A segunda geração romântica: Os prosadores
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Na prosa, um nome principalmente
domina a fase literária que das últimas manifestações do primeiro Romantismo
vai às primeiras do que, à falta de melhor nome, chamarei de naturalismo: José
de Alencar. O seu aferro ao indianismo quando este já começava a ser
anacrônico, os estímulos e propósitos nacionalistas da sua atividade literária,
a despeito da cronologia o poriam espiritualmente na primeira geração romântica
se, por outro lado, as qualidades peculiares do seu engenho, estro e estilo não
o separassem dela. É uma das principais figuras da nossa literatura e, com
Magalhães e Gonçalves Dias, um dos seus fundadores. Mais talvez, porém, que
pelo valor intrínseco de sua obra, em todo o caso grande, serviu-a com a sua
vontade decisiva de fazê-la de todo independente da portuguesa. Este propósito
o arrastou, aliás, além do racional e do justo, com as suas desarrazoadas
opiniões e, o que é pior, a sua desavisada prática, da língua que devíamos
escrever e do nosso direito de alterar a que nos herdaram os nossos fundadores.
Apesar da obstinação que pôs neste conceito, sobretudo depois que os escritores
portugueses lhe malsinaram o propósito nacionalista, e sem embargo de
incorreções manifestas, algumas aliás voluntárias, foi José de Alencar o
primeiro dos nossos romancistas a mostrar real talento literário e a escrever
com elegância. Afora os prosadores maranhenses, escritores entretanto de outros
gêneros, é ele cronologicamente o primeiro que por virtudes de ideação e dons
de expressão mereça plenamente o nome de escritor.
José Martiniano de Alencar,
nascido no Ceará em 1 de maio de 1829 e falecido no Rio de Janeiro em 13 de
dezembro de 1877, vinha de uma família antiga e notável pela comparticipação
que naquela Província, seu berço, tivera nos movimentos da Independência, por
amor da qual alguns dos seus sofreram perseguições, punições e até morte. Seu
pai, o padre José Martiniano de Alencar, participou na Revolta Pernambucana de
1817, foi deputado às Cortes portuguesas e nelas se distinguiu pelo calor com
que combateu pelo Brasil contra o pensamento português da sua recolonização. Ao
diante membro da Constituinte brasileira, foi um dos deportados por motivos
políticos. Havia, pois, no filho, o escritor, uma herança de revolta, de
independência de Portugal e até de má vontade ao português. Ele também foi
político, deputado da sua terra, ministro e conselheiro de Estado, figura
conspícua num partido, o conservador. Pela natureza aristocrática do seu
temperamento e do seu espírito, por tradição de família, que, a despeito dos
seus antecedentes revolucionários, era, de partido, conservadora, foi José de
Alencar, revolucionário em letras, conservador em política. Num país
novo como o Brasil, onde nenhuma tradição existia, e todos os instintos
políticos eram de ontem e de empréstimo, nada de importante havia a conservar.
As diferentes alcunhas dos partidos apenas cobriam e disfarçavam sentimentos,
interesses ou até paixões pessoais ou de grupos, sem alguma correspondência
efetiva com princípios necessários e definidos. Como era um nervoso, um
pessoal, esquivo à popularidade que, contradição muito humana, acaso no íntimo
ambicionava, chegava às vezes, quiçá por influência literária dos escritores
políticos ingleses, ao exagero do seu conservantismo. Assim foi adversário da
emancipação dos escravos quando já não o era nenhum intelectual brasileiro.
Político conservador, mostrou-se todavia indócil à disciplina partidária,
pretendendo inconsideradamente manter a sua personalidade de encontro às
exigências dessa disciplina. Fazendo-se um nome literário justamente glorioso,
à sua nativa altivez, virtude dos tímidos, como ele, e que nele escorregava
para a misantropia, juntou-se a incoercível vaidade do literato, tornando-o
menos acomodativo na vida pública e mais distante na vida comum. Num meio como
o nosso, mal-educado, fácil à camaradagem vulgar e avesso às relações
cerimoniosas, a sua atitude reservada, esquiva à familiaridade corriqueira do
nosso viver, impediu-lhe de ser pessoalmente popular, como foi, por exemplo,
Macedo, seu êmulo e seu contraste. Desarrazoadamente doía-lhe, ao que parece,
esta falta de popularidade, à qual aliás, honra lhe seja, nunca sacrificou a
sua atitude. Tudo isto lhe serviu entretanto não só à formação da sua
personalidade literária, mas de estímulo a um labor que foi um dos mais
fecundos das nossas letras. Nascido e criado no sertão, ainda então pouco menos
que bravio, do Ceará, onde se não haveriam de todo desvanecido as memórias do
antigo íncola, tendo ainda sangue deste nas veias, sentindo portanto mais
fortemente essa espécie de brasileirismo caboclo que o Romantismo acoroçoara,
comparticipando da ojeriza de família ao conquistador, explica-se que José de
Alencar haja serodiamente se rendido ao indianismo, rejuvenescendo na sua
inspiração e instaurando-o na prosa brasileira, quando ele se morria na poesia.
Certo, são justamente da década de 50
a 60 a
Confederação dos Tamoios e os Timbiras, as duas manifestações mais
consideráveis do indianismo. Mas, vindo após as "poesias americanas"
de Gonçalves Dias, eram apenas um caso de movimento adquirido. Os Timbiras,
desde meados de 1847, estavam planejados e o seu primeiro canto escrito. Havendo
Gonçalves Dias e outros seus companheiros de geração composto ficções em prosa,
nenhuma fizera em cujo assunto o elemento fosse o índio, pois não vale a pena
lembrar o mesquinho Sumé, de
Varnhagen.
