Tenho
saudades ai! de ti São Paulo
—
Rosa da Espanha no hibernal Friul!
Castro Alves
Uma das preocupações mais antigas e
mais vãs de políticos e sociólogos, de todos os tempos, é essa de derivar a
corrente humana, que dos campos flui para as cidades, da periferia demanda o
centro. Mecenas, ministro de Augusto, encomendava a Vergílio um preconício da
vida rústica — as Geórgicas — com o
mesmo intuito com que, dois mil anos quase depois, Meline, outro ministro, da
República Francesa, escreveu o Retour à
la terre. Cegos que não querem ver... que há zonas de atração que chamam os
homens, como a luz às plantas e aos bichos: é lei natural. São Paulo sempre
foi, no Brasil, grande foco luminoso.
PARA SÃO PAULO
Desde 1862, tinha ele apenas quinze
anos, e mal chegara ao Recife para concluir os estudos preparatórios e
matricular-se na Faculdade de Direito, que a Castro Alves aparecera a obsessão,
ainda hoje a de todos os rapazes brasileiros, essas terras do Sul, o Rio,
principalmente São Paulo, nosso desejo e nossa esperança. Numa carta a
Marcolino de Moura ele alude a estudos projetados juntos, em São Paulo, e que é
preciso adiar.
Mais alguns anos se passariam, a
criança seria um belo rapaz, na imprensa acadêmica e nos círculos literários de
moços ganharia notoriedade; encabeçaria um dos partidos teatrais que
glorificavam duas atrizes preferidas; lutaria, a discursos e poemas, pela
vitória da sua dama — Eugênia Câmara; venceria o outro partido, porque mais
fraco, mais violento, chefiado por Tobias Barreto, que seria obrigado a
confessar-se batido, e recolheria, finalmente, — era inevitável, a ele belo
jovem, a ela mulher sensível — o prêmio desses sentimentos, tornando-se o
amante da atriz, que por ele faz o sacrifício de romper com os seus contratos e
o seu empresário. Fica no Recife, ocupada em o amar, enquanto ele, além dessa
nova ocupação, pensa num drama, que ela representará. Em começo de 67 estava
escrito o Gonzaga, que em setembro
desse ano seria representado na Bahia, e havia de trazer ao Rio e a São Paulo.
Finalmente, realiza o seu desejo, e
embarca para o Sul. À passagem pelo Rio recebe de José de Alencar e de Machado
de Assis, pelo Correio Mercantil,
aplausos públicos que o glorificam; no Diário
do Rio de Janeiro lê o seu drama a uma assembleia de letrados que o
vitoriam; e reconhece no povo carioca, à passagem de uma manifestação
patriótica, que é o mesmo povo entusiasta que deixara no Recife e vinha
procurar em São Paulo.
Com efeito, já aqui está em fins de
março de 68. Hospeda-se no Hotel de Itália, naturalmente com Eugênia Câmara,
que toma conta do teatro, mandando vir alguns artistas do Rio. Frequenta talvez
a faculdade, onde ouve, diz ele, "o grande José Bonifácio". Mas o
principal é a representação do seu drama. "Está-se aqui doido por
teatro", escreve a um amigo. Se há Vergílio e Horácio em perspectiva, há
Mecenas: "O barão de Iguape pôs à disposição da empresa todo o dinheiro
preciso".
IMPRESSÕES DE SÃO PAULO
São Paulo, a terra e a gente, que
impressão lhe teria produzido? Escreve para a Bahia: "Nós os filhos do
Norte sonhamos São Paulo o oásis da liberdade e da poesia, plantado em plenas
campinas do Ipiranga... Pois o nosso sonho é realidade, e não é realidade... Se
a poesia está no envergar o ponche escuro, e largar-se campo afora a divagar,
perdido nestes gerais limpos e infinitos como um oceano de juncos; se a poesia
está no enfumaçar do quarto com o cigarro clássico, enquanto lá fora o vento
enfumaça o espaço com a garoa (é uma névoa espessa como nuvem que se arrastasse
pelas ruas) com a garoa ainda mais clássica; se a poesia está no espreitar de
um olhos negros, através da rótula dos balcões ou através das rendas da
mantilha que em amplas dobras esconde as formas das moças, então a Pauliceia é
a terra da poesia". "Sim, continua ele, porque aqui não há senão
frio, mas frio de Sibéria; "cinismo" (significava então a palavra uma
espécie de tédio tropical, desenvolto e petulante, como correspondendo ao
forasteiro spleen, de que tanto se
abusou na geração de Álvares de Azevedo), mas cinismo da Alemanha; casas, mas
casas de Tebas; ruas, mas ruas de Cartago... (por outra) casas que parecem
feitas antes do mundo, tanto são pretas; ruas que parecem feitas depois do
mundo — tanto são desertas..." Isto quanto à poesia! Quanto à liberdade,
"inclino-me a preferir São Paulo ao Recife".
PRIMEIROS TRIUNFOS
A notoriedade que trazia do Norte,
principalmente as credenciais de Alencar, que recebera no Rio, fazia a mocidade
curiosa por ouvi-lo. Conta um contemporâneo, Campos de Carvalho, no Correio Paulistano de 3 de agosto de 71:
"a redação do Arquivo Jurídico
deu um sarau literário no salão da "Concórdia" e o fim da festa era
ouvir-se o poeta, cuja fama apagava a recordação de Fagundes Varela. Nessa
noite, todas as honras foram dele; o entusiasmo tocou ao delírio quando
arrematava a última estrofe d'O Livro e a
América e, a pedido geral, encetou o recitativo Visão dos Mortos." Para a Bahia manda ele dizer que "foi
uma bela reunião, quase um baile". "Muitos lentes da Academia aí se
achavam, o Saldanha Marinho, etc., e todos me receberam da maneira mais
lisonjeira", "se algum dia obtive um triunfo, não foi noutro lugar".
Para atenuar a fatuidade, sem dúvida, conta que até a senhora do cônsul inglês
(uma inglesa! meu caro) veio entusiasmada dizer-me: "Mim gostar muito da
sua recitativa!" Além da sociedade, a imprensa. "Em toda parte tenho
encontrado uma pátria", diz ele ainda. São Paulo não se pouparia em lhe
dispensar carinhos.
