Castro Alves, moço e apaixonado, iria
ao teatro divertir-se, como toda a gente, mas principalmente lá o haviam de
levar dois outros motivos, um de sentimento, outro de ambição, qual mais
exigente. Aplaudira a Furtado Coelho, a Joaquim Augusto, a Amoedo, a Eugênia
Câmara, a Adelaide Amaral, a Ismênia dos Santos... como todas as plateias do
Brasil nesse tempo, mas, desde 1866, tinha ele ainda 19 anos, e já era homem na
estatura e nos modos, sem deixar, na beleza de efebo, e na graça da
adolescência, de ser o mais sedutor dos rapazes, quando se apaixona por uma das
atrizes mais festejadas do momento, que tem o bom gosto de corresponder a estes
sentimentos e ei-lo admirador e amante de Eugênia Câmara, sonhando viver
romanticamente ao seu lado e na sua intimidade os êxtases de arte que ela
representava na Dalila e nas Mulheres de Mármore. Essas noitadas de
triunfo seriam seguidas de ceias alegres e buliçosas, na companhia de outros
rapazes entusiastas e outras raparigas sensíveis, pronunciando-se, o que é da
índole dos moços, e de brasileiros ainda mais, dois partidos que haviam de
dividir a plateia, em torno de duas damas, alvo da admiração e, para algum, ou
mesmo alguns... como para Castro Alves, do afeto de seus parciais.
Isto que ocorria por todo o Brasil foi
notado e ficou na memória dos cronistas, no Recife, em 66. Eugênia Câmara e
Adelaide Amaral tinham seus admiradores e partidários e Castro Alves e Tobias
Barreto eram os corifeus destas hostes, mais aguerridas para as represálias do
que mesmo para a harmonia dos coros de bênção ou de louvor. Também é sempre
assim no Brasil — os partidos são mais contra alguém, do que em favor deste ou
daquele. Castro Alves, esse era por Eugênia Câmara, a quem recitava versos,
comparando-a aos anjos ou aos gênios, ou lhe definindo a glória:
...
A glória é isto...
É
ser tudo... é ser qual Deus...
Agitar
as selvas d'alma
Ao
sopro dos lábios teus...
Dizer
ao peito — suspira!
Dizer
à mente — delira!
A
glória inda é mais: é ver
Homens,
que tremem — se tremes!
Homens
que gemem — se gemes!
Que
morrem — se vais morrer!
A
glória é ter com o tridente
Refreada
a multidão,
—
Oceano de pensamentos
Que
tu agitas com a mão!
..................................
Harpa
imensa feita de almas,
Que
rompe em hinos e palmas
Ao
teu toque divinal.
Também dos contrários havia de
consolá-la, de mágoas e insultos:
Do
gênio a maior grandeza,
O
ser divino é sofrer...
.............................
Nest'hora
grande não sentes
Longe
os silvos das serpentes
Que
tentam morder-te os pés?
Inda
é a glória — rainha
Que
jamais caminha só...
Aí!
Quem sobe ao Capitólio
Vai
precedido de pó.
Dos entusiasmos da cena passaria
Castro Alves para os de sentimento, e em vez da publicidade do teatro e das
ceias alegres procuraria, no pudor dos amorosos, que se escondem, para amar
mais livremente, uma casinha discreta, num subúrbio do Recife, no povoado do
Barro, onde se refugiou com a apaixonada, também por ele tomada do mesmo
sentimento e tão veemente, sincero e desinteressado, que até os seus contratos
e o seu empresário havia de abandonar, para ser dele exclusivamente. Em Eugênia
Câmara, porém, ele amaria não somente uma bela mulher — menos bela talvez que
graciosa, bem feita, moça e ardente, razões todas que, para quem ama, hão de
fazer bela a qualquer mulher — mas uma atriz aplaudida e admirada: ele poeta
aplaudido e apaixonado pelo teatro só podia ter um pensamento de arte digno
dela e de sua paixão — escrever um drama, que ela vivesse em cena,
representando-o, glorificada pelo talento dele, consagrado em público pela
sensibilidade, — ele diria — pelo gênio dela.
O teatro, de então,vinha dos poemas
dramáticos, com que o Romantismo inaugurara a sua ascendência literária, para a
peça de hoje, com que o Realismo firmou o seu domínio no palco: estava no drama
histórico ou moral, melodrama ou dramalhão, que iria dar o teatro de tese ou
teatro simbólico, antes de chegar à comédia ou peça contemporânea. Basta para
ter uma ideia, lembrar o repertório da época: é o Antony, de Dumas Pai, a Dama
das Camélias, de Dumas Filho, as Mulheres
de Mármore, de Barrière e Thiboust, a Dalila,
de Octávio Feuillet... a que se juntavam Pedro
sem mais nada, de Mendes Leal, Purgatório
e Paraíso, de Camilo Castelo Branco, a Onfália,
de Quintino Bocaiuva, Um Mistério de
Família, de Franklin Távora... quando não bastavam só os títulos, que eram
programas: Redenção, o Poder do Ouro,
Quedas fatais, Cinismo, Ceticismo e Crença, e outros.
Para evocar esse teatro, em toda a sua
ênfase sentimental, bastam breves exemplos. Seja um a cena final do Antony. O herói e a heroína que se amam,
depois de um longo combate moral, resolvem quase procurar a felicidade, com a
fuga. Quase, porque na hora do rapto, ela ainda não está decidida e ele quase a
arrasta. Mas eis que o marido, com quem não contavam, aparece, batendo à porta.
