÃO DE "GONZAGA”. EXAME
Essa representação do Gonzaga em São Paulo valia tanto para
Castro Alves que suprime a da Bahia, como uma caricatura que fora, e conta esta
como a primeira que ia ter seu drama. A razão disto, disse ele ao seu
intérprete: "O meu trabalho precisa de uma plateia ilustrada. Precisa
mesmo de uma plateia acadêmica. O lirismo, o patriotismo, a linguagem, creio
que serão bem recebidas "por corações de vinte anos, porque o Gonzaga é feito para a mocidade". A
mocidade de São Paulo o compreendeu e foi uma ovação entusiástica a que recebeu
nessa noite de 25 de outubro de 68 sentindo ecoarem, como rebate cívico e
liberal, as suas clangorosas notas de abolicionista e de republicano, que ali
se achavam fundidas numa forma de arte considerada, ao tempo, como a mais alta
e mais completa, porque o teatro para esses românticos era uma tribuna e uma
escola e até, para Castro Alves "um altar".
Dera São Paulo ao poeta, além de todas
as consagrações que pudera almejar, todas as inspirações para completar o ciclo
de seus imortais poemas. Se do Recife trouxe a maior parte das poesias que
formariam Os Escravos, aqui
escrevera, destes, os mais perfeitos dos seus cantos épicos abolicionistas — O Navio Negreiro e as Vozes d'África.
Foi aqui, segundo confessa, que os
concluiu. Além dos versos épicos abolicionistas e republicanos, os encantadores
versos líricos, os mais formosos dos seus e dos que no Brasil foram entoados — Hino do Sono, O laço de fita, Boa Noite, o
Adeus de Teresa, Ashaverus e o Gênio, Ao ator Joaquim Augusto, Adormecida...
Os atos de exame começavam cedo, nesse
tempo, em meados de outubro. Escrevendo ao ator Joaquim Augusto para
convencê-lo a representar o Gonzaga,
diz-lhe o poeta: "o quinze de outubro está a bater às portas e chamar os
espíritos para os sonhos de férias, a dar cabo dos jornais acadêmicos, a
mandar-nos pensar nos malditos atos". Quase não pode fazer Castro Alves
esses atos de exame porque, das faltas que dera, estava pelo regulamento
privado da chamada. Requereu, porém, e foram tão boas as informações dos
lentes, que a permissão lhe foi concedida. Tais lentes, que desculpam faltas a
um Castro Alves, como o hão de aprovar? Por certo que muito bem! O seu amigo
Augusto Guimarães soube na Bahia que fora brilhante o exame; menos que a Castro
Alves, devemos por isso felicitar a José Bonifácio e ao Conselheiro Manuel
Dias...
RAPAZES DE SÃO PAULO
Depois, foi a ruptura com Eugênia
Câmara. Para distrair os seus cuidados o poeta fumava, passeava, e, fugindo à
convivência, saía pelas cercanias da cidade, a caçar. Um dia nefasto, a 11 de
novembro de 1868, "no arrabalde do Braz", diz seu colega Brasílio
Machado, "nos campos então baldios, da Mooca", precisa Bueno de Azevedo
Filho, aconteceu-lhe um desastre. Transpondo um valo, a arma, de boca voltada
para baixo, dispara, e a carga se emprega toda no calcanhar esquerdo.
Arrasta-se daí até a casa, leva-o para o centro da cidade, à rua do Imperador,
o seu médico, amigo e conterrâneo, Dr. Lopes dos Anjos, e começa o martírio do
poeta, que em São Paulo duraria seis longos meses. Os padecimentos pulmonares
acordaram, e hemoptises, a 30 de março, e 1º de abril, com o seu horror e a sua
desesperança, prostaram-no, inconsolavelmente. "Fez-se um cadáver o poeta
ardente..."