Além do heroísmo épico dos seus
cantos, afinados pela turba entusiástica que o ouvia, do garbo de sua presença
e da sonoridade clangorosa de sua voz, Joaquim Nabuco, outro seu colega da
faculdade, denuncia que procurava Castro Alves o efeito (feliz culpa!)
começando logo por uma daquelas "bombas", como ele mesmo chamava,
cujo resultado era previsto e certo. Mas antes disso, sua simples presença
impressionava: — alto, esbelto, pálido, negra e basta cabeleira, olhos
pestanudos e refagulhantes, lábio crespo ensombrado por um buço tentador,
sempre corretamente vestido de preto — no Rio o compararam por isso com o
Eurico, o cavaleiro negro, — sua simples presença já impressionava, confirma
Lúcio de Mendonça, outra testemunha, "quando se mostrava à multidão, já
entusiasmada só de vê-lo... era grande e belo como um deus de Homero".
Seria fácil dominá-las, a essas assembleias predispostas aos arroubos
inspirados de sua voz. Rui Barbosa, outro colega da faculdade e dos seus
primeiros admiradores, não esqueceria essa voz, "encanto irresistível,
desses que transfiguram um orador ou o poeta", "jato contínuo dessa
lava sagrada, que fazia dos seus lábios uma cratera incendiada em sentimentos
sublimes". Vinha abaixo o teatro, diz-me Sancho de Barros Pimentel, outro
contemporâneo e admirador, que assistiria aos triunfos oratórios de Nabuco,
Rui, Patrocínio, Silva Jardim, Barbosa Lima... nunca nenhum alcançara tamanhas
manifestações de entusiasmo do delírio coletivo da multidão, como Castro Alves.
Toda a gente que o ouvia, conta Carlos Ferreira, outro colega de São Paulo,
"tinha arrepios de assombro", "sorria ou chorava, permanecia
mudo pela comoção fortíssima ou prorrompia em bravos entusiásticos", nele
vendo "mais um semideus do que um poeta, menos um poeta que um
vidente".
Caíra o Partido Liberal com Zacarias e
a Coroa chamara ao poder o Conservador, com Itaboraí: a mutação rápida,
inesperada, pareceu mais um daqueles assomos de poder pessoal que indispunham o
Império com a opinião pública. A mocidade liberal da faculdade protestava pelos
seus jornais acadêmicos, de pequena tiragem, mas, por isso mesmo, de veemência
maior. Apontavam as rebeldias que iriam ter na República. Promoveu o Ateneu Paulistano uma sessão de protesto
e desagravo, a 22 de julho de 68: não precisava de maior certeza de êxito do
que anunciar um poema de Castro Alves. Foi à tarde, às cinco horas, ainda no
vasto salão da "Concórdia", iluminado, enfeitado, repleto de
espectadores. Falaram Nabuco e Ferreira de Menezes, verberando os nossos
costumes políticos, mas, entretanto, respeitadores da causa monárquica. Faz-se
a pausa das grandes expectativas, quando assoma Castro Alves à tribuna: a
ovação prolongada e estrepitosa ele a recebe grave e sereno; depois, impõe o
silêncio, e começa, com este trecho de prosa que, de memória, conservou Campos
de Carvalho:
"Senhores! Álvares de Azevedo,
outrora, atirou as suas estrofes no tapete de um rei, pedindo a vida de um
herói; eu rodo as minhas no coração da mocidade, pedindo-lhe o óbolo da
imortalidade para o filho espúrio da realeza". Antes do poema de Pedro Ivo, outra imensa ovação obrigou o
poeta a esperar. Depois, foram as estrofes de bronze que descrevem o
herói-bandido:
"Cabelos
esparsos ao sopro dos ventos
Olhar
desvairado, sinistro, fatal,
Diríeis
estátua roçando nas nuvens
P'ra
qual a montanha se fez pedestal!..."
que apostrofa à cidade cortesã, e desperta o
povo adormecido:
"—...Desperta
do sono teu!
Sansão
— derroca as colunas,
Quebra
os ferros — Prometeu!
Vesúvio
curvo — não pares
Ígnea
coma solta aos ares,
Em
lava inunda os mares
Mergulha
o gláudio no céu.
República!...
Voo ousado,
Do
homem feito condor!
Raio
de aurora inda oculta,
Que
beija a fronte ao Tabor!
Que importa uma efêmera vitória do
despotismo?
Não
importa! A liberdade
É
como a hidra, o Anteu,
Se
no chão rola sem forças,
Mais
forte do chão se ergueu.
São
os seus ossos sangrentos
Gláudios
terríveis, sedentos
E
da cinza solta aos ventos,
Mais
um Graco apareceu."
............................
"Tal
eu — vaga encapelada
Recuo
de uma passada,
P'ra
levar de derribada
Rochedos,
reis, multidões!"
O entusiasmo tocou ao auge. O
poeta-vidente das nobres causas liberais, da Abolição e da República, achara na
mocidade de São Paulo o seu público de eleição, que receberia esse novo
evangelho, para o propagar aos quatro cantos do Brasil. Esse dia 22 de julho de
68, conclui Campos de Carvalho, marcou o da glória definitiva de Castro Alves
em São Paulo.
Tornando à terra natal, depois do ato
prepotente da Coroa, José Bonifácio, que encarnava a ideia liberal na sua ideal
perfeição, seria recebido pelo povo em delírio, à frente a mocidade acadêmica.
Castro Alves que achara a sua fama no Recife e que a viera buscar em São Paulo
e, como a maior maravilha da terra, anuncia, aqui chegado, estar ouvindo
"o grande José Bonifácio", travou logo relações com ele, as da
recíproca admiração, ufanando-se o mestre de mostrar-se em público ao lado do
discípulo. Agora, na recepção, em São Paulo, era o chefe liberal que se
festejava. O Ypiranga, o jornal de
Salvador de Mendonça e Ferreira de Menezes, noticiava a 2 de agosto de 68, que
Castro Alves "soube, num rapto sublime, manifestar a comoção de quantos
acompanham os representantes dos foros populares".