Que fazer? Já não podem mais fugir. Então doida de amor para não recuar,
prevendo a desonra que não quer sofrer, tomada de remorsos que não pode
suportar, grita a desgraçada ao amante: "Mata-me, por piedade!" Ia a
porta ser arrombada, e ela que insiste e implora esta salvação, e ele que
indaga se, no último suspiro, não odiará ao seu assassino. "Eu o
bendirei... a morte, eu a peço, a quero, a imploro. Vou buscá-la..." E atira-se
nos braços do amante. A porta cede, entra o marido, e vê a mulher apunhalada:
Antony — Sim! Morta! Ela me resistia,
eu a assassinei...
O público é que não resistia, sem
aplausos, nem lágrimas, a semelhantes dramas. Ainda hoje poderemos ouvir de
homens provectos e damas menos moças desse tempo o que eram essas
representações. A Dalila, de
Feuillet, foi considerada obra-prima no gênero: era a gema do repertório de
Eugênia Câmara e Furtado Coelho. André Roswein, um poeta lírico, é
desencaminhado por uma hetaira, a Dalila
fatal, dos castos amores de uma inocente rapariga filha de um velho compositor,
a qual, por isso, definha e vem a morrer. Carnioli, um cínico e cético, refere
a cena, não sem comoção: "Durante este tempo, os dedos do velho
descansando sobre as cordas tiravam de quando em quando do instrumento sons...
gemidos, que penetravam até o fundo d'alma. Ela acordou e disse: — Meu pai,
tenho favores a pedir-lhe... o primeiro é que me dê um ar de riso — o velho
tentou sorrir-se. — Depois, continuou ela, que me toque hoje o Cântico do
Calvário. — Não, não, disse o bom velho, com voz pungente, querendo simular uma
alegria, só no dia do teu casamento. Ela sorriu, e olhou-o fixamente; ele
abaixou os olhos sem replicar. Com um gesto doloroso, sacudiu os cabelos brancos
sobre a fronte mais pálida que o mármore, e pegou no arco... Ouvi então o
famoso Cântico do Calvário... o cântico sublime!... Enquanto tocava, grossas
lágrimas lhe caíam uma a uma sobre as mãos trêmulas e inspiradas... chorava!...
Chorava o instrumento... choravam as cordas... o arco, a madeira, o cobre...
tudo chorava!... Só ela não chorava, porque já não tinha lágrimas!..."
Leio de um velho número do Correio Paulistano, de 1861:
"ninguém, absolutamente ninguém poderá ouvir Furtado Coelho recitando esta
narração dolorosa, e arrebatadora ao mesmo tempo, sem que sinta estremecer-lhes
as fibras do coração e o pranto orvalhar-se o rosto, traindo o sentimento que o
provocou". E não é exagero: todos os depoimentos são acordes. Talvez haja
aqui alguém desse tempo, que tenha chorado, como toda a gente, nesse lance,
pois que choravam o velho compositor, e o arco, as cordas, a madeira e até o
cobre do violino, e "só ela não chorava, porque já não tinha
lágrimas..." Não sejamos exigentes, nós de outra sensibilidade:
compreendamos, e como Alfred de Musset compassivos e indulgentes:
Vive
de melodrame où Margot a pleuré!
Estava aí, nesse teatro, uma sugestão
a Castro Alves. Havia, porém, uma circunstância que havia de ter o seu valor.
Eugênia distinguia-se na comédia e nos papéis burlescos; quando muito,
representava as mulheres fatais, Lenora,
ou a Dalila, e a Marcô, das Mulheres de
Mármore, que exigiam mais desplante que sentimento. Na Imprensa Acadêmica, de São Paulo, um crítico do tempo de Castro
Alves, talvez seu colega, escreveria: "Suas tentativas em papéis
sentimentais foram sempre infelizes, porque em tais papéis a Sra. Eugênia é
sempre de uma falsidade inexcedível e nos lances dramáticos faz perder toda a
ilusão ao espectador. Não falamos de sua voz chorosa, que faz rir".
Teria o poeta clarividência para o
perceber, embora apaixonado, e, por isso mesmo, fugiria à situação que a
diminuísse, aos próprios olhos, e aos do público, que também a amava. Além
disto ainda, amoroso de teatro e de uma atriz, não abdicaria Castro Alves de
sua personalidade forte e seu apostolado já começado: antes, essas duas paixões
iam servir a outra, primeira e maior — a de suas ideias. Desde 63 que a causa
da Abolição lhe aparecera como uma vocação do seu gênio; em 65 escrevera quase
todo o seu poema dos Escravos, na
pausa do amor e para a glorificação da mulher amada, havia de tornar a eles,
mas seria agora com um drama, um drama social, portanto.
O TEATRO DE IDEIAS
Até aí Hugo continuava a ser o seu
mestre. Num artigo de jornal, em 66, precisamente sobre Eugênia Câmara, ele
escrevia que se para Beaumarchais "o teatro é uma tribuna", para Hugo
"é uma escola". E convidava a mocidade a assistir e mesmo a descer
"como o mergulhador indiano àquele turbilhão de paixões". Veriam o
cinismo, a infâmia, todos os crimes, todos os horrores: "lá no fundo está
a pérola", "é uma ideia, ideia boa, santa e justa, ideia moral, ideia
religiosa". "E quando a alma vier à tona, de todos esses turbilhões
trareis um talismã... que vos dê melhores sentimentos, que vos ensine o perdão
à mulher desgraçada, a proteção à criança indefesa; que vos instrua no ódio à
hipocrisia, que se chama — honra, à infâmia que se alcunha de nobreza...
Ouvireis uma voz que vos diga: — Amemo-nos um aos outros... e então com a cabeça
mais prenhe de bons sentimentos, os seios mais túmidos de afetos, a boca mais
cheia de perdões — abençoareis o teatro, e crereis que ele é um altar".
