Entre todos os poetas de Portugal – e
aquela terra tão pequena os teve tão grandes – três excepcionalmente há que a
pá ingrata do tempo não conseguirá jamais sepultar no olvido: Camões,
Junqueiro, Antero.
Camões foi o gênio. Fecundado pelo
"epos”, criou uma voz enérgica, sonora e reboante, que, através dos
séculos, será ouvida, imperiosa como um mandamento, percutindo, percutindo
sempre no côncavo dos anseios portugueses.
Mergulhando a inspiração em cheio nos
feitos de sua gente, arrancou dessa área maravilhosa os louros votivos nos
quais se assoberba a eternidade de Portugal; amando entranhadamente a pátria,
cantou as naus lusitanas a baldear a audácia conquistadora das cruzes pela Fé e
pelo Império, cujas raias dilatavam. Renascentista, filho de uma nação onde a
tonalidade sobranceira da vida recalcitrava na incorporação de novas terras,
viu mundo em extensão e Portugal o dominando.
Embebido nos extremos dos sonhos
líricos; gravado, em seus arranques de gênio, pela signa da epopeia; simples e
patético; dourado de luz e mergulhado no lodo; majestoso e miserável, aquele
indigente, que morreu em 10 de junho de 1580, deixou-nos, no cofre da
imortalidade, um tesouro incorruptível, lastro duradouro com o qual a projeção
de Portugal se estenderá no tempo e no espaço, imperecivelmente.
Junqueiro foi o clamor, o rugido
bravio, o gesto pânico. O alure de seus movimentos poéticos como que precisava
de montanhas para madurecer; há asas de águia no voo de seus versos; sua poesia
é, por assim dizer, patrocinada pelas fulgurações estonteantes da luz, – de tal
forma a nossos olhos está deformada a gigantês de sua corporatura, – não vemos
senão descortinando nos revérberos de uma inspiração luxuriante, patética
sempre, muito embora cintilem em sua obra – ainda que nas intermitências de
seus frêmitos convulsionados, – os reflexos de certas estrofes líricas, das
mais doces de nossa língua, que palpitam naquela meiguice recenseadora de nosso
enternecimento.
Joalheiro suntuoso, derreteu em sou
cadinho todas as joias do verbo e incrustou em nossa emoção a ênfase veemente
de uma delirante atmosfera melódica.
Frenético e tumultuoso, sanguíneo,
fervente, passional, em seus versos pulula o recacho dos arroubos que parecem
mordidos pela ânsia de se libertarem no desafogo da amplidão.
Sacrílego, herético, profanador do
tabernáculo de Cristo, ostentou a sátira com a fúria arrogante de um bárbaro,
entornando no Corpo-Místico os jorros sulfurosos de uma rebeldia abastardada na
ignorância acerca do que fosse a Igreja. Mas, à hora da expiação, quando,
depois de ter dado a volta à vida, começou a compreendê-la, já no crepúsculo,
na antecâmara do tribunal da morte, recolheu-se sobre si mesmo, debruçou-se na
perscruta insondável do ser, e arrancou das profundas da alma o facho do
arrependimento, ao clarão do qual entrou no "outro lado".
Poeta não raras vezes incorreto, com
imagens visivelmente abocanhadas a outrem, visionário, mas poeta, no soberbo,
altíssimo significado do vocábulo. Nada se compara a Junqueiro em nossa língua
e quando desejamos rever a poesia, tão aviltada nesta quadra medrosa de
debandada, é no fulgor de sua inspiração que nos vamos engolfar, para
estremecermos com versos que se nobilitam no alfobre da beleza.
Antero de Quental. Possuía um nome que
era bem uma senha a nos atrair sonoramente para o brilho de uma auréola
deslumbrante. Há nele uma predominância de vogais e sons graves que repercutem
como um toque de matinas no bronze de nossa sensibilidade.
Poeta dos mais altos, de inspiração
das mais puras, de unidade espiritual das mais perfeitas – ainda que postiça –
Antero de Quental dignificaria qualquer terra onde seus versos campeassem. Todo
ele, um magnificente ritmo, paradigmou o ritmo: desde a face bela, que um sopro
de profecia toucava, fulgurando na barba ruiva em lampejos de antecipação, de
vaticínio, até anarquia interior de sua dúvida, toda ela ritmada no equilíbrio
paradoxal de seu desequilíbrio.
