Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Meus jovens compatriotas. — No cativante
ofício que me dirigistes convidando-me a realizar esta conferência sobre Castro
Alves, trai-se a feição preeminente do vosso culto pelo poeta.
"Insigne e extraordinário
condoreiro da Bahia", dissestes; e transfigurastes, na fórmula gloriosa de
uma consagração, um título não raro irônico, ou derivado dos escrúpulos
assombradiços da crítica literária ante o misticismo anômalo do cantor. Por
isso mesmo deliberei acompanhar-vos neste rumo; não já por ajustar-me ao vosso
nobilíssimo entusiasmo, senão também por facilitar, simplificando-a, a tarefa
que me cometestes. Mas observei para logo que a facilidade prefigurada, como
efeito do restringimento da tese, era ilusória.
O sonhador, contemplado na
fisionomia particular que lhe imprimiu o seu lirismo revolucionário de
propagandista fervente das ideias e sentimentos de seu tempo, apareceu-me maior
do que abrangido na universalidade dos motivos determinantes das emoções
estéticas.
À restrição da sua figura
literária correspondeu um alargamento na história.
O fantasista imaginoso
transmudou-se.
Revendo-o, vi o aparecimento,
quase inesperado, de uma fase nova na evolução da nossa sociedade.
Mas, para isto, fechei os meus
olhos modernos e evitei a traiçoeira ilusão da personalidade, que está no
projetar-se o nosso critério atual sobre as tendências, por vezes tão outras,
das gentes que passaram.
Fui, deste modo, muito ao arrepio
das ideias correntes, fortalecidas ainda há pouco por Guilherme Ferrero, na sua
tentativa de deslocar para o estudo da humanidade o princípio das causas
atuais, que o gênio de Lyell instituiu para explicar-se o desenvolvimento
evolutivo da terra. E não me arrependo de o ter feito. Tenho que é impossível
conjugar-se a simplicidade das leis físicas com o intrincadíssimo dos fatos morais,
submetendo-se à mesma norma de pesquisas o maior e mais simples dos
inorganismos e o maior e mais complexo dos organismos. Isto pode determinar
curiosas surpresas: por exemplo, a reabilitação de Tibério... Nada mais, porém,
além deste triunfo literário; tão flagrantemente ilógico é o transplante de um
método inspirado em causas que se eternizam na passividade da matéria, para o perpetuum mobile do sentimento, ou do
espírito, sempre a mudar, ou a renascer, sempre mais novo à medida que avulta
em séculos, e sempre a transformar-se, ao ponto de se inverterem os impulsos
mais enérgicos que presidiram os seus diferentes estádios.
Não preciso mostrar-vo-lo. À
parte o quadro do nosso regime industrial, ou artístico, bastaria referir-me às
mudanças profundas da própria ordem moral, que Th. Buckle supôs tão imutável no
meio do desenvolvimento das inteligências. E recordar-vos, percorrendo a escala
dos móveis de nossos atos, quão díspares eles são, hoje, do que foram: desde as
manifestações mais gloriosas das nossas energias às mais tocantes da nossa
bondade; — desde o nosso heroísmo, que era ontem a forma mais fácil da coragem
a desprender-se da larva da atividade militar, e agora se aparelha a lutas
menos ruidosas e mais sérias, até a nossa piedade, que nasceu do íntimo
sentimento da nossa fraqueza e vai-se transformando no aspecto mais encantador
da nossa força.
Não me delongarei, porém. Tenho
um fim neste exórdio imperfeito: prevenir-vos que entre o avaliar os homens e
as coisas do passado, como objetos artísticos, através do nosso temperamento, e
o vê-los, tanto quanto possível, forros das nossas tendências diversas, prefiro
o último caso. Entre o considerá-los, como um geólogo, aplicando as suas
regrinhas estratigráficas, indiferentemente, a uma velhíssima camada siluriana
e a um estrato recente, prefiro — já que está em moda a canhestra filosofia do
adaptarem-se as normas das ciências inferiores às superiores — considerá-los
como o astrônomo, respeitando todas as consequências da distância e dos meios
interpostos. Assim, quando observamos o sol, sabemos que ele não está no ponto
em que o vemos: deslocam-no-lo muitas circunstâncias intermédias. O próprio
raio vertical de uma estrela no zênite, que as elimina, é falso: chega-nos no
desvio em que se compõe a velocidade do grande observatório telúrico com a da
luz. Destarte, a própria visão material nos é errônea. Envolve-nos uma ilusão tangível.
E todo o trabalho das observações mais simples está em eliminarem-se as
aparências enganadoras da realidade, por maneira que, ao fim de longos
cálculos, possamos ver o que os nossos olhos não mostraram.
Acontece o mesmo contemplando-se
o passado. A nossa visão interior alongando-se no tempo, como a exterior ao
desatar-se no espaço, é sempre falsa quando se atém só ao que divisa e não
atende aos erros oriundos menos do objeto observado que da nossa posição e do
meio que nos circula.
Ora, o grande poeta, motivo
essencial desta assembleia, apesar da diminuta distância que no-lo separa, mais
do que nenhum outro retrata, na sua nomeada variável, o contraste dos dois
critérios históricos rapidamente bosquejados.