Assim, pois, o poeta épico da Abolição e da República salvaria o moço,
apaixonado por uma atriz, de lhe cometer um melodrama; a influência de Hugo lhe
ia sugerir, para exaltá-la, um poema dramático como os dele, que seria também
glorificação de uma ideia, numa tribuna, a maior das tribunas, que era como uma
escola, a da propaganda de suas ideias. Foi assim que nasceu o Gonzaga.
Teatros antigos do Brasil: Teatro Municipal de Belo Horizonte
Como lhe aconteceria mais de uma vez
na vida, Castro Alves refugiado num recanto com os seus amores, "tendo por
musa o amor e a natureza", nesse encantamento bucólico e sentimental, não
esqueceria que a sua vocação e o seu dever era ser poeta, função social de
grave responsabilidade para ele... No campo sentia-se mais inspirado, "a
alma fica melhor no descampado", e ao lado de Eugênia, que deixara o
teatro para ficar com ele, seria inspirado para uma obra que ela pudesse
representar.
Nessas férias de 66-67 pensou, e em
fevereiro deste ano escreveu o Gonzaga:
a data é precisa, e dada pelo seu amigo Regueira Costa. Do lugar pitoresco que
habitava, próximo ao canavial de um engenho, no povoado do Barro, nas cercanias
do Recife, ficou imagem numa cena do drama. Gonzaga
recorda a Maria: — "Verei de novo a minha herdade... aquela casinha
levantada no tombo da ladeira, como um ninho de pássaros no ramo, com sua
colina suave como um colo de mulher; e abaixo um canavial imenso, verde e dourado
como um mar de esmeraldas, e longe... ao longe aquele horizonte de montanhas
onde os crepúsculos se talhavam num céu de sangue. Lembras-te?"
Se era um poema dramático ao qual o
amor não podia faltar, segundo as incitações que o poeta sentia de sua missão
social, não deixaria também de ser obra de propaganda de suas ideias favoritas
de emancipação; a Inconfidência Mineira dava-lhe os motivos republicanos, sua
arte juntaria os abolicionistas, mas, sobretudo essa escolha, de tal incidente
de nossa história lhe estava imposta, porque nela havia também um poeta, e como
ele um poeta amoroso: o drama portanto havia de ser em torno de Gonzaga, exalçado a uma preeminência que
lhe não daria a História, mas que lhe conferiu, pelas necessidades de sua
causa. Outro, que não Castro Alves, com os seus sentimentos, elegeria
Tiradentes, herói mais verossímil de tragédia heroica, ou os Inconfidentes,
reunidos na diversidade dos gênios, interesses, critério, bravura,
inconsequência. Sem esquecer nenhum desses endereços para um drama romântico,
Castro Alves tomou o melhor partido.
O GONZAGA
E A HISTÓRIA
Não é destituído de interesse indagar
até quanto, com o que se conhecia dessa história em 67, Castro Alves conseguiu
seguir, quando o pôde, com fidelidade, a História. E isto era tanto mais
difícil quanto, ainda hoje, melhor informados, continuamos a formar juízos
diversos, dados os diversos sentimentos, desse trecho da História do Brasil. Para comprovar o acerto contar-vos-ei uma
anedota pessoal. Quando, em 1907, publicou Capistrano de Abreu os seus
magníficos Capítulos de história colonial,
fui eu o seu primeiro leitor, porque, tendo conhecimento de minha admiração a
sua sabedoria, e me havendo o acaso posto em seu caminho quando lograra as
últimas provas do livro, ele m'as dera a ler, exigindo uma opinião, como para
aferir a de seus inúmeros admiradores.
Procurei-o dias depois, para lha
dizer, e fui, entre respeitoso e admirado, enunciando, uma por uma, as
excelências que encontrara nessas belas e fortes paisagens e frescos de nossa
história colonial. O sábio abanava a cabeça negativamente, com ar de ironia,
senão de despeito. — Era isto, pusera o melhor de seu querer e seu sentir num
volume, e a intenção dele escapava a um leitor de boa vontade, que era seu
amigo... que esperar dos outros? Como insistisse em saber dessa intenção,
aprender da voz dele o que não escrevera, Capistrano perguntou-me pelo que aí
referira da Inconfidência... Procurei lembrar-me... Nada! Fora surpresa a
Conjuração Mineira... Não existia aquele sargentão paroleiro do Tiradentes, com
que a ênfase republicana, havia tanto, nos clamava, por toda a parte,
atroadoramente. O mérito de seu livro era este: suprimira o alferes Xavier, da História do Brasil.
Aí está; ainda hoje, um trecho de
nossa vida passada, um vulto de nossa história é assim julgado, de boa fé,
ânimo inteiro, por um grande historiador que vale certamente muitíssimo de seus
contemporâneos: um suprime-o da memória, outros o colocam no panteão dos
glorificados: não há juízes, há parciais; não julgamos ideias e fatos, nos
inclinamos por sentimentos e pessoas. Poderia um poeta, entre tais juízos,
tomar qualquer partido... — Em 67, no regime monárquico, quando Tiradentes
tinha menos favor, e até se diz que, para agradar à Coroa, Joaquim Norberto no
seu livro agravara a loquacidade leviana e a desassisada propaganda do Alferes
Xavier, como para desfavorecer o seu sonho republicano, quando o partido de
Capistrano estava no poder, Castro Alves seguiu o que viria a ser, o dos
contemporâneos, os da República, e se Gonzaga
dá o título ao drama, é porque é o poeta e é o amoroso, em torno do qual se há
de mover a ação sentimental, que outro poeta e amoroso lhe consagra:
certamente, a figura de Tiradentes atravessa aquelas cenas com uma nobreza, e
uma ênfase, de herói corneliano; se é de Gonzaga,
por causa de Maria, que a gente se condói, é ao Xavier, pela causa da Pátria,
que a gente admira. De outra feita nô-lo mostrara o poeta, significativamente.
