Violação
---
CAPÍTULO 1
A triste
cena de bruteza humana que vou narrar passou-se em 1862, na epidemia do
cólera-morbo, em uma das vilas do litoral do Ceará.
Eu era bem
criança; tinha apenas nove anos, mas conservo estereotipado em mim tudo que vi
daquela medonha peste.
Meu pai era
o único médico do lugar quando se deu a invasão do mal. Havia meses que o
flagelo devastara os sertões da província, e de lá vinham as mais desoladoras
notícias. Tudo estava se acabando no interior, morria-se em poucas horas, dizia
a nova popular em seu costumado exagero, e assim se espalhava de tenda em
tenda, deixando em sua passagem o gérmen do desconforto a desenvolver-se e a
crescer!...
O espírito
das populações marinhas cada vez mais se abatia com os horrores que se contavam
da peste. Não se guardavam as devidas reservas sobre o progresso e intensidade
da epidemia. Os poderes públicos, não compreendendo a influência perniciosa de
semelhantes novas, as divulgavam abatendo assim mais o ânimo dos que iam
gozando as imunidades do contágio.
Era a
primeira vez que o mortífero filho do Ganges nos visitava; que a legião desses
infinitamente pequenos deixava a sua terra, para vir empestar a nossa tenda.
O pânico era
geral; numa mortificante tensão de espírito, como a do condenado que espera no
oratório que venham buscá-lo para o patíbulo, aguardávamos a visita da peste.
A posição
topográfica da localidade, longe de nos dar uma certa imunidade, pelo
contrário, favorecia a procriação dos micróbios do mal, pois que a vila estava
edificada num estreito vale, cercada de montanhas. O vento que é o veículo do
cólera, o deixaria ali, e o bacilo da peste se desenvolveria e mataria à
vontade.
E todos nós
nos preparávamos, não para resistir ao inimigo, pois não tinha armas a nossa ignorância,
mas para morrer. Não se tardaria a ouvir o gemido do primeiro pesteado.
Foi em dias
de janeiro que soubemos estar o inimigo a menos de dez léguas. O pânico foi
geral e indescritível.
A população
espavorida valeu-se do derradeiro recurso dos abandonados, e todos os dias lá
ia em grande romagem à pequena matriz, pedir a Deus que a livrasse da peste.
Lembro-me ainda, sentindo um frêmito nos nervos, daquele vozear de náufragos a
implorar a misericórdia do Céu. Rezavam, em vez de estabelecerem rigorosos
cordões sanitários.
Algumas
famílias abastadas fugiram para a capital, que se conservava em boas condições
sanitárias. Nós também podíamos nos ter retirado, mas o dever prendia meu pai à
localidade ameaçada, e ficamos.
O cólera
chegou, mas sem pródromos, sem casos isolados, atacando centenas de pessoas. A
confusão foi então horrível, e o pânico tudo avassalou. A população inteira
desvairou-se, como um bando de aves bravas que fosse alcançado à noite no
quieto pouso pela ofuscação do facho de astuto caçador.
A vila
contava cinco mil almas, e entre tanta gente não havia um espírito que não
estivesse sucumbido. As qualidades afetivas mesmo, se não haviam perecido
neles, pelo menos o terror do contágio as tinha anestesiado.
Os enfermos
foram abandonados, não só na choupana do desvalido, como na casa do abastado.
Ao primeiro brado de alarma todos fugiram espavoridos.
Evitavam os
primeiros pesteados pensando livrarem-se do mal, mas se iludiam e eram atacados
mesmo longe deles, porque todo o ambiente estava viciado; em cada molécula do
ar havia um átomo da peste.
Serenado um
pouco o estonteamento que lhes fechava o coração aos mais ternos afetos da
vida, voltaram ao lar, e muitos o encontraram vazio!... Nessa crise de
assombramento, de alucinação, foram grandes as angústias da população
flagelada. Para mitigar-lhes as agruras do infortúnio não tinham eles uma
carícia, a consolação de uma ternura. A paz da existência os havia abandonado
na hora angustiada daquele transe.
A peste
tinha nivelado todos e embotado a sensibilidade até no coração amorável das
mães!... Pelos tormentosos dias de nosso lar eu avaliava as aflições que iam
por toda a vila.
Meu pai,
falho de conhecimentos sobre a patogenia do cólera, quase nada podia fazer em
favor dos pesteados. Preso pelo dever à cabeceira dos enfermos, trabalhava dia
e noite; e se não lhes dava a saúde ao menos lhes restituía as esperanças
perdidas, levando-lhes o doce alento de uma consolação.
Poucos dias, entretanto, durou a imunidade do
médico e o conforto que sentiam os doentes com a presença dele. Caiu ferido,
mas ferido mortalmente. Havia chegado também para nós o dia das tribulações e
pagávamos à peste nosso tributo. Em um mesmo dia todos de nossa casa foram
acometidos da doença, à exceção de minha pessoa. Uma legião de micróbios
invadiu a nossa morada, e horas depois todos estavam derribados.
Embora a
minha idade, teve o meu espírito uma noção nítida do perigo em que estávamos.
Senti um desalento que me abateu todo, que me prostrou, consumindo toda a minha
energia.
Meu pai,
pressentindo o meu abatimento, exortou a minha coragem e, aproveitando-se da
influência que seu espírito tinha sobre o meu, insinuou-me a ideia do dever. Só
por um milagre de sugestão pôde o meu caráter, que ainda se estava formando,
submeter-se sem revolta, e aceitar as ideias aconselhadas.
Havia em
casa dez doentes, e eu era o enfermeiro de todos, o criado dos próprios
criados.
A minha luta
foi tremenda, e hoje é que compreendo quanto ela foi heroica.
Não foi a
remoção das dejeções, dos vômitos, a limpeza dos aposentos e dos leitos, o
serviço da cozinha o que mais me desalentou durante esse período de provações,
porém o enterramento de minha irmã.
A pequenina
havia nascido vigorosa, mas pesteada. Meu pai, na impossibilidade de ir ao
quarto de minha mãe, pediu-me que lhe levasse a recém-nascida. Minhas mãos,
pouco afeitas a tão delicado fardo de arminho, o conduziram com grande cuidado
e carícias. Meu pai fitou a pequenina criatura e voltou o rosto para que eu não
visse as lágrimas que lhe assomaram aos olhos. Chorava com a certeza de que não
a veria mais, porque ela ia morrer, e mal sabia ele que de todos nós seria a
única feliz, porque se acabava sem conhecer a morte, sem a mínima noção da
vida.
Entregou-me
a pequenina, que conduzi; e ele a acompanhou com a vista, dizendo-lhe com toda
a ternura de seu olhar de pai, o último, o derradeiro adeus, até que me encobri
no corredor.
Vinte e
quatro horas somente esteve neste mundo a criança a quem um vizinho que a veio
batizar chamou de Maria.
A moléstia
havia desfeito, em sua curta duração, todos os músculos do pequeno ser. Havia
apenas no berço um esqueletinho vestido de pele, cor de cera branca, com os
olhos abertos, num olhar morto de estátua.