Essa desgraça não tocou entretanto à
ingrata rapariga, a quem tanto ele dera de amor, de gênio e até de
consideração. Mas não ficou por isso à míngua... Como na Vie de Boheme de Henrique Murger, que a mocidade desse tempo lia
enternecida, esses rapazes amigos de São Paulo, folgazões e inconsiderados nos
bons dias de festa, cerraram fileira, para se oporem ao infortúnio como se ele
fora a musa de todos eles, e em torno do poeta se revezavam na solicitude, no carinho,
na abnegação e no sacrifício: foram eles, Américo de Campos, Francisco de Paula
Rodrigues, Aureliano Coutinho, Campos de Carvalho, José Felizardo, Carlos
Ferreira, Brasílio Machado, Ferreira de Menezes, e, sempre, seu médico e seu
amigo, Lopes dos Anjos. Em carta escrita a esses amigos e irmãos de São Paulo,
quando a 21 de maio de 69 chegara ao Rio e se confessa, o coração aberto a eles
— "a cada dor que me lacerava, tinha uma mão de amigo para
apertar..." "Seis meses vividos na comunhão mais santa — na comunhão
do pensamento, seis meses em que a minha cabeça desfalecida encontrava sempre
um bom coração onde repousar..."
Não é tocante? Esses rapazes de São
Paulo, outros como vós, em meio das tontices da juventude, chegada a hora da
aflição de um dos seus, aquele que não vivia mais perto da convivência deles,
mas que não lhes saía nem do coração generoso, nem da inteligência
entusiástica, durante esses seis longos meses, junto do poeta moribundo, fazem
de sua família, substituem-lhe todos os carinhos do amor, sofrem com ele, e só
o deixam partir quando o reclamam para o Rio e para a terra natal... Vêm com
ele a Santos e um deles, Rubino de Oliveira, ainda representando os outros, o
leva ao Rio. Se já tivestes tempo de ler Platão, haveis de ter visto o retrato
inesquecível da mocidade de seu tempo que passa nos Diálogos: inteligentes, meigos, sutis, corajosos, esforçados,
generosos... — é Fedro, é Fedão, é Apolodoro, é Charmide e Lisis, Cherofônio,
Teoteto, até o próprio Alcibíades no Banquete...
— são todos os tocados pelo divino gênio de Sócrates, alegres com ele nos dias
felizes, que o vão chorar no de aflição... Se mudardes o mestre pelo discípulo
e os puserdes em torno desse outro jovem e santo Platão, tereis representado Castro
Alves e seus amigos.
Rapazes de São Paulo, vós mereceis a
comovida gratidão de todos os que amam o poeta, cujo esplêndido gênio teve à
sua altura o vosso magnânimo coração. Foi isso principalmente o que eu vos vim,
de longe, dizer aqui, e nesta hora de comemoração, representando a memória de
Castro Alves!
CASTRO ALVES — RETRATO DA MOCIDADE
Deixai-me, porém, antes das palavras
de despedida, recapitular.
Contei-vos a vida efêmera e ardente de
Castro Alves, contando a sua vida de estudante, que outra coisa ele não foi;
nem ele quis ser outra coisa. Quando pensou mandar um punhado de seus versos
como lembrança a seus amigos, essas Espumas
Flutuantes, dos mais formosos livros que o Brasil já produziu, no
frontispício não esqueceu o seu título de glória: "estudante do quarto ano
da Faculdade de Direito de São Paulo". Como estudante, foi um aluno
singular — levava faltas, não ia à Academia, perdia os anos, mas ainda assim,
tinha quem lhe ensinasse as sabatinas, quem lhe bem informasse os requerimentos
de escusa, e quem o aprovasse, entusiasticamente.
Corrido o tempo, uma das gerações que
por aqui passaram resolve um dia gravar nestes muros veneráveis os nomes de
alguns de vós que viveram sob este teto abençoado. E que nomes serão esses? De
graves jurisconsultos, de advogados célebres, de homens públicos conspícuos?
Não; apenas, acompanhado de dois nomes de outros poetas, como ele, o de Castro
Alves. Quem ora por vós e invoca esses deuses tutelares, é o que de futuro será
um ilustre embaixador, mas é apenas então e sempre nobre poeta, é Magalhães de
Azeredo. Parece-vos isso justiça, cultores do direito?