É esta a primeira distinção de
José de Alencar, introduzir no romance brasileiro o índio e os seus acessórios,
aproveitando-o ou em plena selvageria ou em comércio com o branco. Como o quer representar
no seu ambiente exato, ou que lhe parece exato, é levado a fazer também, se não
antes de mais ninguém, com talento que lhe assegura a primazia, o romance da
natureza brasileira. Protraindo-se nele, através de Chateaubriand, o
sentimentalismo de Rousseau, exageradamente caroável ao homem selvagem, fez
este romance do índio e do seu meio com todo o idealismo indispensável para o
tornar simpático. E fá-lo de propósito por contrariar a imagem que dele nos
deixam os cronistas e que os seus atuais remanescentes embrutecidos não
desmentem. Nesse romance havia de ficar, pela sinceridade da inspiração e pela
forma, a mais bela que até então se aqui escrevera, o mestre inexcedível.
Estreou em 1857 com uma
obra-prima, que infelizmente não mais se repetiria em sua carreira literária, o
Guarani. Na literatura brasileira
dá-se frequentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas
melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato passou-se
com Alencar com o Guarani, com Macedo
com a Moreninha, com Taunay com a Inocência, com Raul Pompeia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas
primeiras Poesias, e se esta acaso
passando com o Sr. Graça Aranha com o seu Canaã.
As obras-primas, como já foi dito, fazem-nas também o tempo, e o tempo não
faltou com esta sua virtude ao romance de Alencar. E legitimamente. Além da
imaginação criadora da invenção do drama, da sua urdidura e desenvolvimento, da
traça dos episódios, da variedade e bem tecido das cenas, da invenção das
figuras, da vida insuflada numa ficção de raiz falsíssima, a ponto de no-la
fazer verossímil e aceitável, levava o Guarani
tal vantagem de composição, de língua e estilo a todos os romances até então
aqui escritos que, sob este aspecto, pode dizer-se que criava o gênero em a
nossa literatura. É para a nossa ficção em prosa o que foram os Primeiros cantos de Gonçalves Dias para
a nossa poesia. E se em literatura a verdadeira e legítima prioridade não é a
do tempo, senão a da qualidade e repercussão da obra, Alencar é o criador de um
gênero em que Teixeira
e Sousa e o mesmo Macedo haviam apenas sido os precursores, como quer que sejam
ainda canhestros. A de todo falsa ou inverossímil fabulação, o desmedido
idealismo, o demasiado romanesco, vícios da escola aqui, mas também efeitos de
temperamento literário do autor, de tudo o salva o largo e belo sopro épico,
que, casando-se perfeitamente com a inspiração lírica, quase faz do Guarani o romance brasileiro por
excelência, o nosso epos. Como representação, por um idealista de raça, do
choque em o nosso meio selvagem do conquistador e do indígena, da oposição dos dois
e dos sentimentos que encarnavam, e mais da vitória da graça da civilização
sobre a selvageria, como o romance brasileiro de intenção, de assunto, de
cenário e mais que tudo de sentimento, ficaria o Guarani como um livro sem segundo na obra de Alencar e talvez em a
nossa literatura.
A inclinação dos românticos aos
estudos históricos foi uma, e talvez a melhor das manifestações do sentimento
patriótico que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo, estimulou-a,
favoreceu-a a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua e
zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade e amor de
sabê-la que por, mediante ela, justificar e exaltar aquele sentimento. O melhor
fruto desse bom trabalho de pesquisa das nossas origens e da nossa vida
colonial foi a História geral do Brasil,
de Varnhagen, de 1857. Nesta rebusca dos seus títulos históricos, da sua
genealogia nacional e principalmente de quanto neles pudesse legitimar-lhe o
orgulho ou as aspirações patrióticas, é natural que as imaginações se
alvoroçassem na ambição de idealizar o nosso passado. Tanto mais que se estava
em plena voga do romance histórico, de que a literatura da nossa língua possuía
já alguns modelos então estimadíssimos. Criando o romance brasileiro, Teixeira
e Sousa, sem lhe ser estorvo a pouquidade do seu engenho e da sua cultura,
ensaiou também o romance histórico nas Fatalidades
de dois jovens, "recordações dos tempos coloniais". Este mesmo
subtítulo traziam as suas Tardes de um
pintor. Macedo, que aliás se abonava de historiador, e fazia história
pitoresca, só muito tarde, em 1870, escreveu romance histórico. O gênero
abundou aqui depois dos anos de 40. Cultivaram-no Pereira da Silva, Moreira de
Azevedo e vários outros autores somenos. Pode dizer-se que foi uma das feições
do nacionalismo dominante no período romântico este gosto pelo chamado romance
histórico.
Dele resultava também o Guarani, pois pela figura vagamente
histórica de D. Antônio de Mariz e representação de um aspecto da vida
colonial, se podia presumir de histórico. As
minas de prata, sete anos posteriores ao Guarani, continuam-lhe, com mais acentuada intenção de romance
histórico, o mesmo propósito de tomar o Brasil e aspectos brasileiros
tradicionais, pitorescos ou sociais, como principal tema literário, acaso o
único convinhável a uma literatura verdadeiramente nacional. Este conceito
parece ter sido, com algum exclusivismo, o de Alencar, de seus discípulos e admiradores
e até de antagonistas seus, o que é o maior documento da impressão que ele fez
no seu meio. É, entretanto, errado. Certamente neste período de formação das
nações americanas, carecedoras ainda de um real sentimento ou pensamento
próprio, o que pode dar à sua literatura alguma diferença e sainete é a
representação das feições pitorescas que lhes são peculiares. Nada obsta,
porém, que também aquelas que lhes são comuns com outras sociedades mais
antigas e já formadas, como as europeias, possam ter o interesse literário, e
que não haja na alma elementar destes povos primários aspectos dignos de
atenção da literatura. Há sempre num povo alguma coisa de íntimo que lhe é
próprio, como no indivíduo algo recôndito e importante que o distingue. Ao
escritor cabe descobri-lo e revelá-lo e à literatura representá-lo em suas
relações morais e sociais.
