O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução de Ribeiro do Couto (1921)
Certa vez por triste e alta noite,
enquanto a sós, eu doente e aborrecido velava, embebido na leitura de
interessante e velha história, tonto de sono, cochilando, súbito percebi surdo
ruído, como se de leve arranhassem, arranhassem a porta de meu quarto.
"Talvez alguém”, disse comigo, “batendo para entrar... Somente isto e nada
mais”.
Ah! bem me lembro, foi pelos frios de
dezembro, e as brasas mortiças, ali e acolá espalhadas pelo chão, já se
apagavam. Ansioso esperava eu que amanhecesse, e enquanto isto, tentava em vão
achar na velha história à saudade que sentia perda de Leonor, a santa e
inesquecível criatura, a quem os anjos no céu chamam Lenora, e por quem aqui,
na terra, ninguém chamará jamais.
E o agitar monótono e inconstante dos
refolhos das cortinas, amedrontou-me enchendo-me de fantástico terror, nunca
então por mim sentido, tanto que para conter as ânsias de meu peito,
levantei-me comigo dizendo: "É alguém que deseja aqui entrar; algum
retardatário visitante procurando minha porta. Há de ser isso e nada
mais."
Senti-me todo cheio de coragem e sem
nenhuma hesitação, falei: "Senhor ou Senhora, peço-vos desculpas mil, pois
estando eu a cochilar, batestes tão de manso e brandamente, que não tinha
certeza de vos ter ouvido"... e dito isto escancarei a porta... Só havia
escuridão profunda e nada mais.
Apesar, contudo, dessa escuridão
profunda, da porta o limiar transpus e por tempo de pé fiquei, absorto,
assombrado, cheio de dúvidas, imaginando coisas até ali por nenhum mortal
sonhadas. Silêncio sepulcral, solidão funérea e a única palavra por mim então
balbuciada e mesmo assim baixinho, foi “Lenora", que não obstante dita tão
de leve, ainda o eco repetiu "Lenora". Apenas isto e nada mais.
De novo entrando, o peito sinto com em
brasa ardendo e outro rumor percebo, algo mais forte que o primeiro.
Certamente, disse eu, alguma coisa bate nas vidraças, vamos ver pois que possa
ser, e de vez acabe-se este mistério; sossegue meu coração por um momento.
"Talvez seja o vento e nada mais.”
De par em par abri pois a janela, quando
alvoroçadamente esvoaçando entrou um majestoso Corvo dos bons tempos de
outrora. Nem o mais leve cumprimento; sequer um instante não parou, nem se
deteve. Mas com ares de lorde ou de mamada à porta de meu quarto trepou num
busto de Palas, bem por cima dela colocado... Trepou, nele ficou e nada mais.
Então ao negro pássaro, pelo grave e
severo aspecto que mostrava, a ponto de tornar meu triste pensamento num
sorriso, disse eu, certo estou que não és nenhum medroso, apesar de trazeres o
topete aparado e bem rapado. Feio, horrendo e velho Corvo, vindo de noturnas
plagas, dize-me os teus títulos de nobreza, nos domínios de Plutão! E o Corvo
disse: "Nunca mais".
Muito me espantou, da bruta ave ouvir
resposta tão cabal, embora suas palavras pouco sentido, pouca significação
tivessem, pois não podemos deixar de concordar, que nenhum humano ser vivente,
jamais teve a ventura de ver um pássaro em seu quarto, ou outro animal trepado
num busto esculturado, com semelhante nome: "Nunca mais”.
Mas o Corvo sempre quedo sobre tão
plácido busto, nem mais disse, além daquela frase, como se sua alma nela única,
toda se vazasse, outra não proferiu, nem mexeu uma só pena. Então medrosamente
murmurei: "Outros amigos antes já se foram, deixar-me-á este ao amanhecer,
como já todas esperanças me deixaram? Então o Corvo disse: "Nunca
mais".
Estarrecido, ante o silêncio assim
quebrado, com resposta tão cabida, “sem dúvida" disso eu, “é esta frase a
única provisão por ele armazenada, aprendida de algum infeliz amigo, a quem
cruel destino acompanhou de perto e mais de perto inda persegue, a ponto de
seus cânticos tornarem-se estribilho e seus salmos de esperança nesta toada
melancólica: “Nunca, nunca mais".
Tendo pois mais uma vez o triste
pensamento transformado num sorriso, sentei-me em frente ao pássaro, sempre no
busto trepado e afundando-me no aveludado da poltrona, procurei ligando ideias
descobrir, que coisa, a tão, feia, bruta, horrenda e magra ave dizer queria, crocitando:
"Nunca mais".
Fiquei pois imerso em conjecturas e nem
palavra disse à negra ave, cujos olhos como fogo me requeimavam até o imo
d'alma. E mais e mais sonhando, sentei-me com a cabeça reclinada no encosto de
veludo da poltrona que recebia em cheio a luz de um lampião, e onde outrora se
sentou Lenora, para depois não sentar-se mais.
Pareceu-me então que o ar mais denso se
tornara, perfumado com incenso dum turíbulo, agitado por serafins que ao meu
quarto tinham vindo. Infeliz, exclamei, por seus anjos manda-te Deus paz e
alívio à dor que sofres com saudade de Lenora, aspira esta essência e esquece a
bela extinta! E o Corvo disse: “Nunca mais".
Profeta, disse eu, raio de maldição,
profeta sempre, sejas pássaro ou demônio, quer venhas do interno ou pela
tempestade para aqui trazido, mesmo assim embora triste ainda intrépido, nesta
casa pelo infortúnio açoitada, dize-me com franqueza, rogo-te, há balsamo em
Gileade? Dize-me, dize-me por caridade, e o Corvo respondeu: "Nunca
mais".
Profeta, insisti, raio de maldição,
profeta sempre, pássaro ou demônio, por este céu que nos cobre, pelo Deus que
ambos adoramos, dize a alma plena de desgostos se um dia lá no Éden, poderei
ver e abraçar a boa e amorosa criatura a quem anjos chamam Lenora? E Corvo
porém disse: " Nunca mais'.
Gritei levantando-me de pronto, regressa
à tempestade e aos negros lares de Plutão. Não deixes uma só pena, que lembre
aqui tua passagem, deixa-me na paz desta solidão, sai deste busto, desafoga-me
o peito e vai-te para longe. Anda, faze algum gesto, ou dize uma palavra de
adeus, e o Corvo disse: " Nunca mais”.
E o Corvo imoto sempre continuou firme
no branco busto de Palas, e seus olhos pareciam os de um demônio quando em
sonhos, e a luz do lampião de cheio, dando nele, espalhou-lhe a sombra pelo
chão e acima dela que ali ficou, minh'alma nunca, nunca se erguerá jamais.
Poderia me indicar a referência completa desta tradução. Foi em algum dos jornais em que Ribeiro do Couto colaborou?
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