O
Tiradentes sobre o poste erguido
Lá
se desata das cerúleas telas,
Pelos
cabelos a cabeça erguendo
Que
rola sangue, que espadana estrelas!
Aliás também o Gonzaga teve e terá de sofrer as vicissitudes da História. Ainda há
poucos dias, Viriato Correia, num formoso
volume, documentado como um livro de história e alegre, umas vezes, e outras
comovido, como grande obra de arte, escrevia: "Gonzaga foi uma das mais antipáticas e das mais miseráveis figuras
do belo movimento de 1789". Entretanto, "a história guindou-o à
posteridade gloriosa, o sentimentalismo nacional sagrou-o na emotividade
gongórica do poema de Castro Alves".
Ni
cet excès d'honneur, ni tant d'indignité! Desta vez o poeta é apenas
generoso, segundo a tradição, mas o injusto foi ainda o historiador. Recorrendo
à mais autêntica fonte de informação, o "Processo da Inconfidência",
verifica-se que Gonzaga nega (nega
como todos os outros, nega como o próprio Tiradentes, até ser reduzido)
sistematicamente a sua coparticipação no movimento, mas por uma série de
razões, lógicas e verdadeiras: era português de nascimento e filho de mãe
portuguesa, acabava de ser promovido a desembargador na Bahia, ia casar,
desaconselhara a derrama a Barbacena, como podendo provocar o levante, etc.,
etc., o que tudo poderia valer pouco, ou nada, contra o fato provado e documentado
de sua adesão aos conjurados. Ora, essa prova e documentação não foi feita.
Tiradentes o inocenta, explicitamente, apesar de seu inimigo, jurando perante
Deus — e era um crente fervoroso —, não o encobrindo entretanto de outros.
Francisco de Paula Freire de Andrade insta que ignorava ser Gonzaga entrado no levante. José Alves
Maciel nem sequer o menciona. Domingos de Abreu Vieira contesta-o, formalmente.
Resta apenas uma referência do Padre Carlos Correia de Toledo ao denunciante
Joaquim Silvério dos Reis, retificando ao irmão, sargento-mor Luís Vaz de
Toledo, — que sentia haver falado em Gonzaga,
porque era falso ter ele entrado na conspiração —; resta o depoimento de
Alvarenga Peixoto, que o dá como presente a um conluio de conjurados, quando,
estes mesmos, citados, o contestam; resta, finalmente, o depoimento de Cláudio
Manuel da Costa, que narra conversas liberais, hipotéticas, em casa de Gonzaga, — onde o Tiradentes, quando
aparecia, era mal recebido, e, anunciado, dizia Gonzaga ao criado "que o mandasse embora, que lhe não queria
falar, que era homem que lhe aborrecia, e que um homem daqueles podia fazer
muito mal à gente, pelo seu fanatismo; quanto a ele, Cláudio Manuel, "acha
mais verossímil que "o ódio que conceberam a ele, o quisessem compreender
com o Dr. Gonzaga, de quem era
amigo". Aí está. Se todos os outros brasileiros, e o mesmo Tiradentes, a
princípio, negaram, estando comprometidos, porque havia de o desembargador
português Gonzaga declarar-se
criminoso, quando era inocente?
O que há contra Gonzaga é a essência mesma da conspiração: a leviandade e a
inconfidência. Para aliciar prosélitos, propalavam-se os nomes dos
conspiradores; a posição de Gonzaga,
vulto influente, poeta e magistrado, facilitava, para os fins da causa, que o
desejassem entre eles e o dissessem um aos outros; e logo lhe davam a função de
fazer as leis da nova república, senão de dirigir o movimento, como chefe da
conspiração: o Padre Carlos Correia de Toledo declarou, penitenciando-se do
falso testemunho "que dizia aos sócios da conjuração que este réu entrava
nela, para os animar, sabendo que entrava na ação um homem de luzes e talento,
capaz de os dirigir".
UM INCIDENTE AMOROSO
Gonzaga, em vez de
apostrofado, injustamente, de covarde e miserável, pelos brasileiros de hoje,
teria o direito de se queixar dos seus amigos brasileiros de então, que o
envolveram numa conjura, impatriótica para ele, quando, galardoado com uma
promoção, em vésperas de partir para o seu posto na Bahia, preparava-se para
casar, todo dado a escrever liras sentimentais e até muito dado, no momento, à
suave ocupação de bordar um vestido. A este refere-se Castro Alves: "Breve
te enfeitarei com o vestido que bordei para minha noiva". Pereira da
Silva, Joaquim Norberto, Homem de Melo, Araripe Júnior, Goulart de Andrade,
também a ele se referiram. A origem do boato teria sido do próprio Gonzaga, numa das suas liras, o que
podia ser ficção, e declaradamente no seu depoimento quando alega "estar
entretido a bordar um vestido para o seu casamento". Alberto Faria, o
erudito investigador, não quer entretanto que seja um vestido para a noiva e
sim próprio, e por prova traz o depoimento de um afilhado do poeta, que o faz
"ocupado a bordar um vestido que, dizia, lhe havia de servir dali a oito
ou dez dias para o seu casamento". Este "lhe", = a ele,
parece-lhe ao ilustre crítico, indubitável que se refere a Gonzaga, quando, entretanto, na comunidade conjugal, o que serve
aos noivos serve-lhes a qualquer deles, conjugados que são no mesmo sentir e no
mesmo querer. O caso tem importância literária, porque não se compreenderia bem
a lira:
Pintam
que estou bordando um teu vestido
Que
um menino com asas, cego e louro,
Me
enfia nas agulhas o delgado
O
brando fio d'ouro.