Sabemos as sugestões de
Chateaubriand, de Walter Scott, de Cooper, a que Alencar, como todos os autores
de romances americanos de intenção histórica, obedecia. A crítica que mais
tarde procurou diminuir Alencar contrapondo-lhe este e outros predecessores,
nomeadamente o primeiro, criador do indianismo na mais moderna ficção americana
em prosa, foi de todo ininteligente, acaso por ser de todo malévola. Muito
embora seguindo trilhas já por outros abertas, José de Alencar o fez com
sentimento diferente e próprio, inspiração pessoal e individualidade e engenho
bastantes para assegurar-lhe, do ponto de vista da história da nossa
literatura, créditos de original. Iracema (1865), Ubirajara, chamados pelo autor de "lendas tupis" são dois
romances poéticos; a mais de um respeito dois poemas em prosa. E só como tal
aceitáveis, pois apesar da cândida presunção contrária do autor, não é possível
maior contrafação da vida, costumes, índole e linguagem do índio brasileiro,
nem mais extravagante sentimento do que é o selvagem em geral e do que era
particularmente o nosso. Porfiam nestes dois romances as mais disparatadas
imaginações com as mais flagrantes inverossimilhanças etnológicas, históricas e
morais. Imitados por escritores somenos, que não tinham a sincera inspiração de
Alencar nem o seu engenho, foram estes os únicos que dessa literatura ficaram.
Mais que a intenção nacionalista ou o preconceito indianista, já periclitante à
publicação do último, deixaram-se os leitores tocar pela falaciosa mas sedutora
poesia que neles havia, e que ainda não passou de todo.
Como a da maioria dos literados
brasileiros, a formação literária de Alencar era, sobre deficiente, defeituosa.
Se a falta de uma educação literária sistemática houvesse de ser motivo de
espontaneidade e originalidade, raras literaturas poderiam mais que a nossa
mostrar estas qualidades. Confessa José de Alencar, aliás em páginas bem
insignificantes, que após estudos clássicos malfeitos, como foram sempre os
nossos dos chamados preparatórios, os livros que leu foram maus romances
franceses, Amanda e Oscar, Saint-Clair
das Ilhas, Celestina e quejandos em ruins traduções portuguesas. Leu-os e
os releu e, reconhece ele próprio, foi essa leitura que lhe influiu a
imaginação, cuja herança atribui à mãe, para se fazer romancista. Mais tarde,
já estudante de um curso superior, mas ainda entendendo mal o francês, leu no
original e desordenadamente Balzac, Vigny, Dumas, além de Chateaubriand e
Victor Hugo. Daquelas primeiras leituras de romances romanescos traduzidos na
intenção das damas sentimentais, lhe ficaria sempre o conceito – que foi aliás
o de toda a nossa romântica até o naturalismo – que o romance é uma história
puramente sentimental, cujos lances devem pela idealização e romanesco nos
afastar das feias realidades da vida e servir de divertimento e ensino. É uma
história principalmente escrita em vista das senhoras. O romanesco, frequentemente
de uma invenção pueril e de uma sentimentalidade que frisa à pieguice, foi com
Alencar, com Macedo, com Bernardo Guimarães e ainda com Taunay, sem falar em
menores, a feição predominante – feição que no-lo torna hoje geralmente
despiciendo – do romance brasileiro até o Naturalismo ou melhor até Machado de
Assis, que ainda em antes deste se libertara desse vezo. Um ou outra exceção,
embora relevante, como a de Manoel de Almeida, e do mesmo Machado de Assis
desde as suas primeiras novelas e contos, não foi bastante para alterar aquele
tom muito no gosto do público. Foi nele, ora mais ora menos acentuado, que
Alencar escreveu as novelas e romances com que desde 1860 iniciara, em Cinco minutos, o romance da nossa vida
civilizada e mundana e ainda um vago esboço do que viria a chamar-se romance
psicológico. Para este romance faltavam-lhe porém dons de aguda observação que
o gênero presume e também acaso o gosto de as fazer, pelo que lhe deparariam de
antipático e até molesto ao seu idealismo. Só isto impediu de ser aqui o
criador dessa forma. Simultaneamente, sem descontinuar fazia – é bem a
expressão tratando-se deste idealista da gema – o romance da vida mestiça
brasileira, do nosso meio provinciano ou sertanejo, com a sua paisagem, os seus
moradores, os seus costumes, as suas atividades peculiares. No Gaúcho (1870), no Tronco do ipê (1871), no Til
(1875), no Sertanejo (1876), essa
vida é recontada não conforme uma visão natural das coisas, mas segundo o
conceito que já fora confessadamente o do Guarani,
"um ideal que o escritor intenta poetizar" e cuja prática o arrasta,
como em todos eles, a frioleiras ou a monstruosidade de imaginação e de
estética. Não obsta que não haja também nesses livros a realidade superior que
a mesma poesia cria.