Dias depois, num grande banquete
político em que oraram José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça,
Martim Cabral, Rui Barbosa, — que nesse dia estreava, e desse discurso
contariam os admiradores, para a celebração recente do seu jubileu... — Américo
Brasiliense, Barros Pimentel... que saudavam homens e ideias de mais relevo na
consideração do país, Américo de Campos levantou-se para brindar a Castro
Alves, "como representante do pensamento democrático das províncias do
Norte"... Não eram pequenas honras, para um rapaz de vinte e um anos...
Intimamente, o poeta teria frio,
também no coração. Diz ele em uma carta: "Faz frio de morte. Embalde estou
embuçado no capote e esganado no "cache-nez"... A estas horas — homem
feliz! (o seu correspondente, na Bahia) suas à fresca, nos lençóis de linho,
enquanto eu estou gelado com as meias de lã. Olha, se leres poesias nebulosas,
germânicas, tiritantes, híbridas, acéfalas, anômalas... não critiques nunca,
antes de ver se são de São Paulo, e se forem... cala-te! São Paulo não é
Brasil... é um trapo de polo, pregado a goma arábica na fralda da América (como
diria o Tobias)". (Era o Tobias Barreto, que ele não deixou nunca de
troçar, e lhe pagava em ódio e depois com a malquerença póstuma de Sílvio
Romero).
Apesar disso — "o trapo de polo
pregado a goma arábica nas fraldas da América, em vez de poemas tiritantes e
nebulosos, inspirar-lhe-ia os seus mais sublimes cantos — O Navio Negreiro e as Vozes
d'África, ao mesmo tempo os mais heroicos e comovidos que se escreveram em
nossa língua. Lendo-os, não se pode deixar de assentir ao que disse Alberto de
Oliveira: "excetas algumas estâncias camonianas, não conheço em nossa
língua outros versos tão vibrantes", nem ao que sentenciou José Veríssimo:
Há aí "eloquência da melhor espécie, sentimento, emoção, e sobretudo uma
elevada idealização artística da situação do continente maldito e das
reivindicações que o nosso ideal humano lhe atribui. E, com essas qualidades,
uma perfeição rara de forma".
A 7 de setembro de 68 anunciou-se para
a sessão magna do "Ginásio Literário", a tragédia no mar: — O Navio Negreiro. A festa literária
tomou logo o aspecto de reivindicação política, contra os conservadores
escravocratas — esse gabinete Itaboraí que se recusava a sequer aludir à
questão do elemento servil, e comparava a Abolição à pedra que rolaria da
montanha para esmagar o Brasil; pois bem, dissera Pedro II, "eu quero ser
esmagado"... mas os seus homens de Estado estavam preocupados com os
próprios interesses partidários, que supunham os interesses do país — e foi
numa assembleia trepidante de entusiasmo e exaltação liberal, que as estrofes
de Castro Alves ecoaram, com sonoridade de epopeia e estremecimentos de
comoção:
"'Stamos
em pleno mar... Doido no espaço
Brinca
o luar — dourada borboleta;
E
as vagas após ele correm... cansam
Como
turba de infantes inquieta.
'Stamos
em pleno mar... Do firmamento,
Os
astros saltam como espuma de ouro...
O
mar em troca acende as ardentias,
Constelações
do líquido tesouro...
'Stamos
em pleno mar... Dois infinitos
Ali
se estreitam num abraço insano
Azuis,
dourados, plácidos, sublimes
Qual
dos dois é o céu? Qual o oceano?
'Stamos
em pleno mar... Abrindo as velas
Ao
quente arfar das virações marinhas,
Veleiro
brigue corre à flor dos mares
Como
roçam na vaga as andorinhas."
Embevece-se
com a majestade do quadro:
"Em
baixo — o mar... em cima — o firmamento
E
no mar e no céu a imensidade!"
E a doce harmonia que traz a brisa, o
canto dos marujos que boia à tona das águas...
"Esperai!... esperai... deixai que eu beba
Esta
selvagem, livre poesia...
Orquestra
— é o mar, que ruge pela proa
E
o vento, que nas cordas assobia..."
Pede as asas e os olhos de águia dos
albatrozes marinhos para ver esses nautas que resvalam à flor das águas... São
os espanhóis, cujas "cantilenas, requebradas de languor, lembram as moças
morenas, as andaluzas em flor!"; os de Itália, "Veneza dormente —
terra de amor e traição, ou de Nápoles, que lembram "versos de Tasso,
junto às lavas do vulcão!"
"O
Inglês — marinheiro frio,
Que
ao nascer no mar se achou,
(Porque
a Inglaterra é um navio
Que
Deus na Mancha ancorou),
Rijo
entoa pátrias glórias
Lembrando
orgulhoso histórias
De
Nelson e de Aboukir.
O
Francês — predestinado —
Canta
os louros do passado
E
os loureiros do porvir!
Os
marinheiros Helenos
Que
a vaga iônia criou,
Belos
piratas morenos
Do
mar que Ulisses cortou,
Homens
que Fídias talhara,
Vão
cantando em noite clara"
"Versos
que Homero gemeu...
Nautas
de todas as plagas
Vós
sabeis achar nas vagas
As
melodias do céu!..."
Mas a vista desce mais, e alcança não
estes, porém um navio negreiro, que faz o tráfico de africanos para o Brasil...
aí, nos porões infectos e apertados, toda uma multidão se estorce de dor e de
fome, de miséria e doença, entre látegos e açoites, estertores de moribundos,
soluços de agonizantes e o tinir dos grilhões de ferro... E para que a
nostalgia do país natal não lhe roube os que restam, para distraí-los, ainda a
chicote, o comandante, ao som de uma música infernal, fá-los dançar:
"Era
um sonho dantesco... o tombadilho
Que
das luzernas avermelha o brilho
Em
sangue a se banhar.
Tinir
de ferros... estalar de açoite
Legiões
de homens negros como a noite
Horrendos
a dançar.
.....................................
E
ri-se a orquestra irônica, estridente...
E
da ronda fantástica a serpente
Faz
doidas espirais.
Qual
num sonho dantesco as sombras voam!
Gritos,
ais, maldições, preces ressoam!
E
ri-se Satanás!"
O poeta não pode mais à evocação
sinistra desse horror e então apela para Deus, com a sublimidade de um profeta
bíblico:
"Senhor
Deus dos desgraçados!