Faria parte de sua conjectura, para
emendar a versão corrente em
Pintam
que estou bordando um meu vestido
Se fosse cabível a hipótese, isto é, o
vestido seria para ele Gonzaga, não
parece sem propósito contar o poeta, à noiva, incidente tão prosaico, façanha
menos de jurisperito ou de namorado, que de modista ou algibebe?
"Dela", o vestido, seria sim, mais natural, lhe referisse:
Que
um menino com asas, cego e louro
Me
enfia nas agulhas o delgado
O
brando fio d'ouro.
LICENÇAS ROMÂNTICAS: FINALIDADE DE SOCIAL DO TEATRO
Onde Castro Alves deliberadamente
deixa o trilho da história é na composição da figura do Visconde de Barbacena
que, para a urdidura das paixões do drama, fez um apaixonado, movido, pela
sensualidade e pelo ciúme, a perder o preferido da mulher desejada, quando é
fato que o governador general da Capitania era casado, com filhos, vivia no seu
retiro da Cachoeira do Campo e na administração fazia grande diferença, para
melhor, do seu antecessor, o que até contrariou aos conjurados. Essa deformação
do caráter histórico de Antônio Furtado de Castro do Rio de Mendonça, além de
exigida pela situação dramática, talvez fosse uma imposição patriótica. Do
mesmo jaez é a negregada figura de Joaquim Silvério dos Reis, português,
delator da Inconfidência, a quem o poeta confere singular parecença com Iago,
apenas um Iago "lial" na traição, a soldo da paixão alheia, em busca
do próprio proveito.
Cláudio Manuel da Costa, velho vate
clássico e arcádico, maior de sessenta anos, vagamente liberal, que não esperou
ver talvez as utopias discutidas com amigos, germinarem na mente de
inconsiderados e levianos, esse é rejuvenescido à idade das paixões, ardendo
por Eulina, a musa do Glauceste Satúrnio, entretanto desesperançado e cético,
como que preparado para o suicídio na cadeia de Vila Rica. Alvarenga Peixoto —
passa, incidentemente, sem acentuação pessoal, nem vacilação de caráter, antes
e depois da prisão, sobretudo sem alusão ao seu caso passional, o desta Bárbara
Heliodora, heroína de tragédia, que merece, só ela, drama ou poema, dos quais
um ato, ou um canto, já foi nobre e comovidamente escrito por Goulart de
Andrade.
A grande novidade do Gonzaga, porém, não é nem o sonho de
independência do Brasil, posto em cena, nem a república, entrevista em 1789 por
poetas e visionários, e que outro poeta e vidente entrevia em 1867, mas a
aspiração mais cobiçada por Castro Alves, em que não cuidaram sequer os
Inconfidentes e que o Poeta dos Escravos soube aliar às outras, como se,
profeticamente, quisesse exprimir que a causa da Monarquia no Brasil estaria aliada
à da Escravidão. Esse drama patriótico da Independência e da República é,
principalmente, um drama da liberdade em sua expressão mais lata, um drama da
abolição no seu significado mais restrito. Para isso dois escravos entram em
cena, manietados à revolução um, o outro à traição, porque o cativeiro, que
lhes espoliou a vida e o sentimento, os tornou aptos para o crime e para a
dedicação, como autômatos perigosos, e nefastos. Sem a escravidão, o drama de
Castro Alves não seria possível, porque é dos sentimentos violentados de uma
escrava que sobrevém a delação, que perde todos os conjurados. O sonho de
liberdade se dissipará, porque a liberdade política não pode abandonar a
liberdade civil. Conseguiu assim o grande abolicionista prender no mesmo elo as
duas causas. Se a Independência viesse, como veio, seria incompleta sem a
Abolição; e como esta tardava, sob a Monarquia, seria talvez mister apelar para
a República... Está como a propaganda social se alçava à florescência de uma
obra de arte.
Castro Alves, fugindo ao melodrama,
por índole própria e por exemplo do seu mestre Hugo, só poderia no teatro achar
essa fórmula dramática. Também a Hugo acharam intenções sociais nos grandes
dramas Hernani, Le Roi s'amuse, Marion Delorme... que seriam proibidos,
por mais de um governo. Castro Alves quando, em 68, leu o Gonzaga a uma assembleia de jornalistas e letrados, no salão de
festas do Diário do Rio de Janeiro,
que o aplaudiram e glorificaram, também teve, na mesma folha, quem perguntasse:
"convém que o drama seja levado à cena, na quadra agitada que
atravessamos? Respondo pela negativa. Há palavras que cumpre sopesar bem, antes
de atirá-las ao meio das turbas. Liberdade, Revolução, eis duas dessas
palavras. Dois instrumentos de renovação social; dois instrumentos de
destruição social. Dois faróis que alumiam, dois que incendeiam. Cuidado. É
insânia brincar às bordas do abismo". E o jornalista tem medo até de
continuar: Não prosseguirei..." e muda do assunto, perigoso. O poeta,
porém, não queria outra coisa — a propaganda. Mas, para servi-la, havia a obra
de arte.
Não seria só Hugo, mas Schiller ou,
muito antes, Shakespeare, que lhe dariam as receitas de um drama romântico. Com
efeito, há aí uma paixão senil e luxuriosa de Barbacena oposta à lírica e jovem
de Gonzaga, como no Hernani se opõe a deste herói à do velho
tio de Doña Sol. Carlota, mascarada, e Maria, que se disfarça sob uma capa de
bandido, estão nas regras românticas, como Francisco
I, de estudante, e Branca, de
cavalheiro, em Le Roi s'amuse. As
coisas tem missões ocultas: é um crucifixo no Ângelo; uma cruz em Torquemada;
um rosário serve de senha aos conjurados do Gonzaga.