A incapacidade de ficar na
realidade média, que a ficção para nos interessar exige, e não só realidade de
ação, mas de expressão e de emoção, empeceu Alencar de ser um melhor, mesmo um
bom autor dramático. Como tal estreou em 1857, no mesmo ano do Guarani, com o Demônio familiar, que é porventura também a sua melhor obra de
teatro. Realmente pouco falta a esta peça para ser, como comédia de costumes e
representação de um dos percalços dos nossos de então, uma obra excelente e mal
chega a ser uma peça de conta. Para o teatro, principalmente, levou Alencar as
predisposições moralizantes que, sobre serem muito do gosto do nosso
Romantismo, excetuados os poetas da segunda geração romântica, são da índole do
gênero. Todo o seu teatro as revela. Acentua deliberadamente as preocupações
morais e didáticas com que nascera o nosso teatro, apenas em Martins Pena
atenuadas pelo caráter de farsa do seu e pelo que havia na sua veia de nativo e
popular. O fito do teatro, segundo se lhe depreende da obra, deve ser a
discussão dos problemas de ordem moral que interessam a sociedade
contemporânea. Esta é aliás a concepção do teatro posterior ao Romantismo,
desde a dramaturgia burguesa dos franceses, mestres do gênero, até a de Ibsen, Tolstoi
ou Sudermann. As Asas de um anjo,
representadas em 1858, exageravam este propósito moralizador até exceder os
limites necessários dos direitos da arte. Manifestamente inspirada das peças
congêneres então no galarim A Dama das
camélias e as Mulheres de mármore,
com as quais o mesmo autor as compara, tem confrontadas com estas
inferioridades e defeitos palmares. São os mais sainetes, a desconformidade com
o meio, que certamente não comportava o drama (não sei por que o autor lhe
chamou comédia) qual o concebeu e realizou o escritor, artificialidade dos
processos, da composição, do estilo, tudo resultante daquela mesma
desconformidade. Nem tem como aquelas peças, que evidentemente lhe serviram de
estímulo e modelo, não só a arte consumada do dramaturgo, mas a, ainda mais
relevante, do escritor. Custa a dizer, mas é a verdade: toda a filosofia teatral
de Alencar, nesta como em suas outras peças, é uma coleção de lugares-comuns,
não levantados infelizmente por excelências de expressão. Não pode ser outro,
penso, o nosso juízo de hoje, mas no seu tempo a obra dramática de Alencar era
aqui uma novidade de concepção e de estilo. Ao teatro de costumes de Pena e de
Macedo traz José de Alencar o teatro de teses, de ideias, com propósitos não só
de moralista vulgar, mas de pensador e em suma com melhor estilo que aqueles.
Se não tem o engenho cômico dos dois e o dramático do segundo, o sobrelevava a
ambos em qualidades propriamente literárias. Compreende a obra teatral de
Alencar sete peças, cinco comédias e dois dramas, sem falar numa comédia lírica
ou libreto de ópera, ao todo uns trinta atos que pelo menos provam nos autores
do nosso teatro romântico maior imaginação e capacidade do gênero do que têm
mostrado os que lhe sucederam.
Dessas peças, a última que
escreveu e fez representar foi o Jesuíta,
pelos anos de 70. Na sua obra dramática não será talvez a melhor, mas é
porventura a mais forte, a mais trabalhada, aquela em que o autor deu mais de
si, em que é mais evidente o seu esforço de fazer uma grande obra de teatro.
Infelizmente assentou-a numa concepção do jesuíta, se não falsa, contrária ao
conceito comum desse tipo, e faltou-lhe engenho para vencer a nossa prevenção.
Há no entretanto no seu drama, mais talvez que em nenhuma outra das suas peças,
qualidades estimáveis e ainda relevantes de simplicidade de meios, de expressão
e de emoção. Afora as suas práticas sistemáticas no escrever a língua, tem a
sua, nesta, qualidades que lhes suprem e escondem os defeitos neste particular.
O drama é bem feito, se bem a sua inspiração paradoxal – um jesuíta precursor
da Independência do Brasil – pareça de todo falsa. Ou ao autor faltou com que
dar-lhe a verossimilhança que a ficção dramática exige.
José de Alencar foi ainda
crítico, publicista, orador parlamentar e jurisconsulto. Da sua atividade como
crítico, principalmente exercida em breves artigos de jornais, só ficaram em
livro as Cartas sobre a Confederação dos
Tamoios (1856), mera censura impressionista, frequentemente desarrazoada,
de inspiração demasiado pessoal, dos defeitos do poema de Gonçalves de
Magalhães. É como publicista principalmente que Alencar se assinalou fora do
romance, e que mostrou, além de vigor dialético, brilho e elegância de forma
não comum no gênero até ele. Estreou nele com as desde logo célebres Cartas de Erasmo, dirigidas anonimamente
ao imperador, cuja primeira edição é de 1865. Outras com a mesma epígrafe, o
mesmo endereço, ou também escritas a outros destinatários, como o povo e alguns
próceres da política, saíram ainda em 1866 e 68. Da primeira série houve
segunda edição, de Paris, no mesmo ano, e terceira do Rio de Janeiro, em 1866, o
que indica a atenção e interesse que despertaram. Além de opúsculos de caráter
político ou de discussão de teses constitucionais, deixou um livro, O sistema representativo, sobre este
assunto. Para orador não tinha figura, nem voz, nem porte, mas compensava com
grande vantagem estas falhas, pelas qualidades literárias dos seus discursos,
ciência doutrinária e notáveis recursos de ataque e defesa, ironia mordente e
até acerado sarcasmo de que na tribuna era pródigo. Com isto conseguiu no seu
tempo renome de orador parlamentar notável, que os seus discursos publicados
confirmam. A sua obra de jurisconsulto, que os competentes ainda estimam, são,
afora alguns opúsculos de advocacia, A
propriedade e esboços jurídicos, ambas publicações póstumas de 1883. Toda esta
porção da sua atividade intelectual lhe verifica o engenho, poderoso e
versátil, mas sob o puro aspecto literário, principalmente provado no romance,
não teria bastado para lhe criar o nome que este lhe deu.