Dizei-me
vós, Senhor Deus!
Se
é loucura... se é verdade
Tanto
horror perante os céus?!
Ó
mar, porque não apagas
Co'a
esponja das tuas vagas
De
teu manto este borrão?
Astros!
noites! tempestades
Rolai
das imensidades!
Varrei
os mares, tufão!
Quem
são estes desgraçados
Que
não encontram em vós
Mais
que o rir calmo da turba
Que
excita a fúria do algoz?
Quem
são? Se a estrela se cala
Se
a vaga opressa resvala
Como
um cúmplice fugaz
Perante
a noite confusa...
Dize-o
tu, severa Musa,
Musa
libérrima, audaz!"
São os filhos do deserto, guerreiros
ousados, mulheres frágeis, crianças inocentes, que arrancados de suas florestas
e seus oásis, se não morrem aos tormentos da sede e da fome e dos açoites e das
doenças, na lonjura das caravanas pelos areais, vêm ser atirados no porão
infecto e imundo, felizes se as penas se acabam, com "o baque de um corpo
ao mar":
"Ontem
plena liberdade,
A
vontade por poder...
Hoje...
cúmulo de maldade,
Nem
são livres p'ra morrer..."
"Prende-os
a mesma corrente
Férrea,
lúgubre serpente —
Nas
roscas da escravidão.
E
assim zombando da morte
Dança
a lúgubre coorte
Ao
som do açoite... Irrisão!
Senhor
Deus dos desgraçados
Dizei-me
vós, Senhor Deus,
Se
eu deliro... ou se é verdade
Tanto
horror perante os céus?!
Ó
mar, porque não apagas
Co'a
esponja de tuas vagas
De
teu manto este borrão?
Astros!
noites! tempestades!
Rolai
das imensidades!
Varrei
os mares, tufão!"
Se Deus não ouve a súplica, Castro
Alves apela para os sentimentos generosos de sua terra, nos versos mais nobres,
mais altos, mais comovidos que se escreveram no Brasil: eles estão gravados no
coração de todos os brasileiros:
"Existe
um povo que a bandeira empresta
P'ra
cobrir tanta infâmia e covardia!
E
deixa-a transformar-se nessa festa
Em
manto impuro de bacante fria!
Meu
Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta
Que
impudente na gávea tripudia?
Silêncio,
Musa... chora e chora tanto
Que
o pavilhão se lave no teu pranto..."
"Auriverde
pendão de minha terra,
Que
a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte
que a luz do sol encerra
E
as promessas divinas da esperança...
Tu
que da liberdade após a guerra
Foste
hasteado dos heróis na lança —
Antes
te houvessem roto na batalha
Que
servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade
atroz que a mente esmaga!
Extingue
nesta hora o brigue imundo,
O
trilho que Colombo abriu nas vagas
Com
um íris no pélago profundo!
Mas
é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai-vos
heróis do Novo Mundo!
Andrada!
arranca esse pendão dos ares!
Colombo!
fecha a porta dos teus mares!"
PROFETA DA LIBERDADE
Castro Alves: O profeta da liberdade
Imaginai o efeito de poesia tão
inspirada e persuasiva na alma da mocidade que o escutava, com embevecimentos
de êxtase, com frêmitos de paixão. Por isso Amadeu Amaral pôde dizer, com justiça,
"ele foi o querido da mocidade e do povo, o mais amado, o mais fascinador,
o mais compreendido dos nossos poetas", porque "não foi apenas um
poeta, foi um apóstolo e um propagandista, um lutador"... Ele mesmo o
dissera, numa epígrafe a outros cantos — pouco lhe importava que louvassem ou
apodassem versos seus, a poesia, embora o seu amor a ela, lhe fora sempre um
meio consagrado a uma santa causa, ele era apenas "um bravo soldado da
redenção da humanidade!"
Com efeito, Castro Alves não foi
somente dos mais ardentes abolicionistas e daqueles cuja propaganda mais frutos
produziu, foi dos primeiros que o Brasil ouviu: antes de Tavares Bastos e de
Perdigão Malheiro, de Silveira da Mota e de Montezuma, de São Vicente, de Pedro
II, de Paranhos... ele foi desde 63, quando começara os seus poemas
abolicionistas e, no Recife, fundava uma associação libertadora.
A gente que então governava o Brasil
seria impermeável a essas ideias humanitárias, mas a mocidade das escolas
ouvia-o e se comovia com ele, e as donzelas e rapazes das gerações
subsequentes, que leram e se arroubaram com os seus versos, constituíram as
gerações que, vinte anos mais tarde, viriam a fazer a Abolição. Joaquim Serra,
Ferreira de Menezes, Patrocínio, na imprensa, Antônio Bento, João Clapp, José
Mariano, nas ruas, Dantas, Nabuco, Rui Barbosa, no parlamento, a Princesa
Redentora e o Ministério Libertador, no governo, foram apenas colaboradores da
obra de Castro Alves, a quem a posteridade chamou com justiça o "Poeta dos
Escravos". A meio caminho, de sua morte e da lei áurea, um dos
libertadores, Ferreira Viana, exclamava aqui mesmo, nas festas comemorativas do
seu decenário "a lira emudeceu, mas os sons por ela vibrados ainda reboam
cheios de vigor aos nossos ouvidos". Dissera Nabuco: "o seu maior
título é o de ter posto seu talento ao serviço da causa da emancipação, da
liberdade e da pátria". E Rui Barbosa: "escrevera o poema da nossa
grande questão social e da profunda aspiração que a tem de resolver".
"A sua influência foi enorme", diz ainda José Veríssimo, "as
causas sociais e humanas as viu e entendeu e as cantou como poeta",
"poeta nacional, se não mais, poeta social, humano, humanitário".
Abolicionista, antes de Rio Branco,
isto é, da lei de 71, que previra:
"Senhor
Deus! dá que a boca da inocência
Possa
ao menos sorrir
Como
a flor da granada abrindo as pétalas
Da
alvorada ao surgir,
como previra, antes de Nabuco, a
liberdade definitiva em 88:
"Moços, creiamos, não tarda
A
aurora da redenção!"