No D. Carlos, de Schiller, há uma exaltação liberal e republicana; no Júlio César, de Shakespeare, há uma
conspiração, e o sopro oratório submerge a ação e o próprio lirismo, sob a
eloquência, como no drama de Castro Alves. Vede que ele tinha razão de dizer de
si mesmo:
...
sou pequeno, mas só fito os Andes!
Há ainda o desrespeito intencional
àquela regra das três unidades; cada ato, tais os dramas de Hugo, tem um
título, como índice simbólico da ação. Além da ideia que o anima há sobretudo
as tiradas, os discursos, as respostas enfáticas, que dão à prosa, pedestre na
vida, sermo pedestris, já diziam os
latinos, traduzindo os gregos, uma atitude monumental, que confina com a poesia
heroica: e se isso é Hugo, Schiller ou Shakespeare, é bem Castro Alves, mais
eloquente que eles. José de Alencar foi o primeiro a vê-lo: "sob essa
imitação de um modelo sublime, desponta no drama uma inspiração original".
"Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da
pátria que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos.
Demais, esses palavrões "de
penacho" ou "palavras equestres" já foram denunciadas num
precursor recuadíssimo do Romantismo, se é possível, o divino Ésquilo. Essa
eloquência talvez hoje no teatro, adaptado à vida, como possibilidade ou
verossimilhança, seja intolerável... é que o teatro romântico envelheceu, ou
nós, realistas do tempo, somos desenganados, mas ainda hoje há cenas e
discursos desse Gonzaga que dão um
grande frêmito de entusiasmo ou arrepios trágicos de pavor, do mesmo efeito
cênico ou literário. É a vingança do drama bem escrito, contra a peça bem
vivida: esta representada comove, lida aborrece; como a representação é
efêmera, a melhor parte cabe a esses dramas-poemas, de Ésquilo, Shakespeare,
Schiller, Hugo, que serão sempre lidos e aplaudidos.
O DRAMA - UM INCIDENTE LITERÁRIO -
ELOQUÊNCIA E POESIA.
O Gonzaga
também merece leitura. Logo no I ato, entre Luís, o cativo a quem roubaram a
filha e que a procura, e os conjurados, há cenas belíssimas, em que a
emancipação domina a aspiração da liberdade política. À voz máscula dos homens,
que discutem, como heróis antigos, mistura-se a cantilena de uma escrava, que
geme distante:
Eu
sou a pobre cativa
A
cativa de além-mar.
Eu
vago em terra estrangeira
Ninguém
me quer escutar.
Tu
que vais a longes terras,
Ó
viageira andorinha,
Vai
dizer a minha mãe
Que
eu vivo triste e sozinha.
Mas
dize a pobre que espere
Que
o vento me há de levar
Quando
eu morrer nesta terra
Para as terras
de além-mar.
Citei estas três comovidas estrofes,
para aludir a uma das mais petulantes intrujices literárias de que há memória
em nosso país. Eunápio Deiró, o conhecido jornalista baiano, que foi
contemporâneo do poeta, contou pela imprensa, muitos anos depois, em 1897, que
ouvira a Castro Alves ler-lhe o seu drama e neste ponto o detivera. Que relesse
as estâncias. O poeta replicara:
— Está parecendo que esta canção é a
melhor coisa do meu drama.
— É obra sua? e original? indagou
Deiró.
Castro Alves, surpreendido, como que
se escusava:
— Não é plágio...
— Sim, não se tratava disso. Conhecia
alguma coisa nesse gênero? Nunca lera as obras de André Chénier?
Castro Alves afirmou que não o
conhecia e era a primeira vez que ouvia falar nesse poeta e em seus versos.
Deiró diz que, da estante, retirara um volume e dera-o a ler ao poeta.
Terminada a leitura, empalidecera, sorrira, e murmurara:
— A ironia das desilusões é sempre
amarga e triste. Julgava-me o autor desta canção, e eis-me um plagiário!...
É inqualificável tamanha intrujice, ao
lado de tanta ignorância! Deiró quis fazer crer aos seus leitores de 97 que
convencera a Castro Alves de ter imitado ou plagiado La jeune captive, de Chénier, nove estrofes de seis versos, com a
sua canção da escrava, três humildes quadrinhas ao gosto popular, as quais só
têm de comum uma palavra, uma só, a palavra "cativa"!
Mais a jovem prisioneira de Chénier
era uma fidalga, fora uma duquesa, Aimée de Coigny, detida pela Revolução e
destinada ao cadafalso, o que o poeta lastima, dando-lhe voz às lágrimas:
Au
banquet de la vie à peine commencé
Un instant seulement mes lèvres ont pressé
La
coupe en mes mains encor pleine,
situação, em nada, absolutamente em
nada comparável à de uma desgraçada escrava, desterrada em terra estrangeira e
que só espera volver ao seio materno, quando, enfim, a morte a libertar. Xavier
Marques, que primeiro defendeu Castro Alves desta ridícula aleivosia, lembra
que seria incrível não conhecesse o poeta a Chénier e a esses seus versos,
constantes em todas as seletas de ensino. Nas obras, ora publicadas de Castro
Alves, há duas vezes citações precisas do nome de André Chénier — e da frase — j'ai quelque chose là — que as conhecia,
portanto, alguns anos antes do Gonzaga,
em 1864. O mais admirável é que os não conhecesse um velho jornalista, que
assim depunha da própria insciência e atestava, tão cabalmente, a triste
inveracidade de suas reminiscências.
No II ato manifestam-se os conjurados
com a têmpera de caráter que o poeta lhes conferiu: Cláudio, cético; Gonzaga,
apaixonado; dissimulado e arteiro Barbacena, heroico e abnegado Tiradentes: as
cenas entre o alferes Xavier e o capitão-general, e entre este e Maria leem-se,
ainda hoje, com profunda emoção.