Como romancista, a sua produção
oferece duas fases, das quais a segunda é, se não de declínio, de relativa
inferioridade. Ele próprio parece o haver sentido quando, desde 1870, trocou o
seu nome já ilustre pelo pseudônimo de Sênior,
declarando-se velho da velhice não do corpo, feitura dos anos, mas da alma,
gerada das desilusões. "Há duas velhices – escrevia tristemente à frente
do Gaúcho, publicado aquele ano -: a
do corpo, que trazem os anos, e a da alma, que deixam as desilusões. Aqui onde
a opinião é terra sáfara e o mormaço da corrupção vai crestando todos os
estímulos nobres, aqui a alma envelhece depressa. Ainda bem! A solidão moral
dessa velhice precoce é um refúgio contra a idolatria de Moloch." Tinha
apenas quarenta e um anos quem estas desenganadas palavras escrevia. As
desilusões lhas dera a política, criando-lhe ambições que lhe não deixou
satisfazer. Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de
impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e
superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha
acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em
arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá
vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente
incompatibilizado. Com a recusa do imperador de o escolher senador na lista
sêxtupla em que tinha o primeiro lugar, recusa inspirada num alto sentimento de
moral pública, pois Alencar era ministro na ocasião do pleito, com a sua
desavença com os seus correligionários, coincidia a guerra já aludida que ao
literato fizeram Franklin Távora e José de Castilho e outros, seguindo-se-lhe
os primeiros ataques da crítica (Joaquim Nabuco, Sílvio Romero), aos quais se
mostrou mais que de razão sensível. E ele que em opúsculos políticos,
nomeadamente nas Cartas de Erasmo, a sua principal obra de publicista, se
mostrava um devotado imperialista e havia feito, com a apologia do imperador, a
defesa do poder pessoal, que lhe arguiam, e até preconizado o uso deste poder,
agora, por uma reviravolta vulgar nos nossos temperamentos de impulsivos,
atribuindo ao monarca todos os seus dissabores, encheu-se de ódio contra ele,
desdisse-se e contradisse-se, em demasia entregue a este abalo moral. Como quer
que seja o melhor da sua obra literária, é justamente a anterior a este
período, o Guarani, as Minas de prata, as novelas de 1860, Lucíola, Diva, Iracema. Há nas que
vêm após aquela crise um gosto malsão do extravagante, mesmo do monstruoso, uma
afetação do desengano e de desilusão, que lhe revê a chaga da alma malferida. O Gaúcho, Til, a Pata da gazela e
ainda o Tronco do ipê são disso
documento. E voltando ao romance histórico, de que dera em Minas de prata o nosso mais perfeito exemplar, descai na sátira
propositada e, o que é pior, feita sem talento nem finura. A Guerra dos mascates (1871), onde, com o
imperador, quase sem disfarce encarnado no governador de Pernambuco, figuram
alguns magnatas da política grossamente caracterizados e outros contemporâneos
de algum destaque, é antes um panfleto que um romance histórico. E como obra
d'arte é a todos os respeitos inferior, sem que a execução lhe desculpe a má
sortida inspiração.
A obra propriamente literária de
Alencar, romance e teatro, fundamento do seu renome, é, a despeito das
restrições que se lhe possam fazer, valiosa. Mas só as suas virtudes estéticas
não lhe assegurariam a proeminência que nas nossas letras ele tem, não fora a
sua importância e significação na história da nossa literatura. A vontade
persistente de promover a literatura nacional, o esforço que nisto empenhou, a
mesma cópia e variedade desta obra, mais talvez que o seu valor propriamente
literário, lhe asseguram e ao seu autor lugar eminente nesta história. A sua
porção principal, onde se nos deparam três ou quatro livros porventura
destinados a perdurar, são os romances e novelas de antes de Sênior, compreendida Senhora, não obstante a sua data (1857).
Não possuindo a língua com seguro conhecimento, tinha Alencar, entretanto, com
um fino sentimento dela, dons naturais de escritor que o distinguiram, desde
que apareceu, entre todos os seus contemporâneos, antes que Machado de Assis,
sob este aspecto ao menos, os excedesse a todos. Mas com essas qualidades
nativas, alguma afetação e certos amaneirados de estilo, aumentados na fase de Sênior. As críticas geralmente justas
feitas à sua linguagem não tiveram senão o efeito de lhe exacerbarem o orgulho
ou vaidade literária. Pôs-se a estudar a língua mais com o propósito de
encontrar nesse estudo antes justificativa do que emenda dos seus defeitos de
escritor, nos quais desarrazoadamente e com dano da sua literatura perseverou
do mesmo passo acoroçoando com o seu exemplo ilustre a funesta intrusão
individual em o natural desenvolvimento da língua. Há no estilo de Alencar,
colorido, sonoridade, mesmo música, eloquência, emoção comunicativa, mas há
também ênfase e mau gosto. Como escritor faltava-lhe, pode dizer-se
inteiramente, espírito, que parece apenas revelou nas discussões parlamentares,
onde aliás os seus ataques e réplicas são mais aceradas que espirituosas. Como
Herculano, segundo lhe reprochou Camilo Castelo Branco, Alencar era de uma
insulsez além do que se permite ao escritor público. Daí o malogro do seu
romance caricatural da Guerra dos
mascates, e a fraca vida das suas comédias. Foi-lhe acaso funesto o ter
começado por uma obra-prima, muito admirada e celebrada e lhe haver faltado o
bom espírito de se não embevecer do seu sucesso, aliás merecido.