Daqui ele anunciava para a Bahia:
"Os meus Escravos estão quase prontos. Sabes como acaba o poema? Devo a
São Paulo esta inspiração. Acaba no alto da serra do Cubatão, ao romper da
alvorada sobre a América, enquanto a estrela da manhã, lágrima de Deus pelos
cativos, se apaga pouco a pouco no ocidente. É um canto do futuro. O canto da
esperança. E nós não devemos esperar? Sim, e muito, e sempre"... Ele
previa, por esse outro rapto profético, já acentuado por Alberto Faria,
lembrado que a tragédia da escravidão de São Paulo finda nos píncaros da Serra
do Mar.
Foi Castro Alves republicano, antes de
Saldanha Marinho e todos aqueles rebeldes, alguns depois arrependidos, do
Manifesto de 70. Daqui mesmo, numa imagem das suas, ele comparou o povo
brasileiro ao mítico Prometeu:
"Povo!
povo infeliz! Povo, mártir eterno
Tu
és do cativeiro o Prometeu moderno...
Enlaça-te
no poste a cadeia "das Leis".
O
pescoço do abutre é o cetro dos maus reis
Para
tais dimensões, p'ra músculos tão grandes
Era
pequeno o Cáucaso... amarram-te nos Andes!"
E, outra formosa imagem, como as
Oceânides consolavam o titão acorrentado, em face do mar e dos penhascos da
barra de Santos, exclamava Castro Alves:
"A
musa do poeta irá — filha do mar —
O
oceano de sua alma... em cantos derramar."
Mas não só profetizou a Abolição e a
República, senão que previa estar a sorte da Monarquia no Brasil ligada à da
escravidão, tanto a tolerava.
Nas Estrofes do Solitário, escritas
aqui em São Paulo, exclamava:
"Basta
de covardia! a hora soa..."
O programa da Monarquia era
contemporizar — "o país não estava preparado" para as reformas; ainda
e sempre era preciso esperar. Castro Alves perguntava ironicamente:
"Quereis,
como o satrapa arrogante,
Que
o porvir, n'antessala, espere o instante
Em
que o deixeis subir?"
Esqueceriam o destino das dinastias
ineptas, da sorte de Luís XVI, e o poeta clama:
"Desvario
das frontes coroadas!
Nas
páginas das púrpuras rasgadas
Ninguém
mais estudou!
E,
no sulco do tempo, embalde dorme
A
cabeça dos reis — semente enorme
Que
a multidão plantou!"
Assim aconteceria, se a dinastia
reagisse, e não capitulasse, abandonada pelos seus fiéis e infiéis, e não
viesse a revolução de 89 achar apenas um povo de aderentes. Como quer que
fosse, previra Castro Alves que a questão servil daria com a Monarquia por
terra.
Mas não fica aí, esse dom divino da
profecia, vate ou vidente que ele era. Quando a Europa assiste em 70,
impassível, ao sacrifício da França...
"Já
que o amor transmudou-se em ódio acerbo
Que
a eloquência é o canhão, a bala — o verbo
O
ideal — o horror!
E
nos fastos do século os tiranos
Traçam
com a ferradura dos ulanos
O
ciclo do terror.
..................................
Já
que é mentira a voz — de — Humanidade
Já
que riscam da Bíblia a caridade,
E
d'alma o coração
E
a noite da descrença desce feia
E
tropeçando em ossos cambaleia
Dos
povos a razão
..................................
Filhos
do Novo Mundo! ergamos nós um grito
Que
abafe dos canhões o horríssono rugir
Em
frente do oceano! em frente do infinito!
Em
nome do progresso! em nome do porvir!
..................................
Não!
clamemos bem alto à Europa, ao globo inteiro!
Gritemos
liberdade — em face da opressão!
Ao
tirano dizei — tu és um carniceiro!
És
um crime de bronze — escreva-se ao canhão!
Falemos
da justiça — em frente à mortandade!
Falemos
do direito — ao gládio que reluz!
Se
eles dizem — rancor — dizei — fraternidade!
Se
erguem a meia lua, ergamos nós a cruz!"
E os filhos do Novo Mundo, americanos
do norte e do sul, quase meio século depois o haviam de ouvir, para salvar a
civilização que perigava nos campos da França invadida, e, só por isso
"A
herança de um suor vertido em dois mil anos
Há
de intacto chegar às novas gerações..."
Quereis ver até que ponto foi Castro
Alves profeta? Ele prevê, pela disseminação das luzes, pacificamente, não uma
Liga das Nações, mas ainda melhor, uma Nação Única, "a Grande Nação",
para cujo ideal pacifista apela
"Filhos
do século das luzes!
Filhos
da "Grande Nação"!
Quando
ante Deus vos mostrardes
Tereis
um livro na mão:
O
livro — esse audaz guerreiro
Que
conquista o mundo inteiro
Sem
nunca ter Waterloo...
Éolo
do pensamento
Que
abrira a gruta dos ventos
Donde
a Igualdade voou..."
Repitamos, pois, como o nosso Amadeu
Amaral, "um lutador", "um propagandista", "um
apóstolo" e acrescentemos, pois é de justiça, "um profeta".
Mas tornemos a Castro Alves, em São
Paulo.
Disse-vos que o poeta aqui tinha frio,
também no coração. Eugênia Câmara que lhe dera sempre cuidados no Recife, na
Bahia, dava-os maiores em São Paulo: ou fosse que as distrações intelectuais do
poeta deixassem-na mais livre, ou que suas renovadas preocupações de arte,
dela, tomada ao teatro, aqui, onde já não moravam sob o mesmo teto, os ciúmes
teriam bem razão de ser. Talvez que a cegueira do amante lhe desse menos habilidade
na dissimulação; o fato era que Castro Alves conseguiu ver o que toda a gente,
que não era apaixonada como ele, estava cansada de ver. Eugênia, além de
infiel, esquecia-o. Num recitativo, a Meia
hora de cinismo, a comédia de costumes acadêmicos tão aplaudida, de França
Júnior, ele ainda confessava com humorismo — a ironia dos que sentem:
"Se
tu viesses... de meus lábios tristes
Rompera
o canto... Que esperança inglória!
Ela
esqueceu o que jurar lhe vistes
"Ó
Pauliceia", "ó Ponte Grande", "ó Glória"!..."