De fato, o seu renome é
excepcional e curiosíssimo: todos nós o admiramos até aos vinte e poucos anos;
depois o esquecemos. Esquecemo-lo, ou repudiamo-lo. É uma glória que intermite
no ritmo das gerações sucessivas. Tem este traço expressivo: adormenta-se, ou
restringe-se, no breve curso da nossa vida individual, e prolonga-se sem fim,
restaurada de ano a ano, sempre maior, nascendo, ressurgindo e avultando, no
nascer, no ressurgir e no avultar na própria sociedade. É como a luz,
perpetuamente moça. Não dura a vida de um homem, e é eterna. Exige almas
ardentes e a intrepidez varonil da quadra triunfal, em que andamos pela vida na
garbosa atitude de quem oferece o molde de sua própria estátua, como obscuros e
antecipados grandes homens, vivendo no futuro, para onde nos leva o
arrebatamento de todas as esperanças. Não a comporta a alma esmorecida dos
velhos, ou o juízo retilíneo do homem feito. Quando não a sentimos mais,
imaginamos que ela se extinguiu, como se a noite fosse o apagamento do sol; e
não fôramos nós que mergulhássemos, como a terra, na nossa própria sombra,
inscientes dos resplendores que na mesma hora estão caindo sobre as outras
zonas e sobre as novas gentes. Desta maneira ela vai passando, feita a herança
sagrada das juventudes que se acabam; e, perenemente imóvel no oriente da vida
nacional, a refulgir nos mesmos cérebros juvenis, nos mesmos olhos
recém-abertos à existência, nos mesmos sonhos ardentes dos homens de uma mesma
idade, é, de fato, imortal, porque diante dela se verifica uma espécie de
imobilidade no tempo...
São compreensíveis os contrastes.
De um lado, na quadra em que toda a irreflexão desponta do muito refletirmos o
que nos cerca — está uma larga expansibilidade de sentimento, e, de par com
ela, uma simpatia avassaladora, que corrigem em grande parte os desvios da nossa
inexperiência, ampliando-nos a vida, ao ponto de podermos compreender, sem que
careçamos discuti-las, as sínteses maravilhosas dos sonhadores. De outro, a
nossa inteligência, mais e mais sobrecarregada das impressões que nos rodeiam
de perto e chumbando-nos cada vez mais à base objetiva das coisas.
Turva-se-nos, então, a limpidez espiritual para espelharmos as figuras anômalas
desses predestinados, que não podem ser como nós somos, na imensa complexidade
que os transforma, por vezes, em índices abreviados de uma época. O nosso culto
decai. Distinguimos-lhes defeitos que não notáramos. Vemo-los diminuídos, e
temos a ilusão de que eles vão passando e desaparecendo... o vulgaríssimo
engano de quem, num trem de ferro, sente-se parado e vê fugirem, disparadas,
desaparecendo, as grandes árvores que se aprumam, enraizadas e imóveis, à
margem do caminho. Porque não é o poeta que se apequena e passa; é a nossa vida
que se desencanta. Estonteia-nos nessa quadra a pior das nossas ilusões: a
ilusão de que somos melhores, mais lúcidos, mais práticos, mais sábios. Os
quadros da existência já não nos dominam. Dominamo-los nós. Submetemo-los a uma
crítica permanente e cerrada, com as máximas exigências daquilo que chamamos,
garbosamente, a nossa personalidade. Sentimo-nos emancipados. Principiamos a
construir a ficção de um nome. E não percebemos que algumas vezes, nessa
pletora da individualidade, se nos reduz o tipo social, até desaparecer
encouchado e comprimido no âmbito estreitíssimo do nosso euzinho, que
imaginamos enorme. E lá nos vamos, impando os nossos triunfos e as nossas
convicções muito firmes, muito enrilhadas, muito duras, envaidando-se de
calçarem os pobres coturnos rasos de uma meia ciência pretensiosa.
Então esse Castro Alves, o
"condoreiro", que nos arrebatou aos maiores lances da nossa fantasia,
surge-nos monstruoso, paradoxal, quimérico...
É que nos andamos tão jungidos às
tendências adquiridas, que não logramos mais sequer balancear os efeitos das
simples diferenças de datas para vermos a imagem do poeta corrigindo o nosso
descortino das causas perturbadoras que no-la desviam. E, desdobrando o nosso
critério atual sobre um tempo de que nos separam os quarenta anos mais intensos
de nossa história, sobressalteiam-nos, por força, grandes desapontamentos.
É compreensível. A sua fantasia
exagerada contrasta demais com o mundo em que vivemos. Na esteira infernal, que
o Navio Negreiro abriu sobre o abismo, com a singradura fantástica,
...abrindo as velas,
Ao quente arfar das virações marinhas,
navegam hoje os pacíficos
transatlânticos, onde se apinham os emigrantes tranquilos, que reclamamos para
as lavouras do Oeste. O recife imenso de pedra, "que rasga o peito do
mar", está em boa hora submetido aos cálculos e aos desenhos rigorosos de
alguns provectos engenheiros a projetarem os melhoramentos do porto de
Pernambuco...
E a própria cachoeira de Paulo
Afonso
... a cachoeira! o abismo!
A briga colossal dos elementos!
...............................................
Aguentando o ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai ao ombro!
... a cachoeira de Paulo Afonso
em breve terá a sua potência formidável aritmeticamente reduzida a não sei
quantos milhares de cavalos vapor; e se transformará em luz para aclarar as
cidades; em movimento, abreviando as distâncias, avizinhando os povos e
acordando o deserto com os silvos das locomotivas; em fluxo vital para os
territórios renascidos, transfundindo-se na inervação vibrátil dos telégrafos;
em força inteligente, fazendo descansar um pouco mais o braço proletário; e
fazendo-nos sentir o espetáculo de uma mecânica ideal, de efeitos a se
estenderem pelos mais íntimos recessos da sociedade, no másculo lirismo da
humanização de uma cega energia da natureza...
Vede, por aí, como se contrabatem
os estímulos modernos e aquele misticismo maravilhoso.