Meu pai,
sabendo do óbito, ordenou-me que conduzisse o cadáver ao cemitério. Aquela
ordem traspassou-me todo. Onde encontraria coragem para carregar um defunto,
eu, que tinha medo das almas, mesmo das almas dos meninos!... Chorando, fiz-lhe
ver a minha covardia. Era bem justa a minha recusa, e tão justa que ele a aceitou
e mandou-me que fosse chamar o batizante de minha irmã.
Grande foi o
meu contentamento, e maior depois o meu desgosto, quando, chegando à casa do
vizinho, soube que ele havia morrido do cólera quando voltou do batizado.
Semelhante nova abalou-me todo, arrancou-me trepidações de todos os nervos;
agora não era somente a alma da pequenina mas também a do vizinho que me fazia
medo.
Meu pai
recebeu a notícia mostrando grande ânimo, e, sem demonstrar perturbação,
ordenou-me que conduzisse o cadáver ao cemitério. As palavras da ordem,
vibrantes de autoridade e de energia, entraram-me no cérebro como pontas de
estilete em brasa.
Queixei-me
de doente; e na verdade eu ardia em febre. Entreguei o pulso ao médico, que o
examinou e, antes de proferir nova sentença, ergueu-se do leito, quis caminhar
e não pôde.
— Queria ir
em teu lugar; vês? não posso andar!... vai.
Esta cena
partiu-me de mágoa; e hoje é que avalio a sublimidade dela. Em minha alma de
afetivo só vibravam então as palavras de meu pai e meus olhos viam-no, mas
trôpego, doente, querendo ir enterrar a filha e sem poder.
Decidi-me a
cumprir a ordem com o sacrifício de todos os meus escrúpulos, de todos os meus
temores. Abeirei-me do berço para tirar o cadáver e colocá-lo no esquife, uma
caixa de papelão na qual minha mãe guardava costuras; mas quando minha vista
caiu sobre o rosto do anjinho, e descobriu o seu olhar morto, estagnado,
fitando-se em minhas pupilas, não sei como não me acabei de medo. Tive desejos
de abandonar a casa, deixando os meus na mais penosa situação; e o teria feito,
confesso, porque aquele cálice por demais amargo para os meus anos, se a figura
de meu pai, trôpega, vacilante, procurando embalde caminhar para sepultar a
filha, não tivesse ficado dentro de mim para sugerir-me, com todo o seu poder
de força espiritual, aquele grande sacrifício.
Depois de
algumas investidas, consegui agarrar o cadáver e depositá-lo no esquife. O
corpo já estava gélido. A frieza dele, atravessando o cueiro e a camisinha, me
transiu as mãos e senti por aquela algidez de carne morta uma repugnância que
me arrepiou de medo e nojo.
Estava na
base do meu penoso Calvário e tinha de subi-lo até o vértice, e lá deixar o
fardo que a amizade e o dever me haviam posto aos ombros.
O meu
espírito teve sempre uma penetração admirável e por este aspecto de sua
psicologia pode-se avaliar de sua agudeza e também de suas agonias.
Disposto a
fazer o enterramento de minha irmã, fui às ambulâncias, que eram em nossa casa,
para fazer em meu corpo uma fricção de álcool e cânfora e livrar-me do
contágio. Cifravam-se nisso os desinfetantes e os meios profiláticos que tinham
os nossos conhecimentos naquela época.
Antes de
sair com o cadáver, minha mãe chamou-me e pediu-me que lhe levasse o esquife.
Obedeci, e ela, coitada, mal teve forças de soerguer-se do leito e deixar o
derradeiro beijo do seu amor no frio rosto da filha morta. O que muito me
impressionou nesta cena não foi a ternura dela, mas a coragem de minha mãe,
beijando um cadáver. Sem ânimo para mais, acenou-me que me fosse; e saí conduzindo
o esquife.
Lá fora as
ruas eram desertas, e o sol descendo verticalmente sobre a vila inundava-a de
uma claridade que doía nos olhos. Ainda bem que havia muita luz, e por algumas
horas ainda; mas nem um vivente que me acompanhasse naquele esquisito caminho.
Ninguém tinha mortos a enterrar? Seria possível?... pensava, caminhando com
grande pressa. O cemitério ficava a um quilômetro de nossa casa, do outro lado
do rio.
À medida que
me aproximava da morada da morte sentia um pavor que me atordoava. Fui
caminhando quase automaticamente até que, depois de galgar uma eminência,
descortinei o lugar dos enterramentos em campo raso, a duzentos metros.
Estaquei. Era chegado o instante mais angustioso daquela desesperada provação.
Animava-me a
esperança de encontrar alguém sepultando os mortos, e esta esperança que me
dava algum alento se desvaneceu de todo quando o cemitério caiu-me inteiro
debaixo dos olhos. Ninguém vivo estava ali!... Tulhas de cadáveres se
espalhavam de chão afora, uns já podres, apodrecendo outros. As pernas se me
bambearam e naquele meu abandono, instintivamente, bradei por meu pai; mas num
grito medonho de quem está assombrado. O meu angustiado apelo, agudo e intenso
que me estonteou com as suas primeiras vibrações, foi esmorecendo de onda em
onda até que se perdeu de todo e ninguém apareceu para me socorrer. Caí então
em mim; lembrei-me que meu pai, por quem havia chamado com a maior confiança,
havia deixado enfermo e quem sabe se já não tinha morrido!... Senti-me cada vez
mais abandonado e chorei, porém lágrimas tão sinceras e sentidas como ainda
ninguém as chorou talvez.
Naquele meu
acabamento moral tive uma ideia sugerida pelo pânico que me abocanhava inteiro
o espírito. Esta ideia, que se gerou entre os pensamentos atribuladores que me
enchiam a cabeça e começou por um simples desejo, transformou-se-me em breve na
mais palpitante necessidade. Dominado por ela ia sufocar em mim todos os
sentimentos afetuosos tão prodigamente alimentados pelas carícias de meu
amoroso coração. O medo havia dissolvido em minha alma os seus mais puros e
queridos afetos. Em começo deste transe o meu espírito ainda não estava de todo
embotado, e tanto assim que bastou uma imagem ideal, a sombra de um ente
querido, para reviverem nele os deveres da amizade. Agora não mais viviam essas
visões amadas!... A figura de meu pai procurando embalde caminhar para sepultar
a filha e o derradeiro beijo de minha mãe, resumindo em tão curta carícia um
mundo de afetos e de dores, já não me comoviam. O meu ser já não se pertencia,
não tinha afeições; era um autômato que o pânico subjugava e dirigia. Assim,
violentando toda a minha piedade de afetivo, sacrificando tudo que de sensível
existia em mim àquele egoísmo feroz, pensei em atirar o cadáver de minha irmã
dentro de uma moita, que me ficava ao lado, e depois correr até em casa.
Ia fazer
isso quando ouvi passos que se alternavam com o lúgubre ranger da padiola, que
conduzia à vala os cadáveres dos coléricos. Aquele ruído seco de madeira nova a
se esfregar ouvia eu há uma dezena de dias, a todos os instantes, de noite
mesmo. E a padiola ia e vinha, sempre rangendo lugubremente, cantando a
tristonha melopeia da morte, e eu a ouvia aterrado porque o seu ruído me trazia
a ideia dos defuntos.