A mocidade de seu tempo, fascinada,
deixou-se arrastar na esteira de sua ideologia, norteando o próprio destino nas
estrelas de seu roteiro. E como a interpretação do universo de Antero era
viciosa, rebaixada do plano da verdade para a base claudicante do erro, a
geração do poeta atravessou a vida apoucada e vencida por uma sobrecarga, com o
peso da qual comprometeu até mesmo os destinos da pátria.
Antero de Quental foi, no seu tempo,
quem mais senhoreou espíritos em Portugal; seus companheiros de luta, em
êxtase, o seguiam como a um guia, suspensos nas asas de luz de sua pregação
apostólica, fascinados pela sinceridade, nos confins da qual circunscreveu toda
a sua conduta. A curva, a trajetória de seus ideais, voaram sempre acima das
tergiversações, e tudo quanto produziu – o curso de seus movimentos poéticos, a
própria estrutura de sua obra inteira, – balanceou as escâncaras de uma alma
que, sem compromissos no porão das alianças subalternas, não permitiu jamais se
esboroasse a oblata daquilo que sua dileção amava. Tinha, portanto, que ser
lendário: o rancor dos desafetos, o bafio da desavença cresceram, avolumaram-se
até o halo de esplendor em que vivia, mas soberania das convicções, no cimento
das quais habilitava atributos de mistificação e engano, o forravam a todas as
insinuações malévolas, garantindo-lhe o lugar que merece na história do
pensamento português e universal.
Dotado de prendas excelentes, de
qualidades magníficas, ao influxo das quais entornaria no espírito e no coração
dos homens o valor das coisas estratificadas na hierarquia que leva ao
transcendente, Antero não resistiu, porém, ao solapamento minaz dos princípios
que bussolearam o século XIX: mesmo perfilhando, doutrina exposta por Proudhon,
antecipando-se como um precursor à filosofia da intuição que ia ter em Bergson
o grande nome, opondo o espiritualismo ao racionalismo, a marcha da revolução,
com todos os seus atributos de mistificação e engano, o alcançaram no requinte
de suas expansões, levando-o a deixar a "velha estrada da tradição" e
a procurar outra estrada que nunca o conduziria à verdade. E predisposto para
alcançar a luz, extraviou-se no atalho doloso do erro, aniquilando uma vocação
de santo das mais genuínas, das mais puras, nos alçapões do racionalismo e da
dúvida. Muito embora pregasse aquela impersonalidade que conduz à beatitude, Antero
não se integrou nas primícias da santidade.
Tudo quanto angustiadamente buscou,
tudo quanto pretendeu baldadamente afuroar no âmbito do mistério, os problemas
que a vida lhe pôs à frente de sua dor universal, Antero os teria solucionado
na Igreja e, no entanto, por não encontrarem um termo no mundo onde o destino
do homem jamais se resolve – as riquezas interiores daquela alma se epilogaram
nos estampidos de um revólver e no curso de duas balas homicidas. É que não
encontrando enseada de sua tortura nas soluções que a razão lhe apresentava,
voa para a única libertação que se lhe ofereceu ao desespero, nos braços da
Funérea Beatriz de mão gelada,
Mas única Beatriz consoladora.
Houve quem quisesse ver no gesto de
Antero já o peso de atavismos hórdicos, já o tumulto de um forte cabedal
patológico. Nada disso houve no caso do poeta. Foi a falta de crença, a fuga
diante da mirada do absoluto que o impeliram para o penhasco do
auto-aniquilamento.
Rebentado na árvore de uma genealogia
onde se entroncavam galhos robustos da mística peninsular, Antero necessitava
de fé. E como esta lhe faltou, a mocha em brasa da dúvida o trouxe para a
bocarra do desespero, cortando-lhe o fio da vida, num claro dia de setembro, em
que esmigalhou a cabeça com duas balas, perto de um velho muro, onde se lia,
numa lápide, esta palavra mágica: Esperança. “O fato mais importante, e
provavelmente o mais decisivo dela" – diz Antero, na carta autobiográfica
a Wilhelm Storek, referindo-se à sua ida para a Universidade da "encantada
e quase fantástica Coimbra – foi a espécie de revolução intelectual e moral que
em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de
uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da
irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham
repercutir-se as desencontradas correntes do espírito moderno. Varrida num
instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida
e incerteza, espírito tanto mais pungentes quanto, naturalmente religioso,
tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra
reconhecida. Achei-me sem direção, estado terrível de espírito, partilhando
mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira que em Portugal
saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição". No
sucinto dessas palavras, Antero condensou toda a etiologia de sua desgraça.
JOÃO
DE SCANTIMBURGO
“Vamos
ler!”, julho de 1943.
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