Além disto, o aparecimento de
Castro Alves, certo oportuno, como o de todo grande homem, é, em grande parte,
inexplicável. Ele não teve precursores na sua maneira predominante. Os grandes
pensamentos, sociais ou políticos, que agitou não lhe advieram, como em geral
sucede, de longas ou bem acentuadas correntes nos agrupamentos que o rodeavam.
Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época. Nasciam do patrimônio comum
das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisto: ele os viu
antes e melhor do que os seus contemporâneos. Compreende-se que o estranhassem.
Sem dúvida, devera ser anômalo, e, ao parecer, desorado, o vidente que surgia,
de improviso, num estonteamento de miragens, e a proclamar uma nascença ainda
remota, ou a descrever a era nova, que poucos adivinhavam, numa linguagem onde,
naturalmente, os mais belos lances de seu lirismo incomparável teriam de
golpear-se do abstruso e do impressionismo transcendental das profecias...
A este propósito lembram-me
alguns conceitos que se exaram numa das conferências de Renan. Li-os cheio de
espanto. O adorável pensador pareceu-me, ao primeiro lance, desviado do seu
inalterável senso não comum, do seu ceticismo suavíssimo e da sua ironia tranquila.
A seu parecer, dizia sem rodeios aos que o escutavam, uma raça dá os seus
melhores frutos quando desperta de uma dilatada sonolência. As mais belas
revelações intelectuais têm sempre um enorme lastro de inconsciência, ou, como
acentuava, de vastos reservatórios de ignorância.
E ia por diante na aventurosa
tese tão chocante, ou contravinda, às mais vulgares noções da continuidade do
progresso, afirmando temer pela humanidade no dia em que a luz atravessasse
todas as suas camadas. Por que — inquiria — de onde viriam, então, os
sentimentos instintivos, o heroísmo, que é tão essencialmente hereditário, o
amor nobre das coisas, que nada tem com os nossos juízos, e todos esses
pensamentos inconscientes de si próprios, que estão em nós sem nós e formam a
melhor parte do apanágio de uma nacionalidade inteira? Por derradeiro — rematava
-, de onde viria o gênio, que é quase sempre o resultado de um longo sono
anterior das raças?
É, como vedes, paradoxal e
inaceitável.
Entretanto, defrontados o nosso
poeta e a sociedade de seu tempo, e vendo-o aparecer quando ela, de feito, se
afigura despertar de um demorado sono, afeiçoamo-nos, irresistivelmente, à
metafísica imaginosa do notável pensador.
É o que nos demonstrará, de
maneira evidente, um breve lance de vistas sobre o passado.
***
Com efeito, não sei de nenhuma
raça que, como a nossa, despertasse nestes tempos, depois de um mais profundo
sono, aparelhando-se, à carreira, para alcançar a marcha progressista de outros
povos.
Baste considerar-se que somos o
único fato de uma nacionalidade feita por uma teoria política.
Fora longo desviar-me patenteando
os elementos originários da afirmativa. Não há prodígios de síntese que nos
digam, em poucas palavras, o contraposto da nossa formação étnica, ainda
incompleta e em pleno caldeamento de três fatores diversos, e a unidade política
estendida em vastíssimas terras, numa inversão flagrante da ordem lógica dos
fatos, fazendo que a evolução social passasse adiante da evolução biológica.
Aparecemos quando se cerrava o
período medievo, lançando-se os fundamentos reconstruintes de outras
sociedades; naquela ocasião tínhamos três cores e falávamos três línguas,
definíamos três estádios evolutivos. Destarte, sem o mesmo tirocínio secular,
prendemo-nos à rota de outras gentes mais experimentadas; e sofremos para logo
as consequências da temeridade. Sem uma idade antiga, nem média, fomos
compartir as primícias da idade moderna; o efeito foi que as nossas idades
antiga, média e moderna confundiram-se, interserindo-se dentro das mesmas
datas. Há um livro que é simples historiúncula desse drama obscuro. A luta de
1897, nos sertões baianos, a despeito de sua data recente, foi um refluxo do
passado; o choque da nossa pré-história e da nossa modernidade; uma sociedade a
abrir-se nas linhas de menor resistência, e mostrando, em plena luz, as suas
camadas profundas irrompendo devastadoramente, a exemplo das massas candentes
de diábase que irrompem e se derramam por vezes sobre os terrenos modernos,
extinguindo a vida e incinerando os primores da flora exuberante.
E foi em nossos dias... Calcule-se
como estariam ainda mais desquitados entre si, em 1822, os três grandes
agrupamentos...
No entanto, fizemos uma
constituição política; isto é, fizemos o que é sempre uma resultante histórica
de componentes seculares, acumuladas no evoluir das ideias e dos costumes; o
que é um passo para o futuro, garantido pela força conservadora do passado; o
que é essencialmente tradicional; e o que menos se faz do que se descobre no
conciliar de novas aspirações e novas necessidades com os esforços, nunca
perdidos, das gerações que nos precedem. Tanto importa dizer que fizemos uma
teoria com materiais estranhos, a ressaltar do esforço artístico, ou subjetivo,
de uma minoria de eruditos. E assim nascemos sob o hibridismo da monarquia
constitucional representativa — quase abstratamente, ou patenteando, pelo
menos, o maior exemplo de política experimental tateante que se conhece.
No entanto, realizamos duas
conquistas capazes por si sós de constituírem o programa de uma nacionalidade.
Fizemos a Abolição e a República. Mas, ainda neste lance, o historiador futuro
não encontrará pontos determinantes que lhe bastem ao diagrama de uma evolução.