A ação que se prepara tem a sua
perfeição no III ato em que os revolucionários são traídos: aí é nobilíssima a
cena, em que, podendo um deles salvar-se com a senha e o sinal, todos se
esquivam nobremente, e quando a sorte escolhe Gonzaga e este também evita a ventura que o privaria do martírio,
pesam-se os afetos e é Maria quem decide com o seu egoísmo de amorosa,
alegando, além da vida a salvar, ainda mais, a salvação da honra... Luís
reconhece por fim a filha, esta encontra finalmente o pai, quando já o traíra e
aos seus parciais, exatamente para o achar: como se não fora bastante a
tragédia íntima, mata-se para evitar a corrupção na senzala, que seria o seu
castigo. Antes do sangue de Tiradentes, é o seu, derramado pela Revolução; a
causa da abolição do cativeiro precede assim, no martirológio, à da liberdade
política.
Finalmente, o IV ato, de "agonia
e glória", é o desenlace, é a apoteose. Barbacena é confundido na sua
cavilosa intriga e vinga-se dos amantes, que se reconhecem fiéis no martírio,
como o foram na esperança, com a prisão e o desterro de Gonzaga. O monólogo do poeta na masmorra é uma página eloquente, na
qual as antíteses românticas, aquele jogo hugoano de trágico e burlesco tem uma
sublimidade de modelo ou exemplo do gênero.
GONZAGA (só)
Prisioneiro de Estado!... Eis o que eu
sou?... condenado à morte!... eis o que serei... Hoje a masmorra — amanhã a
cova... Dilema terrível! Uma boca de pedra que tem fome de um cadáver — Uma
boca de granito que tem fome de uma alma! Oh! mil vezes a cova!... Ela é fria,
negra, solitária, imunda... mas o defunto é mais frio, mais negro, mais
imundo... É um par igual — uma pedra e um osso. Mas a prisão?!... — Deus fez a
cova — o homem fez a masmorra! É uma coisa que vos esmaga, vos ouve, vos vê;
sem vos apertar, sem vos escutar, sem vos olhar. E a imobilidade é o frio, é a
estupidez, é a morte abraçando, rodeando, aniquilando a atividade, o fogo e a
vida... Dir-se-ia que o homem é uma mosca dourada debatendo-se na garganta de
um sapo morto!!... Olha-se — é a cegueira! — canta-se — é a surdez! — Grita-se
— apenas algum morcego voa como uma ideia negra pela fronte da abóbada!
Chora-se — e a lagrima transforma-se em lodo no chão. Então um pensamento
estranho, mão fria... uma dúvida visionária, mas terrível, passa pela cabeça do
homem, que diz com um riso de louco: "Quem sabe se eu já morri?!..."
mas, para convencer-se, faz tremendo alguns passos — nada ouve... o chão é
úmido... Espantado encosta-se à parede — ela é gelada, mas seu peito ainda é
mais... "Eu estou tão frio como um defunto, murmura passando a mão pelo
rosto — o que ele toca é uma caveira... "Ah!" clama o desgraçado, cai
sobre a lájea mais estúpido que ela... Então escuta... escuta... escuta!...
Começa a ouvir um ruído surdo em seu peito, e uma coisa que se agita lentamente
em seu cérebro... — É o verme que rói aqui (leva a mão ao coração), é a larva
que morde cá! (leva a mão à cabeça). Sim, desgraçado! É o desespero que se
apascenta no coração, é a loucura que mastiga o cérebro, é a alma que
apodrece... Desesperar! enlouquecer! apodrecer! eis meu destino. Oh! é
horrível! É o pesadelo do cataléptico... Lá fora está a vida, um punhado de
homens que rasgam, rindo, minha mortalha, que preparam os círios de minha
agonia, as tochas de meu saimento. E eu os escuto... quero gritar! mas parece
que a voz sai da garganta. — Eles continuam a falar pacificamente... Cá dentro
um outro diálogo ainda mais sombrio — "Eu tenho frio, diz a pedra — Eu
tenho fome, diz a terra — Esperemos, ele nos virá aquecer e saciar!" E eu,
que os escuto, quero fugir; mas a imobilidade me agarra, enquanto elas
continuam a conversar na sombra!... Ah! eu não tenho medo de morrer!... mas não
aqui — sentindo a escuridão e o silêncio em torno de mim... e sobre minha
cabeça este outro fantasma ainda mais negro — o esquecimento!... Não, eu não
sou o réptil que morre no charco, nem o fogo fátuo que se extingue no
pântano... Eu quero a praça, o povo que turbilhona, a acha que cintila, o sol
que resplandece... Eu quero também o meu cortejo, o cortejo da minha realeza de
mártir... Lá, sim, eu quero morrer!...
Depois é o despeito de Barbacena, é
Silvério desgraciado, é Gonzaga
conduzido ao exílio, mas resignado porque é correspondido no seu amor e por ele
esperançado até a terra ou até o céu. O governador desespera porque "eles
são ainda mais felizes na sua desgraça", do que ele "na sua
vingança". Eis o castigo!
Para em tudo acabar romanticamente,
isto é, contra as leis naturais da realidade e da verossimilhança, Maria,
tomada de um delírio patriótico, esquece a si própria, ao próprio amante, e,
contra o público, recita um daqueles épicos poemas de Castro Alves, que
sacudiam as multidões e as tornava comovidas e delirantes:
Desgraça!
Eis tudo o que resta
Da
raça dos Prometeus!
Um
mundo — sem liberdade
Um
infinito — sem Deus!
No
dorso das cordilheiras
Batem
rijas agoureiras
As
marteladas do algoz
Pregando
o esquife do mundo
No
seu sudário de heróis...