Mas
ei-la que torna por fim
"Batem!
Que vejo! Ei-la afinal comigo
Foram-se
as trevas... Fabricou-se a luz...
Nini!
pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam
teus braços... do martírio a cruz!"
Isso era em junho; um mês mais tarde
em julho, entoa um Hino ao sono, dos
seus poemas mais formosos, que, diz Constâncio Alves, honraria a qualquer
antologia clássica, opinião que foi também a de Lúcio de Mendonça. Eugênia já
não provocava a amorosa insônia do poeta, mas essa outra, dolorida, aflita e
saudosa, para a qual ele invoca o sono, o divino bálsamo:
"Tu
que fechaste as pétalas
Do
lírio que pendia
Chorando
a luz do dia
E
os raios do arrebol
Também
fecha-me as pálpebras...
Sem
"Ela" o que é a vida?
Eu
sou a flor pendida
Que
espera a luz do sol.
O
leite das eufórbias
P'ra
mim não é veneno...
Ouve-me
ó Deus sereno!
Ó
Deus consolador!
Com
teu divino bálsamo
Cala-me
a ansiedade!
Mata-me
esta saudade
Apaga-me
esta dor.
Mas
quando, ao brilho rútilo
Do
dia deslumbrante
Vires
a minha amante
Que
volve para mim,
Então
ergue-me súbito...
É
minha aurora linda...
Meu
anjo... mais ainda...
É
minha amante enfim!"
A reconciliação viria, nestes
"estremecimentos" do amor, como nas lâmpadas que se vão apagar, e que
sobem na chama fugaz, dando a ilusão que crescem e continuam: Castro Alves
compõe em agosto outra de suas mais formosas poesias, na qual descreve o mesmo
amor com impudência magnífica. Eu vos asseguro, que nem Ovídio ousou outro
tanto. O amante deve partir, mas não pode acabar consigo, que não fique:
"Boa
noite, Maria! Eu vou-me embora,
A
lua nas janelas bate em cheio,
Boa
noite, Maria — É tarde... é tarde...
Não
me apertes assim contra teu seio.
Boa
noite! E tu dizes — Boa noite,
Mas
não digas assim, por entre beijos...
Mas
não mo digas descobrindo o peito,
—
Mar de amor onde vogam meus desejos.
A
frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe
voluptuosa os teus contornos...
Oh!
Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao
doido afago de meus lábios mornos.
Mulher
do meu amor! Quando aos meus beijos,
Treme
tua alma, como a lira ao vento,
Das
teclas de teu seio que harmonias,
Que
escalas de suspiros, beijo atento!
Ai!
Canta a cavatina do delírio
Ri,
suspira, soluça, anseia e chora...
Marion!
Marion!... É noite ainda,
Que
importa os raios de uma nova aurora?"
"Como
um negro e sombrio firmamento
Sobre
mim desenrola o teu cabelo
E
deixa-me dormir balbuciando:
—
Boa noite! — formosa Consuelo!"
Nos seus formosos Tercetos, viria Olavo Bilac a imitar essa Boa Noite. "É noite ainda em teu cabelo preto!" diz um.
"Ela abria-me os braços e eu ficava", repete o outro. O que Bilac não
imitou, apesar de sensual, foi essa "cavatina do delírio",
"Ri,
suspira, soluça, anseia e chora"
porque a poesia de Castro Alves, essa
foi sentida e vivida, antes de escrita e imortalizada.
VIDA DE ESTUDOS
Apesar das mágoas de amor, a vida
continuava a correr. À faculdade, Castro Alves, pouco ia, ou raramente,
conquanto Carlos Ferreira, um seu companheiro de casa, com José Felizardo
Júnior, quando moravam à rua do Riachuelo, seja terminativo; "nunca ia à
aula e também quase nunca saía de casa", lendo, prosando, ou escrevendo.
Iria uma vez ou outra, para ato de presença, porque, senão, perderia o ano,
como esteve quase ao perder. Contou-me o conselheiro Rodrigues Alves, seu
condiscípulo — numa geração que deu dos maiores nomes ao Brasil, como Joaquim
Nabuco e Rui Barbosa, Afonso Pena e Bias Fortes, Salvador de Mendonça e
Ferreira de Menezes, Dídimo da Veiga e Júlio Maria, Sancho Pimentel e Brasílio
Machado, tantos e tantos outros... — contou-me seu colega Rodrigues Alves uma
anedota que contrasta com outro depoimento, de Barros Pimentel. A este pareceu
sempre Castro Alves um desatento a tudo que não fosse poesia: lembra-se bem que
de uma ocasião, em aula, em vez de atender ao lente, ocupava-se em rimar as
formosas estrofes do Laço de fita; em
lugar das Ordenações era sua
cogitação a formosa Pepita.
O ex-presidente fez-me diversa
confidência. Num dia de sabatina, dele se aproximara o poeta, rogando-lhe a
exposição do ponto, pois receava ser chamado e não tivera tempo de o estudar.
Ouvira-o com atenção, fizera duas ou três observações, para se confirmar: ao
cabo, pedira-lhe que se assentasse ao lado, para acudir-lhe em qualquer
vacilação. Assim foi; chamado, Castro Alves respondeu a quase todas as perguntas,
com acerto, explanando com brilho o que à inteligência era permitido deduzir;
em um ou outro tópico duvidoso, socorrera-o discretamente, não sem ser
percebido, entretanto, pelo professor. Foi então, ele Rodrigues Alves, chamado
à lição, "o senhor que estivera a querer ensinar quem bem lhe dispensava
os auxílios", e, a este começo, vacilara atônita e embaraçada a sua
estudada ciência. Resultado, dizia-me bondosamente o ex-presidente, evocando
esta cena de quarenta anos antes: — o poeta, nota boa, apenas sofrível o seu
modesto professor de alguns minutos, bem aproveitados.
Esse Rodrigues Alves é aquele de quem
disse Nabuco que não lograra tirar os primeiros prêmios do Pedro II, porque
nunca lho consentira o seu colega. É dele o depoimento do que podia Castro
Alves. Apenas, se podia fazer As Vozes
d'África ou Ahasverus e o Gênio, certo não perderia o tempo
estudando o direito. Tantas faltas havia de dar, que não se pôde matricular
para os atos finais, senão mediante dispensa especial, aliás bem informada
pelos seus professores.