O veículo
passou gemendo; eu acompanhei-o. Quatro homens o carregavam. Estava menos
assombrado e procurei ver se os conhecia. Olhei-os com atenção e todas as suas
cataduras me eram estranhas. A figura de um deles, um cabra de bigodes
retorcidos e cabelos crespos caídos na testa, me causou tão má impressão que
ainda hoje conservo na memória as feições de sua carantonha. Vinham todos eles
embriagados. Caminhavam aos tombos, mal equilibrados, e, as passadas em falso,
traziam a padiola numa incessante sacudidela, e faziam mais intenso o seu lúgubre
e áspero ranger. Encontrada que foi a primeira tulha de cadáveres, pararam e
virando o raso esquife sacudiram fora o defunto, que caiu teso a uma grande
distância.
A
barbaridade da inumação deixou-me aterrado, e mais aterrado ainda fiquei quando
verifiquei que o corpo que assim tratavam era o do batizante de Maria.
Os homens da
padiola, despejado que foi o defunto, deram de marcha para a vila, e eu os
acompanhei, depois de ter deixado sobre uma pilha de mortos o cadáver de minha
irmã.
CAPÍTULO 2
As ruas
continuavam desertas, e o silêncio delas só era quebrado pelo cantar agoureiro
do veículo da morte ou pelo ritmo agudo dos gemidos dos pesteados. E havia
tanta luz no céu e tanta beleza mesmo em seu azul-claro, uma cúpula tão bonita
mas para se arquear sobre um pedaço de mundo de risos e flores e não sobre um
hospital de coléricos!...
A
transparência do espaço, pura como a de um cristal de rocha, não a fendia a asa
de uma ave ou mesmo de uma borboleta! Todos os voláteis haviam emigrado,
deixando aquele meio, porque obedeciam cegamente ao instinto de conservação,
mais do que nós, que ficamos esperando a peste e a morte com toda a casta de
atribulações.
Até os
urubus haviam fugido, deixando o abundante repasto do cemitério entregue
somente à fome da larva. Pousados nos altos piroás da serra viam de lá as
tulhas de podres trapos humanos e o seu apurado faro, sentindo-lhes o cheiro,
os cortava de gula mas crocitavam eles apenas e ficavam; não desejavam a vila.
O diáfano
ambiente, que tão inofensivo parecia, estava empestado. Para que as aves o
evitassem, o abandonassem, não foi preciso mais do que a morte de algumas,
fulminadas quando o fendiam em sereno voo. Sabiam mais do que nós, eram mais
sensatas, porque fugiam do perigo, e nós o procurávamos.
Rara era a
tarde, ao toque das ave-marias, que os morcegos, ao saírem das tocas, antes
mesmo de muitas evoluções no ar, não caíssem mortos às dezenas, repentinamente,
como varados por balas.
A mortandade
crescia na razão direta do empestamento do ambiente.
Aos pesteados
não faltaram os favores da assistência pública. Quase de coisa alguma,
entretanto, serviram eles. Meu pai foi substituído, mas o médico que o veio
render mal teve tempo de fazer uma única visita aos enfermos: — morreu de
cólera fulminante. Este fato acabou de aterrar a população. Todos podiam ser
atacados pela epidemia, morrer mesmo, mas o médico, não, pensavam, porque o
criam invulnerável.
A peste
havia recrudescido, não por faltar a medicina, não por terem crescido os
germens do mal, mas porque o pânico havia tornado mais aptos os organismos ao
contágio, ao desenvolvimento dos micróbios da peste.
A epidemia
tinha chegado ao seu maior grau de intensidade. Poucos eram os refratários e
entre estes estava eu, graças à acidez de meu estômago de glutão, sei hoje.
O obituário
havia crescido de um modo assombroso, tanto que a cifra dos falecimentos subiu
a setenta em um dia.
Nessa
terrível colisão estávamos quando nos chegou um sacerdote de outro bispado. Era
ele o padre Galindo, homem novo ainda, moreno, alto, magro e direito como uma
régua. Deviam ter sido bastante desagradáveis as impressões que ele recebeu
quando viu a desolação dos moradores, a qual imprimia à vila um cunho
particular de tristeza, de acabamento.
Nada mais
lúgubre do que a perspectiva de um lugar atacado de peste. Depois que vi os
horrores da varíola em 1878 em Fortaleza, cujos óbitos subiam a mais de mil
diariamente, é que avalio da fisionomia da minha pobre aldeia, edificada em um
buraco, cercada de montanhas.
A impressão
que o padre recebeu foi tão intensa e tanto o comoveu que, apeando-se da
cavalgadura, foi direito à matriz. O Sol não tardava a esconder-se por trás do
mais alto cabeço da serra, porém ainda longe estava a hora de trindades, quando
o sino grande soou com toda sua monotonia de dobre, chamando os fiéis à prece.
O som grave
do bronze ecoou mais intenso do que nos outros dias e, como um gemido rouco e
fundo, foi se espalhando pela vila até que se perdeu de todo nas covoadas da
montanha. Ah como me apavorava aquele soluçar do sino! Ele me trazia a ideia
dos defuntos dos quais eu tinha tanto medo.
O sacerdote
teve, pelo aspecto da vila, uma noção verdadeira da intensidade do flagelo.
Crendo na misericórdia de Deus e em sua influência sobre o destino humano,
corria pressuroso ao templo e o sino badalava convidando os fiéis à oração.
De todas as
habitações saíram em piedosa romaria os que podiam caminhar. Em breve a pequena
igreja regurgitou de gente.
O padre,
cheio de abnegação e caridade, porém sem a mínima noção de higiene pública em
tempo de epidemia, reunia ali a população para ouvir a palavra de Deus e assim
aplacar a cólera do Céu. Benfazejo era o seu intento, e ele, com a alma ungida
do amor do próximo, não tinha consciência do mal que fazia àqueles infelizes,
aglomerando-os em não saneado recinto e ainda mais abatendo-lhes o ânimo com
aquelas cenas deprimentes.
Os
exercícios religiosos constavam de prédica e de orações cantadas. Por
infelicidade minha, nossa casa ficava na praça onde estava edificada a igreja e
para que aquelas práticas mais perniciosas fossem, começavam à hora das
trindades, tempo propício ao contágio, hora deprimente, mesmo para os que são
felizes, quanto mais para os desgraçados.
Depois do
sermão, que constava sempre da enumeração das penas eternas, com um exagero
dantesco, vinha o Ofício de Nossa Senhora, cantado por centenas de vozes de
todas as alturas e timbres, com os falsetes do medo, e terminando-se pela —
Senhor Deus misericórdia — súplica feita num ritmo pavoroso, por si só mais
aterradora do que a mais tenebrosa ideia dos castigos do Inferno!...
Ainda hoje
conservo nos sentidos o vozear roufenho das devotas acompanhando a voz cheia do
padre. Quantas vezes não corri para o fundo da casa, fechando os ouvidos com a
mão para não ouvir a pavorosa melopeia dos fiéis! E lá mesmo ia ter o som, de
que eu fugia amedrontado, a alternar-se com o ranger da padiola, sugerindo em
mim ideias que me mortificavam porque todas elas se prendiam à morte. Deixava
então o meu asilo e vinha para o quarto de meu pai, onde me julgava livre das
almas, embora mais perto da igreja.