Realmente, o ideal democrático,
bem que o favorecesse a falta de tradições dinásticas, jazeu largo tempo com o
único e longínquo ponto de partida da Inconfidência mineira, alimentando-se da
lembrança dolorosa do heroísmo inútil de meia dúzia de poetas e de um soldado.
Em 1822 sopeou-o, assim como à ideia abolicionista, apesar da lucidez genial de
José Bonifácio, o pensamento preponderante da autonomia política; e no decênio
que vai até 1831, nos tumultos que o sulcaram, nota-se mais o antagonismo
nativista que o entrebater das correntes republicana e monárquica contrapostas.
Como quer que fosse, o
liberalismo triunfante no 7 de abril perdeu as honras da vitória. Entre ele e
os reacionários absolutistas, vencidos e desnorteados pela renúncia do primeiro
Imperador, interpôs-se um partido que não lutara e chamava-se, curiosamente,
liberal-monarquista. Fortalecia-o o caráter neutral entre adversários ainda
combalidos do recontro; e harmonizando as conquistas dos triunfadores da
véspera com as tendências conservadoras dos vencidos, pôde repelir-lhes por
igual os objetivos extremados, anulando, do mesmo passo, com a república
prematura o absolutismo revivente. E institui-se a Regência. Não a condenemos.
Ela foi o único regulador capaz de uniformizar tantas energias revoltas de
tendências disparatadas. A figura de Diogo Feijó, que a domina, sobranceia todo
o nosso passado. Tem linhas esculturais, que ainda não se reproduziram em
nossos homens públicos. Que outros admirem os marechais dominadores de
rebeldias dentro do círculo de aço dos batalhões fiéis; eu prefiro admirar
aquele padre estupendo que com as mãos inermes quebrava as espadas dos regimentos
sublevados. Ninguém mais do que ele nobilitou a lei, restaurou a autoridade e
dignificou o governo. Mas, embatendo na sua alma antiga, quebrou-se,
totalmente, a vaga de uma revolução. E ele fez o remanso largo do segundo
Império...
Na realidade, daí por diante, num
período de trinta anos, é escusado perquirir-se o curso da corrente
republicana, ou da abolicionista, nos abalos sociais que houve: no extremo sul,
a luta separatista desenrolou-se durante dez anos, toda ela local, diante da
impassibilidade do resto do país; no extremo norte, as selvatiquezas da
"cabanagem" nada mais foram que um sintoma da heterogeneidade étnica
há pouco referida. Um outro refluxo do passado. Ao "cabano"
sucederiam, no correr dos tempos: o "balaio" no Maranhão; o
"cangaceiro" em Pernambuco; o "chimango" no Ceará; nomes
diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje projetando nas
claridades da República o perfil apavorante do "jagunço".
Nos demais tumultos, o exame
torna-se até contraproducente: nos de 42, em S. Paulo e Minas, e nos de 48, em
Pernambuco, os rebeldes, timbrosos em conclamar a adesão ao trono, arremetem
com as tropas imperiais saudando a realeza.
Assim fomos, até que se
infiltrasse de todo em nosso organismo político o marasmo monárquico, desenhando-se
a época "sem fisionomia", sem emoções e sem crenças" a que se
referiu Salles Torres-Homem, na qual esteve tão adormecido o sentimento
nacional que não despertou o próprio brio apisoado quando a civilização nos
atirou o insolente ultimatum do bill
de Aberdeen e nos rodeou de um verdadeiro cordão sanitário, mandando que os
cruzeiros ingleses rondassem as nossas costas, numa azáfama inquieta de
patrulhas à roda de um ajuntamento ilícito.
Por fim, se conciliaram as únicas
tendências políticas definidas, que agiram em tão largo período, resumindo-se
nas divergências desvaliosas dos dois partidos constitucionais — ocupando todo
o horizonte político o Marquês do Paraná, simbolizando a plenitude do
Império...
Mas o grande estadista separou
duas épocas. A própria data, 1859, da sua saída do Governo é expressiva. É a
média entre 1831 e 1888-1889. O império e a oligarquia escravocrata, em que ele
se esteara, imprudentemente, iriam gastar, apeando-se de seu fastígio, o mesmo
número de anos que haviam despendido para adquiri-lo.
Porque em 1860 houve o primeiro
estalo naquela estrutura artificial. O ideal democrático apareceu, de golpe
rejuvenescido, depois de um curso subterrâneo e misterioso. Nas eleições
daquele ano o partido liberal levantou três nomes, que se completavam na
variabilidade de seus destinos: Francisco Otaviano, um mulato ateniense,
romântico e idealista, cantava a volta triunfal das utopias; Teófilo Otoni,
impulsivo e rude, seria o detonador das expansões populares adormidas; e, maior
do que ambos, Saldanha Marinho destinava-se a um longo itinerário. Eram os
batedores da era nova que chegava. O ideal irradiava. Nas Câmaras, um novo
partido, com o nome sugestivo de "progressista", entalhava a
ortodoxia monárquica, a despeito do caráter sacratíssimo que lhe dava a
santíssima trindade conservadora de Eusébio de Queirós, Itaboraí e Uruguai. Na
imprensa, a Actualidade, de Pedro
Luís, Flávio Farnese e desse Lafaiete Rodrigues Pereira, que ainda refulge no
cimo de uma velhice majestosa, agitava um ultraliberalismo visando corolários
extremos. No próprio Senado, Nabuco — um nome que é um patrimônio nacional — aproveitava
a cerimônia inaugural da estátua de D. Pedro I para afirmar que ela traduzia
antes a paga de serviços prestados do que a glorificação de um reinado. E na
ordem estética, até então ocupada pela grandeza castiça e impecável de
Gonçalves Dias, ou pela musa espartilhada de Maciel Monteiro, passaram,
abalando-a, num longo ruído de terremoto longínquo, os alexandrinos da Mentira
de bronze... Por fim, nas praças, o espírito público desatava-se em rebeldias
desde muito deslembradas, a propósito dos mínimos incidentes.