Três anos antes do Guarani, com que José de Alencar restaurava
nas nossas letras a inspiração pseudonacionalista do indianismo periclitante,
aparecia o primeiro volume das Memórias
de um sargento de milícias, por "Um Brasileiro". O pseudônimo
está revendo a preocupação nacionalista que era ainda por muito a da literatura
do tempo e da qual Alencar se vinha justamente fazer o arauto convencido.
Também o era o das Memórias de um
sargento de milícias, mas depurado do preconceito indianista. Assentava
antes numa intuição mais justa do objeto da nossa ficção.
Como Macedo quando escreveu a sua
Moreninha, o autor era um estudante
de medicina, jornalista, redator do Correio
Mercantil, então um dos mais literários do Rio de Janeiro, Manoel Antônio
de Almeida, nesta cidade nascido em 1830. Formado em 1857, no ano do Guarani, dos Tamoios e dos Timbiras, pouco
depois, em 1861, pereceu num naufrágio indo de viagem para Campos. Com ele,
pode dizer-se, naufragou a talvez mais promissora esperança do romance
brasileiro. Pouco falta, com efeito, às Memórias
de um sargento de milícias para serem a obra-prima do gênero na fase
romântica. É original como nenhum outro dos até então e ainda imediatamente
posteriores, aparecidos, pois foi concebido e executado sem imitação ou
influência de qualquer escola ou corrente literária que houvesse atuado a nossa
literatura, e antes pelo contrário a despeito delas, como uma obra espontânea e
pessoal. Em pleno
Romantismo , aqui sobre-excessivamente idealista, romanesco e
sentimental também em excesso, o romance do malogrado Manoel de Almeida é
perfeitamente realista, ainda naturalista, muito antes do advento, mesmo na
Europa, das doutrinas literárias que receberam estes nomes. Não pertence a
nenhuma escola ou tendência da ficção sua contemporânea, antes destoa por
completo do seu feitio geral. É uma obra inteiramente pessoal em relação no
meio literário de então. Antes de ninguém, pratica no romance brasileiro e pode
afirmar-se que a pratica com suficiente engenho, mais que a pintura ou notação
superficial, a observação a que já é lícito chamar de psicológica do indivíduo
e do meio, a descrição pontual, sem preocupações de embelezamento dos costumes
e tipos característicos, a representação realista das coisas, sem refugir, o
que haveria escandalizado a Macedo e Alencar, mesmo aos seus aspectos mais
prosaicos e até mais repugnantes, mas evitando sempre tanto as cruezas que
trinta anos depois haviam de macular o naturalismo indígena, no seu grosseiro
arremedo do francês, como os fingimentos e afeites com que presumiam aformosear
a nossa vida e a sua literatura os romancistas seus contemporâneos. A língua e
o estilo deste romance, menos trabalhados que o de Alencar e menos desleixados
que os de Teixeira e Sousa e Macedo, tem, se não maior correção (e a sua é
certamente maior que a destes últimos), mais fluência e espontaneidade e mais personalidade.
Acaso foram estas feições, que
hoje revelam aos nossos olhos este romance, a causa dele não ter tido na nossa
literatura a influência merecida. O gosto e a inteligência do público àquela
data iam preferentemente às qualidades opostas às que agora nos parecem
constituir o mérito. Habituado ao romance romanesco e moralizante qual era não
só o nosso, mas o português nessa época, em rever-se embevecido nas concertadas
criações dos seus romancistas, não se podia o público enfeitiçar com um romance
que para o seu gosto tinha o defeito de ser demasiado real e desenfeitado. Este
seria também o sentimento dos próceres do Romantismo, então com toda a
autoridade na opinião literária nacional. Parece indicá-lo o fato do Brésil littéraire, de Wolf, sabidamente
inspirado por Magalhães e Porto Alegre, não aludir sequer às Memórias de um sargento de milícias, e
ao seu mal-aventurado autor, nem o representar na antologia, onde tanta coisa
péssima vem, que adicionou ao seu livro. O desaparecimento de Manoel de Almeida,
quase imediato à publicação do seu romance, o triunfo inconteste da romântica
de Alencar, prejudicariam essa obra até então a mais original e a mais viva da
nossa ficção e lhe impediriam de ter a influência que nela merecia ter tido e
que porventura lhe daria outra e melhor feição. A sua reedição em 1862, por
Quintino Bocaiúva, ainda todo devotado às nossas letras, embora provando que a
certos espíritos não era o seu valor desconhecido, ainda encontrou a opinião
pública a mesma em matéria literária. Só muito mais tarde, quando o naturalismo
entrou a desbancar o Romantismo que aqui se procrastinava, se começaria a ver
no romance de Manoel de Almeida e precursor indígena, mas sempre desconhecido,
da romântica em voga.