O padre era
um crente, era um abnegado. Desde que entrou na vila, não descansou mais. De
dia confessava os moribundos e enterrava os mortos e à noite fazia preces e
acendia fogos nas ruas para desinfetar a atmosfera.
Não estava
parado nunca; por toda parte aparecia a sua figura magra, a sair dos mais
infectos aposentos.
Por mais que
se expusesse ao contágio o mal o respeitava. A sua imunidade começava a
impressionar o povo que, mais por ela, que era um fato extraordinário, mas não
sobrenatural, do que pelos seus atos de caridade, o acreditava santo. E grande
santo é quem somente pelo amor de Deus cuida dos enfermos e enterra os mortos.
O padre
Galindo não temia a peste e nem tampouco a morte. O seu heroísmo e a sua
abnegação, se eram uma doença de seus nervos, abençoada nevrose que alimenta
tão puras e salutares virtudes cristãs. Quando lhe disseram que os cadáveres
apodreciam em cima da terra por não haver quem os sepultasse, não se limitou a
exortar do púlpito os fiéis àquela obra de misericórdia, foi ele próprio ao
cemitério, abriu a vala com as próprias mãos e enterrou os mortos. Este seu
grande exemplo de coragem e de piedade serviu tanto, foi tão edificante, que
desde aquele dia não ficaram mais apodrecendo sobre a terra os corpos dos
pesteados, embora repetidos fossem os casos de cólera fulminante na ocasião dos
enterramentos.
No período
mais agudo da peste foram enviados de Fortaleza doze sentenciados às galés
perpétuas para o serviço das inumações. Todos estes criminosos morreram
fulminados nos três primeiros dias de sua chegada, à exceção de dois que
desgraçadamente viveram mais alguns dias para morrerem como os companheiros,
porém depois de cometerem o mais nefando e abominável crime de bruteza humana.
Contavam-se coisas horríveis destes dois monstros. As suas histórias eram tão
medonhas que os meninos não podiam ouvi-las e por isso não se me as referiam.
Meses depois
de acabada a epidemia, meu pai conversava com um homem muito nosso amigo sobre
os horrores da peste, quando me aproximei deles ansioso pela narrativa. A minha
presença fê-los calar, mas notei que ambos tinham as feições demudadas e mais
ainda o estranho, cujo rosto estava numa crispação medonha.
Afastei-me,
e, logo que me pus longe, o homem continuou a falar quase ao ouvido de meu pai,
gesticulando, irritado, ameaçador, todo ele numa crise de ódio, de desespero.
Supus que o narrador estivesse para endoidecer e mais receios tive disso quando
o seu desvairamento terminou-se num dilúvio de lágrimas.
Aquela
história devia ser muito dolorosa, pensei, e não poder ouvi-la, eu que tanto
gostava de ouvir episódios dantescos!
Quando o
visitante saiu, me aproximei de meu pai e perguntei-lhe por que tanto chorava
aquele pobre homem, isto na esperança dele contar-me o que tinha ouvido.
— Não —
disse-me ele —, quando fores homem, pede-lhe que te conte a sua triste
história.
Dois anos
depois do cólera, morria meu pai de uma moléstia, que sei hoje ser o beribéri,
e que aparecia pela primeira vez no Ceará. Em consequência deste desastre fomos
obrigados a nos mudar para Fortaleza, onde eu devia entrar para o Ateneu
Cearense, o primeiro e único colégio que havia naquele tempo. Deixei a nossa
vila, sem sentir saudades dela: não chorei vendo ficarem os lugares de minha
infância. Meu espírito almejava outro meio, porque naquele em que vivia tudo
lhe falava mais ou menos da peste e dos horrores dela. O ranger da padiola e o
«Senhor Deus, misericórdia» ainda me soavam aos ouvidos quase tão aterradores
como no tempo da epidemia. Por muitos anos ainda, quando eu tinha um sonho mau,
um pesadelo, eram eles episódios da cólera. Aquelas cenas haviam ficado
gravadas dentro de mim talvez para sempre. Com o andar do tempo modificou-se a
minha psicose, ficando-me, entretanto, dentro do cérebro, as mesmas imagens,
porém, menos nítidas, meio apagadas.
CAPÍTULO 3
Os anos
passaram, mais de vinte, talvez, quando voltei à minha antiga vila, cidade
hoje. Como a achei mudada!... Só a natureza era a mesma com as suas montanhas
azuis e os seus regatos cristalinos e cantantes. A casaria havia aumentado e
melhorado de arquitetura. Em algumas já se viam os serpentões nas cornijas tão
em moda na capital, os quais a primeira intendência republicana em Fortaleza
encurtou e acabou por aboli-los, como se aquelas falsas hidras fossem
contrárias ou maquinassem contra o regime democrata.
A matriz
tinha sido reedificada com maiores acomodações. Lá fui visitar o meu antigo
padroeiro e advogado da peste, São Sebastião: era o mesmo; nada o tempo tinha
alterado nele, lá estavam a mesma laranjeira verde e o vivo sangue a lhe
gotejar do lado. Olhei-o com afeto, como um amigo que se vê depois de
prolongada ausência, e ele me fitou, como costumava fitar os que o olhavam,
lançou-me o seu olhar morto de imagem. Senti, vendo o santo, um vazio na alma
que havia deixado a fé da infância. Quantas saudades tive então das minhas
crenças, daquele tempo em que, com toda a inocência de minha idade, com todo o
meu coração de simples e com um fervor que já não existe, me prostrava e pedia
a São Sebastião para livrar da peste a mim e aos meus, prometendo-lhe uma vela
de cera branca. Como era inocente e feliz, muito mais feliz do que sou hoje,
que não tenho medo das almas! E no entanto eu amava o santo, respeitava o
mártir e me alegrava vendo-o.
Saí da
igreja e a imagem foi acompanhando-me com a vista até que me encobri no adro.
Era a hora das ave-marias e o sino tocava trindades. Descobri-me, perfilei-me e
intencionalmente caíram os meus olhos sobre a nossa antiga casa. Todas as cenas
do passado viveram então em mim, e a figura do meu pai, em todo o vigor de sua
mocidade, viram os meus sentidos. Parecia-me realmente vê-lo, como o via todos
os dias àquela hora, descoberto, de pé à primeira badalada do sino, a rezar «O
anjo do Senhor», tendo ao lado uma criança que também rezava de mãos postas. E
era eu a criança que vinte anos depois, homem e quase desiludido, aquela visão
com sua misteriosa força espiritual fazia orar a hora das trindades!...
Ninguém me
conheceu na cidade!... Passei no meio de sua população como um desconhecido. E
quem me podia reconhecer? Os meninos de meu tempo estavam também homens e eram
outros os seus rostos e o seu talhe. Comecei a me sentir mal entre aquela
gente. Todos me olhavam com curiosidade. Poucos eram os que havia deixado
homens e reconhecia: mas me conservava incógnito. Não sei por que tinha o
coração fechado. Não era a perspectiva do lugar, então alegre pela paz e
prosperidade de seus habitantes, que me entristecia, mas um não sei quê de
melancólico me amofinava o espírito.