O GONZAGA LIDO, REPRESENTADO E ACLAMADO
Escrito o drama em fevereiro de 67,
terminadas as férias, como as aves de arribação, "foram-se os passarinhos
e os amantes". Castro Alves e Eugênia Câmara deixaram o Recife e
embarcaram para a Bahia, onde a atriz se engaja na Companhia que trabalhava no
teatro de São João, e onde cuida de levar à cena o Gonzaga. De fato a 7 de setembro de 67 foi o drama representado
pela primeira vez, cabendo o papel de protagonista a Lapa Pinto, um poeta e
funcionário público, e o de Maria a Eugênia Câmara. Na sala repleta e acalorada
recitaram-se versos do poeta, coroado em cena aberta, no delírio da turba que o
conduziu sob ovações até a casa. Ele mesmo o narra em carta a Augusto Álvares
Guimarães: "No dia 7 de setembro tive um triunfo como não consta que
alguém tivesse na Bahia". Entretanto dessa representação ficaria a Castro
Alves a impressão que fora "uma caricatura", como mais tarde dirá ao
ator Joaquim Augusto, a qual lhe dera "ímpetos de atirar ao fogo o drama,
como as mães da China o fazem aos filhos monstruosos".
No Rio, em 68, por onde passou,
apresentado a Alencar e a Machado de Assis, recebeu destes animação e aplausos.
"Há no drama Gonzaga exuberância
de poesia", escreveu o primeiro; "a sobriedade vem com os anos",
quando um dia reler a sua obra, o poeta "há de achar um drama esboçado em
cada personagem". O outro conveio: "O poeta explica o dramaturgo.
Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período;
sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro.
Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao
espaço livre e azul.
O público, além desses juízos, teve a
notícia da leitura na redação do Diário
do Rio de Janeiro perante uma assembleia que bastaria por si só para
glorificar a estreia de um poeta; e de fato foi um verdadeiro capitólio de onde
saiu laureado o Sr. Castro Alves que nessa noite nos proporcionara a leitura do
seu drama-poema Gonzaga.
Não se contentou com isso o poeta e
quis sua obra vivida pelo maior ator brasileiro do tempo e pleiteou por carta a
Joaquim Augusto essa representação, em São Paulo, perante uma plateia de moços,
só eles capazes de o compreenderem. Assim foi e a 25 de outubro de 68, no Teatro
de São José foi levado à cena o Gonzaga,
declarando o anúncio ser a "primeira" representação. Joaquim Augusto
e Eugênia Câmara tinham os primeiros papéis.
O crítico do O Ypiranga, o jornal liberal de Salvador de Mendonça e Ferreira de
Menezes, dizia a 27: "Recebido pelos espectadores com todas as honras do
triunfo, já apresentado com elogio por grande parte da imprensa do Império... o
que pudéramos dizer já todos sabem e já o nosso público sancionou na prova
solene da exibição cênica... o 3º ato, o mais belo e perfeito acorda o coração
do espectador e acende-lhe na cabeça ideias fortes e varonis. Os adeuses dos
conjurados a Gonzaga constituem uma
cena das mais tocantes a que temos assistido em teatro".
Não escapou ao crítico a significação
heroica daquela eloquência, que não seria da vida trivial como a realidade nos
oferece, mas a da idealização simbólica, como o exige a propaganda das grandes
causas sociais. "Todas aquelas figuras parece que falam de um pedestal:
por ventura as esboçou assim o autor, teve na alma as harmonias da Marselhesa, e viu passar-lhe pelos olhos
em caminho do cadafalso os vultos dos Girondinos saudando a posteridade... Em
conclusão, o melhor elogio que possamos fazer ao Sr. Castro Alves é que não
pudera ser obra senão de uma alma livre e não ser feita senão para um povo de
homens."
Castro Alves previra esse êxito e até
o preparara, escolhendo o seu público. A Joaquim Augusto, na carta em que se
empenhava por essa representação escrevera: "O meu trabalho precisa de uma
plateia ilustrada. Precisa talvez mesmo de uma plateia acadêmica. O lirismo, o
patriotismo, a linguagem, creio que serão bem recebidos por corações de vinte
anos, porque o Gonzaga é feito para a
mocidade. Mesmo talvez este desnortear-me do trilho e estilo seguidos lhe seja
um mérito perante tal público."
E foi; a mocidade de São Paulo teve um
estremeção de patriotismo e de esperança, ouvindo um vate que era como o
profeta da liberdade tanto dos cativos como dos homens forros mas submissos à
Coroa, núncio da Abolição e propagandista da República. Por isso, a ele a quem
já haviam chamado o "Poeta dos Escravos", um dos seus grandes
condiscípulos, Joaquim Nabuco, chamaria o "Poeta republicano do Gonzaga".
Castro Alves, com a consciência que
lhe dava o orgulho do gênio, devia sorrir satisfeito ao seu destino breve, mas
cumprido. Parafraseando Hugo, vê-se que a evolução poética da humanidade tem
também a sua lei dos "três estados" ou períodos, ou épocas: a idade
lírica, os tempos primitivos ou a adolescência; a idade épica, os tempos
antigos ou a mocidade; a idade dramática, os tempos modernos ou a idade viril.
Em poucos anos, porque lhe sobrara engenho e generosidade, o poeta endereçara
aos delicados e sensíveis os mais suaves cantos ao amor e à natureza; havia
sacudido e arrepelado multidões com as odes mais vibrantes de entusiasmo
comunicativo pela Abolição e pela República; e agora perfazia o ciclo
encantado, consagrado no teatro, grande tribuna moderna, grande escola popular,
para ele um templo e um altar, onde o seu gênio oficiava pela causa santa do
Bem e da Liberdade!
---
Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
---
Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...