Foi o que sucedeu em 1863, por
ocasião dos tumultos originados pelos salvados da barca Prince of Wales, e subsecutivas represálias da fragata inglesa Forth.
Amotinou-se a multidão no Rio.
Tomou-lhe a frente Teófilo Otoni. Um protesto violento arrebentou junto do
trono: e o Ministério daquele Marquês de Olinda, que era, de fato, uma espécie
de vice-imperador, o "ministério dos velhos", num triste apagamento
de sombras, as últimas sombras do passado, extinguiu-se, sulcado pela palavra
de fogo de um tribuno...
***
Ora, por aquele mesmo tempo, no
mesmo ano, uma voz mais alta, mais nova e mais dominadora se alevantou ao
norte. E tinha um ritmo, como o têm todas as forças criadoras da natureza. As
energias sociais emergentes, nos vários aspectos que iam da ideia republicana
ao sentimento abolicionista, desvendavam-se, afinal, como soem sempre aparecer
as grandes aspirações sociais: imaginosas e vastas, a nascerem do vago e do
impreciso das utopias — que recordam na ordem espiritual o vago e o amorfo das
nebulosas de onde nascem os mundos — vibrando nas rimas soberanas de um poeta.
A revivescência do espírito nacional completava-se, consoante a norma lobrigada
pela intuição do filósofo: depois de um longo, de um profundo sono. Aparecia o
homem que mais que todos lhe imprimiria o impulso inicial das emoções
estéticas, sempre indispensáveis aos grandes acometimentos. Porque naquela
palavra nova, por um milagre de síntese que a nossa afetividade às vezes
efetua, suplantando as maiores generalizações científicas, conchavaram-se, de
súbito, as grandes esperanças do futuro e os graves compromissos do passado.
Refundiram-se os elos partidos e esparsos das nossas tradições: o cantor do Livro e a América seria o mesmo
idealista das Vozes d'África, que
eram a própria voz de uma raça inteira condenada, ressurgindo e ressoando
nestes tempos, depois de três longos séculos silenciosos...
Não nos retardemos em palavras
dilatórias armadas a mostrarem que nenhum dos nossos poetas foi, tanto quanto
Castro Alves, ainda mais oportuno, nascendo com o renascimento da sua terra. Os
sucessos sumariados dizem-no-lo por si mesmos. Está nesta circunstância a sua
maior grandeza.
O que apelidamos grande homem é
sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual,
compondo-a com as forças infinitas da humanidade; e não sei de quem, como ele,
entre nós, naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo,
revivente, estimulando-o e aformoseando-o.
Se prolongássemos a pálida
resenha histórica anteriormente delineada, veríamos que aquele decênio de
1860-1870, em que tivemos até o diversivo espetaculoso de uma guerra externa,
foi, entre todos, o mais decisivo para os nossos destinos. E quando chegássemos
ao ministério do Visconde do Rio Branco, que lhe prolongou as novas tendências
renascidas até 1875 e, virtualmente, até quase a estes dias, constituindo-se o
mais longo e fecundo dos governos parciais do império, não nos maravilharíamos
que o lúcido estadista houvesse de ser, a um tempo, demolidor e reconstrutor:
de um lado, dirigindo o primeiro assalto contra a escravidão; entalhando,
fundo, a ortodoxia católica e eliminando a justiça reacionária do código russo
de 1841; de outro lado, normalizando as atividades; aviventando o
desenvolvimento econômico; nivelando-nos à ciência contemporânea com a reforma
das escolas; golpeando o deserto com as estradas de ferro de penetração e dando
à unificação de nossas ideias, tão enfraquecida pelo espalharem-se em
território vastíssimo, a base prática dos telégrafos, que irradiaram pelas
províncias, enfeixando-se no Rio de Janeiro, onde, em 1874, o primeiro cabo
submarino, atravessando o Atlântico, nos permitiu contar os mesmos minutos que
a civilização.
Porém, desviar-nos-íamos
sobremaneira firmando o travamento complicado, que prende às fantasias, tão na
aparência subjetivas, de um poeta essas admiráveis transformações, que se lhe
figuram tão estranhas ou contrapostas.
Nem direi de sua influência na
plêiade de moços, seus contemporâneos, que ele transfigurou e dirigiu,
libertando-a das prosaicas epopeias caboclas de Magalhães, ou Porto Alegre, do
cândido erotismo do Amor e medo, ou
do esplêndido romantismo exótico de Álvares de Azevedo e seus epígonos.
Prefiro, adstrito à observação
pessoal, apontar-vos o seu influxo na minha geração, que está envelhecendo, já
pelos anos, já porque nenhuma mocidade foi, como ela, tão brutalmente jogada de
uma academia para os planos de fogo das trincheiras, sofrendo as consequências
das loucuras de alguns velhos.