Simultaneamente com Alencar, dois
romancistas principalmente disputavam a atenção do nosso público, Joaquim
Manoel de Macedo e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães. Cronológica e
literariamente, Macedo pertencia à primeira geração romântica. Era um genuíno
produto daquele momento e meio literário, e foi na sua plena vigência que
estreou nas letras, iniciando do mesmo passo com Teixeira e Sousa o romance, e
com Martins Pena e Magalhães o teatro brasileiro. Escritor copiosíssimo como,
excetuado presentemente o Sr. Coelho Neto, não tivemos outro, Macedo, aliás sem
jamais progredir nem variar, ultrapassou a sua época e foi ainda o mais
abundante dos prosistas da segunda geração. Sem falar dos seus livros de
história ou de crônica e numerosos escritos políticos e literários dispersos em
jornais e revistas, tudo geralmente insignificante, são da fase ocupada por
esta geração (1850-1870) os Romances da
semana, O culto do dever, A luneta mágica, As vítimas algozes, Nina, As
mulheres de mantilha, A namoradeira, A baronesa do amor, para não citar
senão os, aos menos pelo tomo, mais consideráveis. E no teatro, excetuado o
Cego, que é de 1849, é desta mesma fase toda a sua abundante literatura
dramática. Mas quer no romance, quer no teatro. Macedo não fez mais ainda na
véspera ou já em pleno dia do naturalismo que continuar, por inércia, o
movimento adquirido com a primeira geração romântica. Esta imobilidade, que não
basta à inspiração social de Vítimas
algozes, e de alguma sua peça de teatro, para desmentir, decididamente o
fixa nesta geração, sem embargo dele ter vivido, e sempre escrevendo, até 1882.
Nem a concepção do romance ou do teatro, nem o estilo de Macedo, variaram nunca
do seu conceito primitivo de uma história inventada e recontada com muita
poesia, ou, o que ele cria tal, para comover a sentimentalidade do leitor ou do
ouvinte, com o fim de o edificar moralmente. Com este conceito, que foi o de
todos os nossos românticos, sem exceção de Alencar, Macedo o realizou sem
engenho que o relevasse, a sua obra é, do puro aspecto literário, de somenos valia.
Há nela, porém, alguma coisa que a levanta e faz viver da vida mesquinha que
ainda tem: primeiro a sua sinceridade, a sua ingenuidade na representação do
primeiro meio século da nossa existência nacional, segundo a alegria que há
nela, e que agradavelmente destoa da estranha tristeza de todos os seus
companheiros de geração. Como quer que seja, ele tem, sem grande riqueza e
força aliás, imaginação e facilidade. Como autor de teatro foi talvez o que
melhor o soube fazer aqui. O desleixo com que geralmente escreveu, senão também
pensou as suas obras, prejudicou-as consideravelmente em o nosso atual
conceito. Mas os seus defeitos de concepção e de forma, a que somos hoje
nimiamente sensível, não afrontavam os seus contemporâneos, dos quais foi um
favorito. Ainda hoje é dos nossos romancistas mais lidos, se bem que às
escondidas e em segredo. É o que tem sido mais repetidamente editado. E Taunay,
que estreava já na terceira geração, dedicando-lhe o seu romance A mocidade de Trajano, como a um mestre,
apenas exprimiu o sentimento de comum apreço pelo operoso e divertido escritor.
Bernardo Guimarães nasceu em Ouro Preto , Minas
Gerais, em 1827. Era filho de Joaquim da Silva Guimarães, um desses muitíssimos
poetas merecidamente esquecidos de que o Brasil é abundante. Além de versejar,
o pai escrevia prosa; era pequeno jornalista provinciano. Bernardo Guimarães
encontrou, pois, uma tradição literária na família. Devia-lhe avultar a herança
e comunhão da Sociedade Acadêmica de S. Paulo, cuja Faculdade de Direito, no tempo
em que a frequentou, era um foco de atividade intelectual. Ali teve por colegas
e companheiros Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e outros jovens poetas e
escritores. Segundo a tradição constante, ele, como aliás tantíssimos outros
dos nossos doutores, tudo fez menos estudar. Depois de formado, foi
sucessivamente magistrado em Goiás, professor de Retórica e Filosofia na sua
terra e jornalista no Rio de Janeiro. Fixando-se mais tarde na sua Província,
aí exerceu quase toda a sua atividade literária, que não foi pequena. Como
prosador, Bernardo Guimarães começou, ao que parece, pela crítica, feita em
jornais em que escrevia no Rio. Não sabemos o que vale a sua crítica. Como ele
não perseverou nela e não deixasse como crítico obra por que o avaliemos, pouco
nos importa sabê-lo, rebuscando jornais velhos.
Muito mais que Alencar e acaso
mais até que Macedo, Bernardo Guimarães, como romancista é um espontâneo, sem
alguma prevenção literária, propósito estético ou filiação consciente a nenhuma
escola. É um contador de histórias no sentido popular da expressão, sem a
ingenuidade, às vezes excelente, destes, porque em suma é um letrado, e as suas
letras lhe viciam a naturalidade. Se o seu primeiro romance, O ermitão do Muquém, é um "romance
brasileiro", segundo a classificação costumeira, com grandes laivos
indianistas, é porque essa era a corrente do momento e também porque se lhe
deparou, quando nos sertões goianos, um tema sobre muito próprio para
impressionar a imaginação, extremamente favorável à idealização romanesca,
consoante o conceito e gosto dela aqui vigentes. As datas da primeira
publicação do Guarani em jornal e
depois em livro, e da edição do Ermitão,
autorizam a admitir a influência daquele na intenção deste. Não há nele,
entretanto, influência formal do romance de Alencar, nem dos seus processos,
tirante a excessiva sentimentalidade e o desmarcado romanesco, em suma a
idealização descomedida, que era o achaque do tempo. Qualquer que seja a
qualidade do engenho de Bernardo Guimarães, e como poeta ele é dos bons que
tivemos – a verdade é que, sem literariamente ser o que chamamos um espírito
original, não é um espírito imitativo e subordinado. Como poeta, não obstante
ter vivido no foco da reação ultrarromântica e na intimidade espiritual do seu
principal corifeu, ele conserva a sua individualidade distinta por feições que
contrastam com as dos companheiros de geração; emoção e expressão mais sóbrias,
sentimentalidade menos exuberante, alma e veia menos triste e ainda jovial,
apenas algum alarde do ceticismo ou desesperação.