Entre toda
aquela gente uma figura me arrancou um pouco ao meu desalento e me fez sentir
uma vaga saudade dos dias da infância. Foi ela a preta Rita, vendedora de doces
e que tantos anos depois me aparecia, já velha, mas forte ainda, com o seu
tabuleiro à cabeça, coberto com uma toalha de rendas sempre branca e engomada.
Vivi por alguns instantes a minha vida de menino, saboreando os doces que
guloso comia e que me fizeram dispéptico por toda vida. A velha passou, olhou-me,
mas não reconheceu o seu antigo freguês.
E assim
passei na cidade, sempre triste, e a teria deixado incógnito se no dia de minha
partida não tivesse encontrado à porta de uma de suas melhores casas um homem
que reconheci logo à primeira vista ser o que tinha, chorando, narrado a meu
pai a sua triste história. Não o havia esquecido nunca; fora mesmo da
província, me lembrava dele e quando contava aos companheiros de estudos os
horrores do cólera prometia-lhes procurá-lo e lhe escrever a história.
Olhei com
atenção: eram as mesmas feições, porém bastante amarrotadas pelo tempo e pelos
sofrimentos. Os seus cabelos estavam todos brancos. Era sem dúvida o desgosto a
causa de sua velhice prematura.
Saudei-o, e
ele sem ligar importância à minha pessoa retribuiu friamente o meu cumprimento.
O meu amor-próprio, de uma sensibilidade extravagante, quis molestar-se com a
falta de cortesia, e talvez continuasse o meu caminho se as palavras de meu pai
— quando fores homem pede-lhe que te conte a sua triste história — não tivesse
ouvido naquele momento tão claramente como quando foram proferidas.
Aproximei-me
do velho, que, sem levantar a vista do chão, esperou que lhe dissesse o que
queria dele.
Vendo que
não se dignava olhar-me disse-lhe:
— Faz vinte
anos que o vi. Eu era muito criança ainda, mas me lembro de sua aflição e de
suas lágrimas. Contava o senhor uma história ao médico deste lugar, que era meu
pai, e essa história devia ser bastante dolorosa e bastante horrível porque ele
não ma quis repetir. Vejo quanto tem padecido, de quanto é capaz o sofrimento!
Deixei-o moço e o encontro velho!... Não foi a idade, estou certo, que lhe
branqueou os cabelos, que lhe abriu nas faces estes profundos sulcos, que lhe
apagou quase a luz dos olhos e o brilho deles, deixando-os estagnados diante de
uma imagem que não se separa de sua lembrança, que vive dentro de sua cabeça. É
a história dessa visão, que durante vinte anos lhe tem gasto as energias do
espírito, lhe tem morto todos os desejos da carne, lhe tem consumido todas as
esperanças do coração, que desejo conhecer. Quando o senhor contou-a a meu pai,
pedi-lhe que ma repetisse e ele negou-se, dizendo-me que, quando eu fosse
homem, o senhor ma contaria. Estou na idade de ouvi-lo e espero que não deixará
de satisfazer a minha curiosidade.
O velho
levantou a vista e olhou-me com um olhar doentio, com um olhar de ovelha.
Queria talvez encontrar em minha fisionomia a identidade de minha pessoa. Não
podendo pelo meu rosto reconhecer-me começou a sua narrativa, falando do médico
da antiga vila, mas de um modo tão lisonjeiro que me encheu de contentamento.
Os seus conceitos eram sinceros, porque eram de um homem sem ódios e sem
aspirações, que era vivo mas que se julgava morto havia mais de vinte anos.
Vivendo por uma fatalidade dentro do próprio cadáver, indiferente como um
extinto ao Bem e ao Mal, só podia ser a sua linguagem a da verdade e por isso
me orgulhava de ouvi-lo concretizar as suas ideias em belíssimas imagens sobre
a caridade de meu pai. Falava sem emocionar-se e sem dar mostras que percebia a
comoção que me causavam as suas palavras. Feito o exórdio, entrou na narrativa.
Pensei que ele se transfigurasse, mas iludi-me; continuou sereno, e com firme
entonação de voz me relatou as páginas que se vão ouvir.
CAPÍTULO 4
Eu tinha
vinte anos, era terceiranista de Direito e estava passando aqui as férias com
minha família, quando apareceu o cólera-morbo. Ao primeiro grito de alarma a
população ficou aterrada, como se ela fosse um rebanho de carneiros cercado por
uma manada de lobos. Fortes foram os que evitaram o contágio retirando-se da
vila. Fiquei porque minha mãe, que já não tinha marido, e de quem eu era o
único filho, não quis sair. Ela, coitada, acreditava, como a maioria dos
ignorantes fanáticos, ser a peste uma manifestação da cólera de Deus, um
castigo de nossos crimes e que devíamos recebê-lo de cabeça baixa e não
procurarmos fugir dele. Eu absolutamente não comungava das ideias de minha mãe
e tanto que, conhecendo a gravidade da situação, lhe pedi por tudo para abandonarmos
a vila. Obstinada como todo obcecado, não a demoveram os meus rogos e ficamos
esperando estupidamente o castigo do Céu. Ela ainda era crente, ainda rezava,
pedia e confiava na misericórdia de Deus, e eu nem isso fazia, porque se a
peste fosse um agente de destruição, mas obra da Divindade, não mataria os
pequeninos, os inocentes, e via todos os dias essas pequenas vítimas irem para
o cemitério. Um dia mostrei à minha mãe a padiola cheia de cadáveres de
crianças, e ela, achando o fato muito natural, me disse que Deus castigava os
pais matando os filhos. Por mais absurdo que a mim parecesse esse modo cruel de
castigar, nada lhe disse, e para quê? Ela estava completamente convencida dessa
inverdade.
A peste
tomava dia a dia maiores proporções. Pela manhã ninguém podia afirmar, estando
mesmo de perfeita saúde, se seria vivo à noite. Se seu pai vivesse podia
confirmar o que lhe estou dizendo. Eu temia a peste, não tanto por mim e minha
mãe, porém por minha noiva. Amava uma linda moça de quinze anos, filha de um
vizinho nosso. Havia dois meses que tínhamos feito os nossos esponsais, e nos
casaríamos dentro de um ano. Se não tivesse morrido para sempre em mim a
linguagem afetuosa dos amantes, lhe contaria o nosso idílio. Quantas ilusões me
nasciam das carícias dela e como era esperançoso o nosso viver!
A peste
crescia, e todos os dias eu ia, logo ao alvorecer, pedir novas de minha noiva.
Alguém me dizia que a cólera a mataria; mas este alguém era invisível — apenas
sua voz soava-me nos recessos d’alma. Uma manhã, quando eu voltava daquela
obrigação imposta pelo meu amor, me senti mal. Um quebranto esmorecia-me todo,
empurrando-me para o leito. Estava pesteado, conheci, e me apavorei, não ante à
ideia da morte, mas ante a certeza terrível de deixar a minha amada para
sempre.