Falo por mim. Eu fui um obscuro e
pertinaz estudante de matemática. Quer dizer: precisamente quando mais adorável
se nos mostra o quadro desta vida, e o seu vigor desponta da mesma ansiedade de
viver, tive que contemplar o universo vazio e parado — apagadas todas as luzes,
extintos todos os ruídos, desaparecidas todas as coisas, desaparecida a própria
matéria — de sorte que nessa abstração, a aproximar-nos do caos, permaneçam,
como atrativos únicos, a forma, nos seus aspectos irredutíveis, e o número e
sinais completamente inexpressivos. Pois bem; folheando, há pouco, os meus
velhos cadernos de cálculo transcendente, onde se traçam as integrais secas e
recurvas ao modo de caricaturas malfeitas, de esfinges, e onde o infinito, tão
arrebatador no seu significado imaginoso, ou metafísico, se desenha, secamente,
com um oito deitado, um número que se abate, desenhando, de uma maneira
visível, a fraqueza da nossa inteligência, a girar e a regirar numa tortura de
encarcerada, pelas voltas sem princípio e sem fim daquele triste símbolo
decaído — deletreando aquelas páginas, salteiam-me singularíssimas surpresas.
Aqui, num breve espaço em branco,
na trama dos riscos de uma coisa que se chama equações binômias, e nunca mais
vemos na vida prática, fulgura, iluminando a folha toda:
República! vôo ousado
Do homem feito condor...
além, enleada de sigmas, de alfas
e de gamas cabalísticos, divisa-se
A catapulta humana — a voz de Mirabeau!
mais longe, seguindo um ramo de
parábola, no seu arremesso eterno para o infinito, estira-se
O trilho que Colombo abriu nas águas
Como um íris no pélago profundo!
Assim nos andávamos nós naqueles
bons tempos: pela positividade em fora, e a tatear no sonho...
É que Castro Alves não era apenas
o batedor avantajado dos pensamentos de seu tempo. Há no seu gênio muita coisa
do gênio obscuro da nossa raça.
Aos que lhe denunciam nos versos
a autoridade preponderante de Victor Hugo esquece-lhes sempre que ela existiu
sobretudo por uma identidade de estímulos. Não foi o velho genial quem nos
ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e
todos os exageros da palavra a espelharem, entre nós, uma impulsividade e um
desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos.
Somos uma raça em ser. Estamos
ainda na instabilidade característica das combinações incompletas.
E nesses desequilíbrios
inevitáveis, o que desponta na nossa palavra — irresistivelmente ampliada — parece-me,
às vezes, ser o instinto, ou a intuição subconsciente, de uma grandeza futura
incomparável.
Eu poderia recitar-vos um
sem-conto de trovas sertanejas, onde as metáforas e as alegorias, e até as
antíteses, se acumulam, alguma vez belíssimas, e detonam e fulguram, sempre a
delatarem uma amplificação, o eterno aspirar por um engrandecimento e uma
afetividade indefinidamente avassaladora e crescente.
E não já nas quadras, em que os
bardos roceiros têm o estimulante dos desafios recíprocos, senão na
trivialidade do falar comum, exprimindo os atos mais vulgares, desde o nosso
caipira, que, ao procurar em qualquer cômodo exíguo um objeto, nos diz, num
largo gesto, que está campeando, como se o rodeassem os sem-fins dos horizontes
vastos; até ao cabra destabocado do norte, que, ao relatar o incidente
costumeiro da dispersão de uma ponta de gado na caatinga, brada,
estrepitosamente, que o boiadão estourou num despotismo ribombando no mundo...
A par disto, o refluxo natural
das apatias, inventando-se a modinha para embalar a tristeza e a preguiça dos
matutos. Não vo-las descreverei, redizendo-me. Fora enlearmo-nos todos, sem
efeito compensador, na trama inextricável das raízes gregas dos presuntuosos
neologismos etnológicos. Exponho-vos o que coligi de observações diretas. Por
uma felicidade rara, calcei, há muito, umas velozes "botas de sete
léguas" que me tornaram arredio das cidades, perdido, esquivo e errante no
meio dos nossos simples patrícios ignorados. Conheço-os de perto. Vi-os na
quietitude de suas vidas primitivas. Vi-os na batalha. Atravessei com eles
belos dias de lutas heroicas e sem glória nas campanhas formidáveis e obscuras
do deserto. E sempre os vi num oscilar enorme, entre as suas tendências
discordes, exageradas todas.
E quando releio o lírico
suavíssimo da Volta da Primavera, da Adormecida, desse surpreendente poema de
duas páginas, O Hóspede, e dos Murmúrios da tarde, ou do Gondoleiro do Amor — que é o próprio
vidente arrebatado da Ode ao Dois de
Julho, das décimas que imortalizaram Pedro
Ivo, da Deusa Incruenta, ou do Coup d'étrier, e vou, de um salto, das
páginas por onde os versos vão derivando, docemente,
como as plantas que arrasta a correnteza,
para as rimas furiosas, que se
entrebatem e estalam e estrepitam
com o estampido estupendo das queimadas!
estou em que Castro Alves foi
também altamente representativo da nossa raça.
Por isso mesmo não teve medida,
consoante nos ensinaria qualquer crítico reportado e sabedor...
E não podia tê-la, porque nunca
se isolou de seu meio. De ordinário, quando se trata da vida exterior de Castro
Alves, episodiam-se, longamente, os seus triunfos nos salões, ou nos teatros da
época, onde lhe prefulgia a beleza varonil realçada pela glória nascente. Ou
então a rivalidade boêmia com aquele extraordinário Tobias Barreto, que, sendo
mestiço, se tornaria mais brasileiro do que o poeta baiano se a sua veemente
alma tropical não resfriasse sob as duchas enregeladas de quatro ou cinco
filosofias da Alemanha.
E agitam-se, a propósito, algumas
anedotas inexpressivas e graciosas, em que se entrouxam as saias de Eugênia
Câmara e a túnica da mulher de Putifar. Não nos percamos por aí.