Os seus romances e novelas são
todos natural e correntemente contados sem preocupação ou trabalho de escrita,
mas também sem a peregrina virtude de a conseguir bela, independentemente deste
esforço. Nele, como em Macedo e no geral dos nossos românticos, a
espontaneidade não é a literária, e menos a que, sem grande trabalho, dá com a
forma justa. Ainda menos é a que, ainda com trabalho, às vezes grande, logra, o
que é o sumo da arte, iludir-nos dando-nos a impressão da facilidade. Bernardo
Guimarães escreveu mal, quero dizer sem apuro de composição, nem beleza de
estilo. O seu é o de todo o mundo que não cuida do que escreve, a sua língua é
pobre, a sua adjetivação corriqueira, o seu pensamento trivial. São os defeitos
de Macedo e ainda mais de Teixeira e Sousa, mas no escritor mineiro mais
sensíveis por virem depois destes e quando a literatura nacional já tinha
trinta anos de existência e de produção nunca descontinuada. Com uma justa
intuição das exigências da composição literária, faltou aos nossos românticos
uma crítica que os esclarecesse delas. A que aqui se começou então a fazer,
provinha em linha reta da que tinha em Portugal por órgãos principais as
Academias e Arcádias e os censores oficiais, uma crítica de hiperbólicos encômios,
de campanudos elogios, em que os juízos tomavam por via de regra a forma de
equiparações disparatadas com os autores célebres ou de assimilações
antonomásticas não menos estapafúrdias. A crítica ali, aliás, oscilou sempre
entre o panegírico e o vitupério, a louvaminha e a diatribe. Com a mesma índole
passou ao Brasil, e os que a fizeram aqui, nos nossos primeiros jornais e
revistas, como o Patriota, a Minerva, o Guanabara, Niterói,
movidos do sentimento presumido patriótico de encarecer os nossos valores
intelectuais, ainda lhe exageram aquela tendência atávica. A crê-los, esses
nossos começos de literatura nacional seriam um acervo de obras-primas. Não
fora essa crítica louvaminheira e puerilmente patriótica que teve Macedo por um
gênio literário e cada uma das suas defeituosas produções por um primor, os
seus seguidores e discípulos e ele próprio, que viveu mais que bastante para
emendar-se, teriam necessariamente nos saído mais perfeitos. Essa crítica
continuou para Bernardo Guimarães, havido no seu tempo (e ainda hoje pela
opinião bairrista) por um grande romancista e escritor. O público parece aliás
não lhe ter endossado o conceito, pois o Ermitão,
publicado em 1859, não teve até agora mais que essa edição. E os seus outros
romances não passaram igualmente da primeira, ao invés das suas poesias, que já
atingiram a quarta, o que prova que o público é mais inteligente do que se nos
afigura. É esta a lição da nossa história literária, que a crítica
indiscretamente animadora não é só inútil, mas prejudicial. Apenas serve para
produzir frutos pecos, desencaminhando atividades porventura melhor empregadas
fora da literatura ou acoroçoando vaidades que se tomam por vocações. Sem
embargo deste ensino, continua a ser este o conceito da crítica aqui, quando
não é a diatribe ou a simples arrogância de indigesta erudição.
Na romântica brasileira, Teixeira
e Sousa havia criado o gênero, iniciado o romance de costumes populares rurais
ou urbanos, Macedo o continuara, mas romanceando principalmente a vida burguesa
da capital, Manoel de Almeida ensaiara-se apenas, mas com engenho superior ao
destes, no romance da vida carioca de um quarto de século antes, segundo o
conceito tradicional, com evidente propensão e clara inteligência para a
análise dos caracteres e sentimentos. Alencar, depois de se haver ensaiado na
novela romanesca da vida social, iniciara o romance do "período da
conquista" da "luta em que a raça invasora destrói a raça
indígena" com o manifesto propósito de reabilitar o índio da má fama que
lhe fizeram os cronistas, o que só idealizando-o extravagantemente podia
conseguir. Este propósito era aliás o mesmo de Magalhães, de Gonçalves Dias de
outros indianistas, e o que de alguma sorte o legitimava é que a nação inteira
o adotou.
Bernardo Guimarães é o criador do
romance sertanejo e regional, sob o seu puro aspecto brasileiro. O meio cujo
era, determinou esta tendência da sua romântica. Mas ao contrário do que se
devia esperar de escritor tão familiar com o ambiente que lhe fornecia os
temas, não se lhe apura nas obras a imagem exata, seja na sua representação
objetiva, seja na sua idealização subjetiva. Em toda a obra romântica de
Bernardo Guimarães será difícil escolher uma página que possamos citar como
pintura ou expressão exemplar do meio sertanejo. Teve ele ambições mais altas
que esta pintura de gênero, ensaiou-se também no romance histórico e no de
intenções sociais, com o Seminarista, onde versou o caso celibato clerical, com
a Escrava Isaura, em que dramatiza
cenas da escravidão, com Maurício, em que tenta ressuscitar uma época histórica
da vida colonial da sua província. Infelizmente os mesmos defeitos que lhe
viciam os romances sertanejos lhe maculam estes, acrescidos da pobreza do seu
pensamento e acaso maior insuficiência da sua expressão.
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