O mal
evoluía em mim com incrível rapidez. Começou por náuseas, que logo se
transformaram em vômitos, mas em vômitos que não paravam. Vieram as dejeções e
com a mesma frequência mais de trinta por hora. Estava desmanchando-me em água;
o que saía de mim era somente líquido. Em poucas horas a moléstia tinha me
dissolvido toda a carne do corpo, só deixando a pele e os ossos! A minha figura
devia estar hedionda, repelente, e no entanto, ela, que me servia de
enfermeira, que viera pôr-se ao meu lado, logo que soubera estar eu pesteado,
não procurava evitar-me as feições, não mostrava nojo de mim. E eu devia estar
nojento, como um esqueleto sujo. Ao passo que a carne me desaparecia do corpo,
o espírito tornava-se mais lúcido, mais claro o meu entendimento.
A abnegação
dela, assistindo a todas as fases do mal que ia me consumindo e ia, aos pulos,
me roubando dela, bastante me comovia. Que delicada enfermeira! Eu não tinha
mais lábios para dar direção ao vômito que me saía por toda a abertura da boca,
e quantas vezes, por isso, aquela aguadilha infecta e morna não lavou as mãos
dela, o rosto mesmo!... Só o amor é capaz desses milagres de dedicação; só a
mulher tem desses rasgos de heroísmo.
Sentia que
estava acabando-me e maldizia a tirania da doença em conservar a luz da razão.
A carne já estava quase toda consumida e cada vez mais se aguçava a minha
sensibilidade moral, mais delicado se fazia o meu sensório.
A luta de
morte em que se batiam o meu corpo e o mal não podia durar sempre.
Aproximava-se o termo do terrível duelo. Eu não tinha mais carne, e no entanto
ainda tinha nervos para sentir a miséria de minha animalidade sujeita às
tristes contingências da vida.
Uma febre
horrível me abrasava as entranhas, e eu pedia à minha enfermeira, por Deus, pelo
nosso amor, uma gota d’água, uma somente, para me refrescar a língua, que se
crestava como uma folha de feto que caísse no borralho de uma forja. Ela me
olhava com seus grandes olhos pretos, nadando em lágrimas e me recusava o
líquido, dizendo que me faria mal. Quanto lhe devia custar a prática daquela
estúpida prescrição, um dos preceitos mais recomendados pela medicina daquela
época aos doentes de cólera!... Não podia conformar-me com a sua crueldade e
para comovê-la como se o seu coração não fosse um cofre de piedade, de afetos,
pus as minhas mãos de esqueleto em súplice postura, olhei-a de dentro de minhas
fundas órbitas de caveira e lhe pedi por tudo uma gota d’água, uma somente,
para me refrescar a língua.
Ela não
resistiu à súplica; e mais comovida talvez com o atentado que ia cometer contra
a minha saúde do que com as torturas que me impunha a sede, se aproximou de mim
trazendo na extremidade do seu dedo mimoso um pingo d’água.
Estirei a
língua, e naquele trapo, semelhante a couro curtido, caiu a gota, que se
embebeu subitamente, como o orvalho da noite nos secos areais dos desertos.
Aquela
frescura durou um instante, mas depois senti outras gotas, que me caíam na
boca, mornas, salgadas; eram as bagas de seu pranto e que bebi sedento.
Sentia que
estava me acabando, que meu corpo não tardaria a cair em terra para a
derradeira decomposição que os vermes começariam, mas que pobre seria o repasto
que em mim deixaria a peste para lhes saciar a gula. Tênue era o fio da vida a
se partir a cada instante.
Estava quase
morto e, no entanto, viviam os meus sentidos como nos melhores tempos de saúde.
A minha sensibilidade moral não se embotava e nem tampouco languescia a minha
percepção. Haveria em mim alguma coisa mais do que a peste dissolvia e
eliminava do meu corpo? Existia, sim, porque minha carne estava reduzida a
menos de um terço e não diminuía o meu entendimento. Havia uma força imaterial
que a peste respeitava, que não era atacada pelos micróbios do mal. Sentia
perfeitamente a existência dessa entidade sutil dentro de mim.
Minha
enfermeira, profundamente abalada por essa derradeira cena, afastou-se, e
continuei com a língua estendida, esperando uma gota mais para me aliviar a
sede. Esperei, mas embalde; ela não voltou! Fiquei só, e quanto me custou esse
desamparo?! Eu era quase um cadáver, porém com a sensibilidade de um homem são
e afetivo. O mal progredia em mim e eu tinha consciência disso. A algidez que
me gelava a pele era tão intensa que eu sentia o ambiente morno. E ela me havia
abandonado na hora suprema, no momento em que eu ia morrer!... Ah como fui
injusto em meu egoísmo de amante desprezado!... Uma luta terrível travou-se
então em mim — a de meu amor-próprio ultrajado com o desejo ardente de chamá-la
a meu lado, desejo que nascia do temor que me fazia aquele desamparo. E venceu
o instinto da conservação — quis chamá-la mas não pude; já não tinha voz, a
palavra morreu-me no fundo da garganta e não foi articulada. Uma série de
cãibras, que torciam os músculos de todo o corpo num doloroso espasmo, começou;
era chegada a última agonia daquele transe, pensei. Apavorei-me de todo; quis
gritar por ela e não pude. Deste derradeiro esforço no qual gastei a última
parcela de minha energia, se é que em mim ainda havia esta força, gerou-se uma
cãibra mais forte que me chegando ao coração o estrangulou em repetidos
espasmos. Perdi os sentidos; morri para os que minutos depois me vieram ver.
Seriam seis
horas da tarde quando tornei à vida, duas horas depois de minha suposta morte.
Acordei precisamente no momento em que dois carregadores de defuntos me
atiravam dentro da padiola. Nunca mais esquecerei os primeiros instantes de
minha ressurreição. Bastaram poucos segundos para que eu me relacionasse com o
meio e para que se gerasse dentro de mim a dolorosa ideia de meu enterramento!
Ia ser enterrado vivo e já sentia o peso da terra me esmagando o corpo e me
afogando o vazio da cova. Sensação mais angustiosa poucos terão sentido, ainda
os mais desgraçados na dolorosa peregrinação por este vale de lágrimas. Fiquei
completamente aniquilado. Antes, porém, de se submeterem à vontade dos que me
iam enterrar, revoltaram-se todas as minhas fibras sensitivas, mas de nada
serviu a sua revolta, elas ordenavam, porém não eram obedecidas, nem um músculo
se mexia para satisfazê-las.
Quis acenar
para os carregadores e não pude!...
Quis ao
menos pôr nas linhas de meu rosto um traço que denotasse que eu vivia, um ar de
vida finalmente, e a pele, que me engelhava como amarrotado pergaminho sobre a
caveira, se conservava imóvel, como de pedra, e com o mesmo aspecto terroso e
mortuário.
Tentei falar
com os olhos, com os quais eu tantas vezes tinha dito a ela o que se me passava
n’alma, mas eles não podiam falar, estavam semiapagados dentro de suas fundas
covas.