Há outras mais acomodadas ao
nosso intento. Conta-no-las o Dr. Regueira Costa — que para felicidade minha acertei
de encontrar numa das escalas desta carreira errante, quando passei em Recife,
e cujo belíssimo coração é todo ele um relicário guardando a memória saudosa do
poeta, de quem foi extremosíssimo amigo. A ele ouvi eu que Castro Alves não
engenhava o melhor de suas apóstrofes revolucionárias na placidez de um
gabinete de trabalho. Agia com todo o ardor de que é capaz um propagandista.
Assim, foi o presidente de uma das primeiras sociedades abolicionistas que
houve no Brasil, reunindo, em 1866, na cidade do Recife, em torno do programa
libertador, a maioria dos estudantes da Faculdade de Direito, onde se
destacavam Augusto Guimarães, Plínio de Lima e um predestinado, Rui Barbosa.
As décimas fulminantes nem sempre
as concebia no cauteloso encerro de certos demiurgos, que abalam tronos,
desconjuntam sólios, aluem instituições, viram sociedades pelo avesso, alarmam
a polícia e põem o Universo em polvorosa, manipulando os raios de seus pontos
de admiração e o sombrio cariz de suas tempestades de sílabas, muito
pacificamente engrimponados num tamborete alto, de bruços na secretária bem
arrumada. Saltaram-lhe, muita vez, de improviso, num ângulo de esquina, num
centro de praça, num camarote de teatro, ou no balcão de uma janela
repentinamente aberta, enquadrando-lhe de improviso a formosa figura de
girondino diante da multidão revolta e fascinada. E na grande maioria se
perderam. Apaziguado o tumulto, os que lhas haviam escutado e aplaudido mal
conservavam raros versos, os mais impressionantes, longamente esparsos com
estilhas de granadas.
Observe-se, contudo, esta
circunstância: recolhiam-se e rememoravam-se os mais vivos, digamos melhor, os
mais gongóricos, ou "condoreiros", vibrados com ímpeto tal que os
estampasse para sempre na própria rudeza do espírito popular. Assim, no final
de uma conferência republicana que houve, por volta de 1867, na capital de
Pernambuco, quando o povo se espalhava, desparzido a patas de cavalo, o poeta
procurou sobrestar as cargas policiais vibrando rimas violentas, que
principiavam:
A praça, a praça é do povo
Como o céu é do condor!
Vede como aí o revolucionário
sacrificou o lírico. Tais versos fá-los-ia um qualquer improvisador sertanejo,
qualquer dos nossos caipiras, ou piraquara do litoral, ou capixaba
espírito-santense, ou tabaréu baiano, ou guasca largado do Rio Grande, com o só
excluir-se daquele condor, que nenhum deles viu, nem verá.
Entretanto, embora não se
encontrem nos livros do poeta, ficaram.
Porque a ele não lhe bastava o
haver deslocado para a sua pátria os elevados pensamentos políticos do tempo;
senão que os apresentava com um fino tato de propagandista, por maneira a
gravá-los, incisivamente, para sempre, na alma da multidão.
E aquele abnegar-se a si próprio,
aquele abdicar de si todas as vantagens de um cômodo isolamento para ir sofrer
de perto o contágio da índole ainda revolta, ou desequilibrada, da sua raça;
aquele tornar-se, porque assim o digamos, intérprete, entre os maiores ideais
de toda a cultura humana e a consciência nascente de seu país — contribuíram,
notavelmente, a que se criasse a nota exagerativa dos versos formadores de seu
maior renome, apagando-se, ou empalidecendo, a maioria de outras criações,
porventura mais valiosas, de um lirismo admirável.
É que somos, ainda, sobre todos
os outros, o povo das esplêndidas frases golpeantes, das imagens e dos
símbolos.
***
Não indaguemos se isto é um bem
ou um mal. Talvez um mal.
Há um lance de grave substância,
em que se irmanam o espírito apercebido das maiores generalizações e o senso
mais comum e terra-a-terra. Nele se dão os braços o filósofo complicado e o
burguês simplesmente cauteloso e solerte: Augusto Comte e Simão de Nântua. É o
que nos diz que, nesta vida, em qualquer dos rumos percorridos, quer nas
pesquisas da ciência, quer na contemplação artística, quer nos inumeráveis
aspectos da ordem prática, devemos submeter a nossa imaginação à nossa
observação, porém de modo que esta não anule aquela: isto é, que os fatos,
reunidos pela ciência, não se agreguem numa pesada e árida erudição, e só nos
tenham a valia que se derive de suas leis; que os modelos ou objetos do nosso
descortino artístico não se submetam em tanto extremo à ordem material que nos
extingam o sentimento profundo da natureza, apequenando-nos num raso realismo;
e que as exigências utilitárias da vida prática, o ansiar pelo sucesso, a nobre
vontade de vencer com os recursos que crescem, a subir, desde a riqueza até ao
talento, não rematem fechando-nos o coração e exsicando-nos o espírito,
deixando-no-los sem as fontes inspiradoras da afetividade e das nossas
fantasias.
Nem místicos, nem empíricos...
Ora, das palavras anteriores pode
inferir-se o conceito de que nos andamos ainda muito abeirados do misticismo,
fora da mediana norteadora entre a existência especulativa e a existência
ativa. A emoção espontânea ainda nos suplanta o juízo refletido. Somos uma raça
romântica. Mas romântica no melhor sentido desta palavra proteiforme, que é
definida de mil modos e ajusta-se às incontáveis nuanças do sentir humano, de
sorte a passar-se dos lenços encharcados de lágrimas, de não sei quantos deliquescentes
prantivos, para a ironia lampejante das páginas de Henrique Heine.