A REPRESENTAÇÃO DO "GONZAGA"
Antes disso porém, queria levar à cena
o Gonzaga e agora com Joaquim
Augusto, o primeiro ator brasileiro. Pleiteou junto dele essa representação
porque a da Bahia não contava: fora uma "caricatura", que lhe dera
"ímpetos de atirar ao fogo (o drama), como as mães da China o fazem aos
filhos monstruosos". A razão da insistência era: "o meu trabalho
precisa de uma plateia ilustrada. Precisa talvez mesmo de uma plateia
acadêmica. O lirismo, o patriotismo, a linguagem, creio que serão bem recebidos
por corações de vinte anos, porque o Gonzaga
é feito para a mocidade. Mesmo talvez este desnortear-me do trilho e estilo
seguidos lhe seja um mérito perante tal público".
E foi; a mocidade de São Paulo teve um
estremeção de patriotismo e de esperança, ouvindo um vate que era como o
profeta da liberdade, tanto dos cativos como dos homens forros, súditos porém
de uma coroa, núncio da inteira liberdade da pátria, com a Abolição e a
República.
O espetáculo foi a 25 de outubro; a 27
O Ypiranga dizia: "Recebido
pelos espectadores com todas as honras do triunfo, já apresentado com elogios
por grande parte da imprensa do Império... O que pudéramos dizer já todos sabem
e já o nosso público sancionou na prova solene da exibição cênica... O 3º ato,
o mais belo e perfeito, acorda o coração do espectador e acende-lhe na cabeça
ideias fortes e varonis. Os adeuses dos conjurados a Gonzaga constituem uma cena das mais tocantes a que temos assistido
em teatro. Todas aquelas figuras parece que falam de um pedestal: por ventura
as esboçou assim o autor, teve na alma as harmonias da Marselhesa e viu passar-lhe pelos olhos, em caminho do cadafalso,
os vultos dos Girondinos, saudando a posteridade... Em conclusão, o melhor
elogio que possamos fazer do drama do Sr. Castro Alves é que não pudera ser
obra senão de uma alma livre e não ser feita senão para um povo de
homens". Dissera Castro Alves ter feito o Gonzaga para a mocidade: Nabuco havia de chamar-lhe, ao autor,
"o poeta republicano do Gonzaga".
MOCIDADE DE OUTRORA E DE HOJE
Quem leia nos livros e jornais desse
tempo a efervescência social de tal mocidade, direta e insistentemente
imiscuída nos negócios públicos, agitando ideias e promovendo realizações, não
pode, insensivelmente deixar de pensar na geração moderna, apática e
indiferente, dizem alguns que apenas egoísta e utilitária. Por quê? Terá o
Brasil mudado, e para pior?
Os pessimistas verberam logo censuras
e ironias. Não; defendamos a nossa gente; a alma do Brasil não mudou: mudaram
apenas, e é razão da diferença, os nossos costumes políticos.
Tínhamos um regime parlamentar, um
soberano que reinava mas não governava, e um governo que o parlamento dirigia,
representando o povo. Nesse regime, as câmaras não são feitas para fazer leis,
senão principalmente para esclarecerem a opinião pública, pelo debate. Na
Inglaterra, onde ele existe em sua maior perfeição, debatido, um assunto, no
Parlamento, feita a opinião, decide o governo, após essa deliberação tácita e
prévia: é portanto o povo, pelos seus representantes, quem governa. Mas, no
Brasil, a nossa índole latina e discursadora esqueceu a finalidade do regime e
exauria-se em discussões, sem resolver nada: as mais urgentes reformas eram
adiadas lustros e décadas, para um passo... Reclamava a rua; a imprensa exigia;
a mocidade, mais impetuosa, vinha a campo, para se obter minguadas concessões:
o parlamento, esse discursava. Castro Alves se insurge e ameaça:
"Homens!
Esta lufada que rebenta
É
o furor da mais lúgubre tormenta
—
Ruge a revolução
E
vós cruzais os braços... Cobardia!
E
murmurais com fera hipocrisia
É
preciso esperar...
Esperar
mas o quê? Que a populaça
Este
vento que tronos despedaça
Venha
abismos cavar?"
De tanta procrastinação, quando enfim
os negros tomavam a liberdade, fugindo nos cerros de São Paulo e nas ruas das
capitais era a autoridade incapaz de proteger a propriedade escrava contra os
abolicionistas, que acoitavam os fugitivos, a Coroa fez o Parlamento capitular.
Já era tarde e essa reforma foi apenas precursora da reforma do regime, dado
por incapaz de satisfazer as nossas aspirações de progresso.
Tal era a fome e sede de reformas que
o Governo Provisório da República fez, em pouco além de ano, legislações mais
transcendentais que sessenta anos de Monarquia. Na faina de evitar os erros do
antigo regime, adotamos outro, que tem os vícios opostos do primeiro. O povo
não elege mais, os seus representantes lhe são impostos oficialmente, esses
mesmos "eleitos" nem sempre são "reconhecidos" se lhes
mudou o favor oficial; reunidos, nada podem, sem iniciativa, e apenas a más
horas, fazem a lei de meios que o governo exige: este é que é todo poderoso: —
um presidente de república neste regime é régulo absoluto, por quatro anos.
Como os homens são vaidosos e vivem à procura de "ligar o nome a alguma
obra ou reforma", todas as ideias e sugestões, tenham ou não cabimento,
são com pouco transformadas em leis, sem discussão, sem exame, à revelia do
povo. Por isso, nada tendo a desejar, nessa legiferação intensiva, sem ideias e
causas a discutir, distrai-se a gente em blandícias ou difamações pessoais,
rindo-se dos candidatos à cousa pública.