Hirto,
imóvel, gelado, quem não me julgaria morto? E eu estava vivo, sabia que me iam
enterrar e não podia evitar aquele terrível desastre.
Os
carregadores deixaram-me na padiola e entraram.
O Sol já se
tinha escondido de todo por trás da montanha, mas a vila saiu da sombra da
serra iluminada pela Lua, que quase em plenilúnio mostrava o seu disco luminoso
muito acima do horizonte.
Os
carregadores voltaram trazendo um corpo que atiraram sobre o meu. Recebi em
cheio o choque do cadáver, que me sacudiam em cima com o maior desrespeito e
que se estirou ao longo do meu corpo ficando unido o seu rosto ao meu.
A ideia
deste íntimo convívio com um morto arrepiava-me de repugnância. Eu estava
álgido, mas o meu companheiro ainda era mais frio do que eu; a friagem de suas
faces me transia a pele do rosto até a caveira. Se pudesse mover-me teria
evitado aquele contato, mas não tinha forças para estirar ou encolher um
músculo.
Resignado
estava a suportar a companhia do defunto até o cemitério ou mesmo até a vala,
quando a luz da Lua, caindo em cheio sobre os nossos rostos, fez com que
reconhecesse o morto. Era ela com toda a sua carne e toda a sua formosura que
se unia a mim naquele derradeiro abraço à beira da sepultura. Comecei a sentir
que não estava tão só e tão desamparado. E bem podia ser que ela não estivesse
morta, que estivesse como eu. Esta esperança de salvação durou somente enquanto
a padiola descansou; logo que a puseram em movimento, que começou a ranger, que
as suas sacudidelas trouxeram os nossos corpos em um constante atrito, me julguei
perdido. Se ela não estava morta, morreria afogada debaixo do chão; igual sorte
também seria a minha. Como devia ser horrível não ter ar para a articulação de
uma palavra, uma somente, menos ainda, uma interjeição, mas que resumisse, em
sua breve sílaba, todo o nosso horror, toda a nossa angústia!... E a padiola,
cada vez mais lugubremente, rangia, e dentro dela dançavam os nossos corpos,
movidos pelo passo incerto dos carregadores.
Como eu
achava hedionda a figura dos cocheiros! Tinha-os reconhecido: eram os dois
galés, únicos que escaparam ao contágio. Se ao menos pudesse gemer para saberem
que levavam alguém vivo, mas nem isso podia fazer e, se o fizesse, o ranger da
padiola engoliria os meus ais antes de serem percebidos.
E o esquife
a cantar a sua lúgubre melopeia e a sacudir-nos os corpos nos levava à cova e
eu sentia o horror de meu enterramento. E ela, quem sabe, se também não estava
viva e horrorizada com a ideia de ser enterrada sem estar morta!
Não, a sua
frialdade era de defunto. Em um dos solavancos da padiola os seus lábios se
colaram às minhas gengivas num rápido beijo, e senti que eles eram de gelo e me
repugnaram tanto que se eu fosse senhor de mim os teria afastado e repelido
mesmo.
A distância
de nossas casas ao cemitério era de pouco mais de um quilômetro. Os
carregadores depressa a venceram. Quanto mais se aproximava o termo daquela
dolorosa viagem mais me horrorizava o fim trágico que me esperava.
Quando
passamos pela igreja rezavam as devotas as suas orações, acompanhando a voz
estridente do padre a pedir — Senhor Deus, misericórdia!... Senti-me de todo
aniquilado; aquela súplica me soava aos ouvidos como se rezassem o meu réquiem.
A minha
vista estava tão curta que olhando a matriz mal enxergava a fachada até a
altura das portas. O meu cérebro, entretanto, funcionava bem, e pude então
avaliar o seu poder.
Nos poucos
minutos que gastamos para chegar ao cemitério escrevi mentalmente um sentido
poema de recordações. Senti uma saudade da vida, que me traspassou todo. Não
podia conformar-me com a morte; o que me angustiava, não era o acabamento, era
morrer moço, era ter apenas vinte anos e ser enterrado vivo!
Que funda
mágoa tive e como amaldiçoei o meu destino!...
Assistia,
partido de saudades, o desfilar de todas as minhas ilusões, de todas as minhas
esperanças, que incorporadas seguiam caminho da morte e que em breve cairiam na
cova. O meu infortúnio era de tal ordem que para ele não podia haver resignação
possível. Em uma dessas crises de desespero, em uma dessas ânsias de viver,
fitei o rosto dela, pálido como o de uma Vênus de mármore e mais frio ainda do
que gelo. Estaria morta ou, como eu, assistiria ao funeral de todos os seus
desejos, de todos os seus sonhos?!
E a padiola
rangia, rangia e ela não dava sinal de vida.
O veículo
calou-se, ouvi um dos carregadores dizer: — chegamos; e fomos despejados
desumanamente no chão, como fardos inúteis. O choque me abalou o esqueleto, mas
não produziu em mim a menor dor. Caí ressupino sobre um cadáver, cujo peito me
serviu de travesseiro. Ela, mais tesa do que eu, recebeu mais impulso e se
estatelou um pouco adiante de mim.
Era chegado
o instante supremo, o momento de esgotar até as fezes o cálice da agonia.
A lua estava
clara como o dia, e eu não perdia de vista os celerados, que não tardariam a me
arrastar para a vala. Esperava-os completamente acovardado. Só por um milagre
escaparia de um tão trágico gênero de morte. Lembrei-me então de Deus, eu que
fazia alarde de minha falta de Fé!... Foi preciso esta provação para eu
conhecer quanto o homem é miserável e quanto é necessário no sofrimento a ideia
de um ser sobrenatural que lhe possa aliviar as penas. Prostrei-me em espírito
e orei. Pedi, mas pedi sem aquela confiança, aquele fervor com que pedem os
crentes. Ainda bem não havia concluído a súplica vi que os galés, depois de uma
ligeira conversa, que não ouvi, se aproximavam do corpo de minha noiva. Iam
enterrá-la; ela parecia morta, mas bem podia ser que, como eu, estivesse viva.
Meus olhos,
embora sepultados como estavam nos fundos buracos da caveira, viam bem o que se
passava perto deles.
Um dos
carregadores, depois de mirar o rosto do cadáver, apegou-se a ele e
arrancou-lhe os brincos das orelhas e os anéis dos dedos. Ah! como me doeu
n’alma aquela primeira profanação! Foi grande a revolta que senti, mas não
tinha músculos nem forças e continuei imóvel. Despojada de suas joias, algumas
das quais tinham sido presente de noivado, e que os galés repartiram entre si,
ela ia repousar aos quinze anos, para sempre, de todas as fadigas desta vida.
Como me iludia, pr’aquela desventurada criatura a morte não seria a posse do
descanso.
Os dois
celerados, depois de recolhido o saque, sentaram-se, e um deles sacou um
baralho do bolso. Começaram a jogar. Eram as joias dela que jogavam, pensei.
Riam e palravam e, ante aqueles sons mal articulados, deformados mesmo pela
língua perra de embriaguez, percebi uma palavra que me fulminou. Bem podia ser
que me houvesse enganado, dizia dentro de mim a voz da Esperança, talvez para
não morrer de todo, como se eu já não fosse um morto.