Romântica no significado heroico
de uma crença exagerada em nossas faculdades criadoras, a despontar da
consciência instintiva de nosso gênio, que nos arrebata sobre as barreiras da
razão teórica, fazendo que falsifiquemos a realidade para torná-la maior,
glorificando-a.
E, sendo assim, o que seria um
mal, como forma definitiva do caráter, pode ser um bem na fase transitória que
estamos ultimando.
Porque desta guiza nasceram e se
embalaram nos primeiros dias todas as nações estáveis, com uma missão definida
no destino geral da humanidade.
O romantismo, no sentido
superiormente filosófico, traduzindo as máximas temeridades dos espíritos no
afeiçoarem o próprio mundo exterior a um vasto subjetivismo — nasceu na
Alemanha. Ora, a Alemanha é hoje o modelo impecável de uma nação prática e
fecunda, utilitária e mais que todas aparelhada de lúcido discernimento dos
melhores recursos que nos oferece a ordem objetiva: o seu comércio bate nesta
hora nos mares o primado tradicional do comércio inglês; e a sua indústria,
desde a rude indústria das minas à indústria química e às maravilhas da
eletricidade, abriu à força, arrombando-as, as portas de todos os mercados.
Pois bem, esta Alemanha, que nos
assusta mais com as suas usinas que com as suas casernas, nasceu de um sonho.
Há na história um homem que reduz
Bismarck: é Fichte.
O rígido e ríspido chanceler,
irrompendo, retardatário, nestes dias; com o seu tremendo tradicionalismo
feudal e as suas fórmulas governamentais curtas, secas e rijas como pranchadas;
e a sua irritante glorificação da força física; e a sua pasmosa curteza
intelectual, tão restrita que nunca logrou resolver um só dos árduos problemas
que se lhe antolharam sem o confiar à fortuna traiçoeira das batalhas — era
diminuto demais para construir um povo.
Acima da unidade política
germânica, desenhada, a tira-linhas e a régua, nas cartas do estado-maior
prussiano, existe uma coisa mais alta — a unidade moral da Alemanha. E esta,
certo, não a encontrareis nas sangueiras de Sadowa e de Sedan. Vem de mais
longe. Desponta toda ela de uma expressão dúbia, cheia de mistérios, que se
chamou "idealismo transcendente", e era a elaboração imaginosa e
estranha de uma filosofia natural sem a natureza, a harmonia do consciente e do
inconsciente, o desatar-se indefinido dos espíritos ante a emoção vaga e
maravilhosa do Infinito...
Por aqueles tempos aparecia um
homem a propagar um exagero que negacearia o riso ao mais rombo crítico de
agora: a soberania absoluta da arte. Era Frederico Schlegel. Para ele, a
inspiração romântica era sem termos: nada poderia existir acima da fantasia arbitrária
do poeta.
E foi à luz desse idealizar
incomparável que se eliminou o pernicioso cosmopolitismo de um país até aquela
quadra sem fisionomia, feito um acervo incoerente de ducados — orientando-se a
correntes tradicionalistas e erigindo-se, com o patriotismo, um espírito
nacional.
Não vo-lo direi como. Nem há quem
no-lo explique bem.
Na própria matéria, tão mais
simples, tão passiva às nossas experiências, tão a toda hora sujeita aos nossos
arbítrios, por maneira que até no bronze podemos estampar para sempre um pouco
da nossa alma, ou um traço imperecível dos nossos erros, na própria matéria nos
sobressalteia o mistério. O mais frio, o mais arguto, o químico mais pertinaz,
ao cabo de cinquenta anos de laboratório, entre reativos e retortas, não nos
explica o que ele chama força catalítica; nem nos diz por que motivo vários
corpos, que permanecem sempre indiferentes uns aos outros, por mais que se
misturem e sobre eles reajam todos os agentes físicos mais demorados e fixos — só
se combinam, de pancada, explodindo, à passagem instantânea de um simples raio
de luz...
Assim vai passando, talvez, pelas
camadas humanas a irradiação miraculosa da alma dos poetas; assim passou,
talvez, pelas camadas profundas da nossa gens
complexa a idealização transfiguradora do nosso extraordinário sonhador.
Senhores. Temos mudado muito.
Partiu-se nos últimos tempos o sequestro secular, que nos tornava apenas
espectadores da civilização. A nossa política exterior conjugou-se com a
internacional. O descortino dilatado de um estadista, depois de engrandecer-nos
no espaço, engrandeceu-nos no tempo. Na última conferência de Haia o Velho
Mundo escutou, surpreendido, uma palavra de excepcional altitude.
Pense que seremos em breve uma
componente nova entre as forças cansadas da humanidade.
E, se isto suceder, se não for
uma miragem esta visão do futuro; se chegarem, de fato, os novos tempos que se
anunciam, em que nos tornaremos mais solidários com a evolução geral, dando-lhe
o melhor da nossa afetividade originária e a fortaleza vivificante do nosso
idealismo nativo — então a modestíssima "herma", alevantada ao mais
intrépido dos nossos pioneiros do ideal, germinará estátuas: há de avultar,
maior, no rejuvenescimento da nossa terra, como avulta nas vossas almas de moços
a figura escultural do poeta, que deveis admirar sempre, como hoje o admirais,
quaisquer que sejam os vossos desapontamentos futuros inevitáveis, ou os
rigorismos da vossa existência prática, porque esta admiração exige se
conservem despertos todos os alentos que, em geral, se nos vão a pouco e pouco
amortecendo no fundo do nosso espírito trabalhado; e é quase um meio de
enganar-se o tempo e manter-se, longamente, a mocidade.
Conferência realizada em São Paulo no Centro Onze de Agosto.
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