Na Monarquia ansiava-se anos e anos
por uma reforma indispensável; na República nos fartam de reformas tão
dispensáveis que, de quatro em quatro anos, são reformadas. A mocidade de
Castro Alves, se fora de hoje, assistiria como a nossa, indiferente a esses
improvisos do poder, que nos tiram o desejo, e até a vontade de protestar,
pensando ironicamente que não durará muito, ainda o pior governo, porque o que
fizer, bem ou mal feito, será desfeito e refeito. O Brasil, esse irá, apesar
disso, sempre mais forte e próspero, a despeito das crises que nos promovem os
governos. Felizmente, aos povos adultos, cada vez esses governos valem menos, e
a bela árvore há de vingar, embora o mau jardineiro. Castro Alves hoje cantaria
epopeias passadas ou previsões futuras, sem deixar de ser o mesmo ânimo
generoso e valente, de tantos seus irmãos que há por aí, capazes de bem
servirem amorosamente ao Brasil.
MAL DE AMOR E DE MORTE
Depois da apoteose do Gonzaga, que mais podia Castro Alves
ambicionar? Entretanto, não era feliz. As crises amorosas de ciúme e
reconciliação, que vinham de junho, chegaram graves a setembro; contudo, em
outubro ainda Eugênia representava o papel de Maria no Gonzaga. Pronunciaram-se, depois. Nesses períodos, o estro do poeta
ficava estagnado; quando muito traduzia algumas poesias desalentadas. Quando
veio a ruptura, não lia e não escrevia; fumava, passeava e saía à caça, sem
disparar sequer, com que para estar só e erradio com os seus cuidados. Foi
assim que de uma feita, contou o seu colega e amigo Brasílio Machado... fora
passar o dia no arrabalde do Brás e à tarde tomara a espingarda e saíra ao
campo. Ao transpor uma vala, com o salto, a arma voltada para baixo dispara,
empregando-se toda a carga de chumbo no calcanhar do pé esquerdo. Pôde
arrastar-se até a casa, e o seu amigo e correspondente, o médico baiano Dr.
Lopes dos Anjos, conduziu-o então para a cidade, à rua do Imperador,
"junto ao atual número 33". Essa casa desapareceu e serviu a
ampliação do largo da Sé.
Começou o calvário do poeta. O mal se
agravou, sem esperanças de resolução, acordando antigos padecimentos
pulmonares, esses impressionantes. As crises de desânimo e desesperação foram
dolorosas. Eugênia o abandonara; não lhe faltou porém nunca o carinho e a
solicitude dos amigos, que felizmente velaram por ele. Até o presidente da
província, o Dr. Cândido Borges Monteiro, barão de Itaúna, afamado cirurgião,
trouxeram à consulta. "A cada dor que me lacerava, tinha uma mão de amigo
para apertar". Foram, principalmente, Aureliano Coutinho, Carlos Ferreira,
José Felizardo, Américo de Campos, Ferreira de Menezes, Campos Carvalho, Lopes
dos Anjos, seu constante assistente, Francisco de Paula Rodrigues, esse que foi
depois arcediago sem nunca deixar de ser o querido "padre Chico"...
foram os angélicos amigos de Castro Alves.
Resolveu-se, finalmente a partir, para
a terra natal, após seis meses de martírio "seis meses, diz ele ainda,
vividos na comunhão mais santa... em que a minha cabeça desfalecida encontrava
sempre um bom coração para repousar". A 19 de maio de 69, noticiava O Ypiranga: Castro Alves parte hoje para
a corte, a conselho de seus médicos. "Vai, condor ferido. Mais alto do que
tens voado, dominarás ainda as alturas deste hemisfério". De Santos, no
dia imediato, despede-se, pelo mesmo jornal, dos amigos de quem pessoalmente
não o pudera fazer. Os mais chegados trazem-no a bordo; um deles, Rubino de
Oliveira, acompanha-o até o Rio. Do Rio para a Bahia no fim deste ano, da Bahia
para o sertão, para tornar à capital, onde, a 6 de julho de 1871 descansava
para sempre, faz agora cinquenta anos...
SAUDADES DE SÃO PAULO
São Paulo, essas terras do Sul, foram para
Castro Alves, diz ele, "como o moço Rafael, subindo as escadas do
Vaticano", em busca da glória. Deu-lha São Paulo: aqui teve todas as
aclamações da mocidade e da imprensa que pudera desejar; aqui escreveu dos mais
formosos de seus versos, — hinos e odes épicas, revolucionárias e libertadoras,
como a Mãe do Cativo, Prometeu, o Navio Negreiro, as Vozes d'África, — mimos de incomparável lirismo, meigo, apaixonado
e até filosófico como a Adormecida, o
Hino ao sono, o Laço de fita, a Boa Noite,
Ahasverus e o Gênio...
Foi pensando nos amigos que aqui
deixara, que reuniu seus versos, num livro: "Recordei-me de vós, ó meus
amigos! E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra
hospitaleira, onde vagara, nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e
por vós vivera e sentira, gemera e cantara". Da amurada do navio no qual
se alongava dessas terras do Sul, via ele um rasto de espumas: "Uma
esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. Um
punhado de versos — espumas flutuantes no dorso fero da vida..." São como
os seus versos, essas espumas que refletem às vezes o íris, como "o prisma
fantástico da ventura e do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de
Deus com a juventude. Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando, nas
solidões marinhas a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos — efêmeros filhos de minh'alma — levar uma lembrança de mim às vossas
plagas".
E publicou, esse livro de gênio, — o
mais lido dos livros brasileiros, as Espumas
Flutuantes, — mas não se esqueceu de declarar ao autor a sua qualidade, que
era como que, o seu orgulho: "Castro Alves, estudante do quarto ano da
Faculdade de Direito de São Paulo"...
Podia ele esquecer São Paulo? Aqui
fora amado e admirado; aqui amara e sofrera; daqui havia sempre de lembrar-se,
com íntima e dolorida saudade em versos que se não leem hoje sem doce e profunda
comoção, pois que definem São Paulo e evocam saudosamente Castro Alves:
"Tenho
saudades... ai! de ti São Paulo
—
Rosa de Espanha no hibernal Friul —
Quando
o estudante e a serenata acordam
As
belas filhas do país do sul.
Das
várzeas longas, das manhãs brumosas
Noites
de névoa ao rugitar do "sul"
Quando
eu sonhava nos morenos seios
Das
belas filhas do país do sul."
E tinham razão estas saudades: se a
Bahia lhe fora o berço, lhe dera a glória São Paulo!
---
---
Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...