Sim, respondo por vós: Castro Alves se
não foi bom estudante, perfeito bacharel, advogado, juiz, jurisconsulto, foi
mais, e mais é para vós, porque é o vosso ideal de moços, realizado... Esta
gloriosa faculdade, se é o templo do Direito, sois vós os serventuários desse
culto, e nas oblações de vossa devoção vai o melhor de vossa vida, a vossa
mocidade, e vai-se a primícia de vosso talento, com a virgindade do vosso
coração. Cada um de vós, muito que seja, tem um ideal, por isso mesmo
irrealizável. Pois bem, meus amigos, Castro Alves, esse realizou o vosso ideal,
de moços...
Euclides da Cunha, que não fora dos
vossos, mas vos amava, como eu vos amo, sem ser dos vossos, ambos talvez pelo
mesmo culto, comum, disse daqui mesmo a razão profunda dessa vossa devoção, de
admiradores de Castro Alves. Ele representou, num momento de nossa história
política e social, todas aspirações generosas da mocidade do Brasil, que previu
e ajudou a cumprir, a Abolição e a República, no movimento irresistível das
ruas, da imprensa, das câmaras, do governo, que as haviam de realizar...
"A sua grandeza, está nisto, ele os viu antes e melhor do que seus
contemporâneos", chegando, entretanto, a tempo de prever, como vidente:
"aparecimento certo, oportuno, como o de todo grande homem". E porque
nesse rapaz de vinte e poucos anos havia um grande homem vós o vindes
glorificando, vós o glorificais ainda hoje com a posteridade, que o proclama o
maior poeta brasileiro.
Para ajuizar da grandeza dele imaginai
um instante: lá Rui Barbosa, Fagundes Varela, Plínio de Lima, Luís Guimarães
Júnior, Tobias Barreto, Augusto Guimarães... aqui ainda Rui Barbosa, Joaquim
Nabuco, Rodrigues Alves, Afonso Penna, Bias Fortes, Júlio Maria, Brasílio
Machado, Dídimo da Veiga, Barros Pimentel... que teria sido desses homens,
alguns dos maiores que o Brasil tem tido, se, como Castro Alves, houvessem
passado, aos vinte e quatro anos de sua idade?... De nenhum deles ficaria a
fama; talvez, quando muito, o nome, como esse Martim Cabral, que foi uma grande
esperança, como meteoro fulgindo um instante e que se apagou para sempre...
Pois bem, nesses poucos anos, o poeta
conquistou a mais alta e a mais nobre glória literária que possui o Brasil...
foi "o poeta dos escravos", como o povo o apelidou; foi "o poeta
republicano do Gonzaga", como
lhe chamou Joaquim Nabuco; o "poeta original, de feição própria",
como viu Machado de Assis; em cuja obra "palpita o poderoso sentimento da
nacionalidade, essa alma da pátria que faz os grandes poetas, como os grandes
cidadãos", no asserto de José de Alencar; "o poeta nacional, se não
mais, nacionalista, poeta social, humano e humanitário", como o julgou
José Veríssimo; poeta e profeta, cujo nome se "há de ligar indelevelmente
a uma das fases mais decisivas da história nacional", como por fim a razão
mesma, a divina razão de Rui Barbosa havia de falar, pela posteridade.
Se a estas irrevogáveis sentenças
juntardes que "ele foi o mais querido da mocidade e do povo, o mais amado,
o mais fascinador, o mais compreendido dos nossos poetas", como depôs
Amadeu Amaral, e, por testemunho incontroverso, há as cinquenta edições de suas
obras, apenas neste meio século de sua glória... tereis achado porque, mocidade
ardente e generosa da minha terra, impaciente e ávida das esperanças da
inteligência, exigente e ousada da ação social benfazeja, tereis achado a razão
de vosso culto a Castro Alves. É que ele foi belo e grande como um semideus,
forte e nobre como um herói, inspirado e vidente como um poeta, ele foi o vosso
ideal realizado, símbolo concreto de vossas inteligências todas, de todos os
vossos corações num grande homem só, como que o vosso mesmo retrato, ó
mocidade!
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Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
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