A posse
daqueles objetos, penhores do meu amor, pertencendo a outro homem me ralava de
ciúme, me desonrava enfim! E mal sabia eu que eles jogavam uma coisa mais
preciosa do que as joias que tinham furtado; jogavam o corpo dela.
Um deles
ganhou, e seria dele o que sonhei tantos anos pertencer a mim e somente a mim.
Esta ideia me assaltou a mente gerada pela palavra que eu tinha ouvido; e eu
que supunha já ter chegado à vasa do mar das amarguras, já ter tocado as fezes
do cálice da agonia, vi que ele ainda estava cheio e que havia de esgotá-lo!...
Era demais
aquela provação e, numa crise de justo desespero, pedi a Deus, não a vida, mas
a morte, trágica embora como se me apresentava. Deus não me ouviu e
conservou-me vivo dentro do meu próprio cadáver; inerte, desprezível em minha
impotência de morto!...
Estávamos à
mercê de dois monstros dominados somente pelo instinto bestial. Ela seria
vítima inconsciente daquela cena de bruteza humana, e eu seria a vítima
consciente; padeceria por mim e por ela, o ultraje, a vergonha e ciúme, e por
cúmulo da miséria ter o espírito vivo dentro de um corpo morto.
Ela dormia o
derradeiro sono, amortalhada no roupão de cassa cor-de-rosa, que vestia quando
a peste fulminou-a. O mal não teve tempo de lhe alterar as formas, matou-a
repentinamente como se lhe atravessasse o coração com uma bala. Não sofreu,
nada sentiu e muito branca e muito bela parecia adormecida com o ar do rosto
numa expressão angelical. Os seus traços de estátua, que antes o mal os tivesse
apagado, banhados pela luz doce e suave do luar aguçaram mais nos celerados os
instintos bestiais.
Em caminho
para o cemitério eu pensava ser o maior suplício o enterramento de uma criatura
viva, e mal sabia que a escala do sofrimento humano é como espaço, não tem fim,
e que outro suplício, tão atroz que não se define, estava reservado para mim.
Os
carregadores de defuntos ambos eram mestiços, de feia catadura e de uma
carnação tão vigorosa que os dias da cadeia, numerosos embora, não puderam
sequer amolecer-lhes a musculatura.
Eu não
sabia, até então, de quanto é capaz o instinto bestial; não avaliava a
perversão do homem que se deixa dominar pela animalidade. A carne havia
triunfado nas bestas humanas, à mercê das quais estava a virgindade dela e a
paz de toda a minha vida. Eles tinham perdido a razão e com ela todos os
escrúpulos da moral. Nem o espetáculo da morte e nem tampouco o receio da peste
embotavam nos celerados os lúbricos desejos carnais!...
O que havia
ganho o cadáver, e que devia violá-lo em primeiro lugar, ergueu-se e caminhou
para o corpo. Não posso explicar o que se passou em mim quando me convenci de
que ia ser consumado ali o mais nefando delito da bruteza humana. Quis
erguer-me e livrá-la de ser prostituída depois de morta e não pude!... Por maior
que fosse a revolta que eu sentia, por mais intensa a descarga nervosa vibrada
em meus músculos, estes não se mexeram e fiquei imóvel!... Como me doeu a minha
nulidade!... Como me acabrunhou a minha inércia!... O meu eu havia percorrido
em poucas horas todas as etapas de sofrimento, passado por todos os estádios da
tortura, acredite! E, coisa estranha, eu sentia, sem que quisesse, nas ruínas
do meu acabamento, em presença daquela cena carnal, uns frêmitos de
sensualidade, ânsias da carne, que ainda não tinha de todo perecido!... A
dissolução é a glorificação da matéria, o triunfo da animalidade; me convenceu
o que vi e senti.
Os dois
monstros, cada qual mais repelente pela sua moral, mais imundo pelo seu físico,
mais asqueroso pelos seus vícios, indignos mesmo do amor de um cadáver,
cevaram-se à farta na virgem morta, enquanto adormeci ou desmaiei!...
Quando
voltei à vida já era dia e o Sol dardejava, erguido bastante no horizonte, como
se fosse uma esfera fulgente de prata boiando num tranquilo lago de anil. O meu
acordar foi uma das páginas mais tocantes desta tragédia. Custei a ter uma
noção exata de minha pessoa, do lugar e do tempo. Não posso bem definir o
estado de meu espírito quando despertei. Tive uma sensação de vazio na cabeça,
depois de atordoamento, ideias se atropelaram, se baralharam em uma confusão de
loucura, depois as imagens dos objetos que me cercavam foram se
individualizando, tomando formas mais nítidas, e percebi o meio e me reconheci.
Despertos todos os meus sentidos, na posse de meu entendimento lembrei-me da
cena, que assistia quando adormeci, porém não como um fato real e verdadeiro,
mas como um sonho mau. E continuariam a ser para mim um pesadelo aquelas
reminiscências, a terem o valor de uma extravagante alucinação, se meus olhos não
confirmassem a tristíssima verdade caindo sobre as formas dela completamente
expostas. Um espasmo me sacudiu todo e ressuscitou a vida de meus músculos.
Quis erguer-me e sentei-me. Olhei o sítio; era o cemitério dos coléricos.
Pilhas de mortos apodreciam ao tempo!... Não me demorei na apreciação daquele
triste lugar. A minha cabeça estava toda cheia do monstruoso atentado da
derradeira noite. Pus-me de pé, cambaleando é verdade, mas firmei-me e fui ao
lado dela. Não sei que natureza de sentimento tive quando palpei a dolorosa
verdade que minha razão teimava em fazer um sonho. Nem havia dúvida, ela tinha
sido violada; suas formas continuavam expostas e os autores do nefando crime
mortos em nudez obscena a poucos passos dela!... Naquele instante não posso definir
o que se passou em mim; meu espírito desceu, desceu até topar a vasa do oceano
tormentoso da agonia. Tudo estava em trevas dentro de meu cérebro e quando
clareou-se-me a vista e a razão foi ela que viram os meus olhos mas profanada e
morta! Acheguei-me ao corpo sem olhá-lo, sem profaná-lo com a luz de meus
olhares, com o mais profundo recolhimento e piedade cobri-o com as suas
próprias vestes. Quis depois sepultá-lo, lançá-lo dentro de uma vala aberta
perto de nós e não tive forças e nem coragem. Mandaria mais tarde prestar-lhe
este serviço.
Ao deixar o
cemitério senti uma necessidade imperiosa de vingar-me dos celerados que para
sempre me haviam roubado a paz do espírito. Como me vingaria se eles estavam
mortos?!...
Aproximei-me
deles e numa ânsia de vingança, numa crise de ódio, de desespero, pisei-lhes os
rostos com os pés, como se eles pudessem sentir a ofensa física ou se revoltar
com o ultraje e eu tivesse forças para esmagá-los!
E saí, com o
passo vacilante, em rumo à vila onde o senhor me encontra vinte anos depois,
ainda enclausurado dentro de mim, evitando o convívio dos homens e chorando a
viuvez do meu espírito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...