Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Tarde de inverno. Ouvia-se o relógio palpitar soturnamente ao fundo da longa sala e ouvia-se o crepitar das asas de um inseto que se debatia contra as vidraças de uma janela fechada. A casa, na sua adormecida opulência coberta de pó, tinha um duro e profundo aspecto de tristeza.
Dois homens, pai e filho, um
eternamente irresponsável e criança, apesar das suas rugas e dos seus cabelos
falsamente negros, o outro já desiludido e velho, a despeito dos seus
miseráveis vinte e poucos anos; ambos cansados, ambos tristes, ambos inúteis e
vencidos, quedavam-se, sem ânimo para mais nada, assentados um defronte do
outro, olhando o espaço, como que vegetalizados, ambos por um só e mesmo tédio,
por um só e mesmo desgosto de existir, por uma só e mesma preguiça de viver.
Sentia-se desconsoladamente que
naquelas escuras paredes sobrecobertas de enegrecidos painéis e desbotadas
tapeçarias e naquele teto de estuque já sem cor e naqueles dourados móveis despolidos
pelo tempo, há muito não ecoavam rir e palrear de crianças ou alegres vozes de família.
Apesar dos dois espectros de homem que lá permaneciam imóveis, a casa toda parecia
totalmente desabitada.
O velho de cabelos tintos
levantou-se afinal, bocejando, deu como um sonâmbulo algumas trôpegas voltas
pelo aposento, tomou um cálice de conhaque da frasqueira que havia a um canto sobre
um tremó antigo, acendeu um cigarro e encaminhou-se lentamente para o outro, a
quem tocou no ombro.
— Então?... disse, parando
defronte dele.
O rapaz fixou-o com o seu
indiferente olhar de enfermo sem cura, e balbuciou suplicante:
— Prepara-me uma, injeção de
morfina... Sim?
— Não!
— Ora!
— Não é possível, meu filho...
— Por amor de Deus!
— Não. Só logo mais quando eu
voltar.
O moço contraiu aflitivamente o
rosto, em cópia de toda a sua dolorida contrariedade; e abateu-se mais na
cadeira, deixando pender a cabeça sobre o peito e abandonando os braços ao próprio
peso.
— Sentes-te mal hoje? perguntou o
pai.
O interrogado sacudiu os ombros,
indiferentemente, sem levantar o rosto.
Pobre criança!... pensou aquele,
refranzindo as rugas da sua marmórea e despojada fronte de velho folgazão.
Muito caro pagas tu a minha loucura de te haver dado a vida!... Maldita hora em
que consenti, por conveniências de fortuna, me casassem com tua mãe!...
O enfermo, como se lhe percebera
o pensamento, ergueu os olhos para fixar os do pai; e este acrescentou, agora
falando:
— Que falta te fez ela na
infância!... tua mãe!
O moço deu de ombros outra vez
com a mesma e desdenhosa indiferença:
—Minha mãe... tartamudeou depois,
pondo-se a olhar um retrato de mulher que havia na sala. Minha mãe... sei
cá!... Nem sequer a conheci!.
E, insistindo em contemplar o retrato,
disse ainda com um suspiro bocejado: — Era bem bonita minha mãe!...
— Bonita e boa! Não serias,
talvez, assim inútil e perdido para a vida, se nos teus primeiros anos ela te
inoculasse no espírito, com o seu amor, as ideias do bem, que eu nunca tive!
E prosseguiu, depois de sorver de
um trago um novo cálice de conhaque:
— Era uma boa criatura; era, não
há dúvida! Honesta, friamente virtuosa, muito discreta e concentrada. Não sei
se algum dia me amou, casou-se por obediência aos pais, foi sempre em absoluto
indiferente às minhas carícias como às irregularidades da minha má conduta de
homem casado! Mas, quem sabe, se ela não morresse logo depois do parto, se te
não deixasse tão cedo sozinho comigo; quem sabe o que poderias vir a ser?... A
nossa riqueza, o meu temperamento leviano e a educação ociosa e galante que me deram,
tudo isso, meu pobre filho, conspirou contra ti e fez de teu pai o pior que até
hoje existiu no mundo!...
O rapaz sacudiu novamente os ombros,
com desprezo, enquanto o outro ia ainda esgotar, um cálice de conhaque à
garrafeira do tremó.
— Ah! se ela não tivesse morrido
tão cedo!... exclamou o velho estroina, lamentosamente. E acrescentou, como se
precisasse descarregar a consciência numa humilhante confissão de todo o seu
crime paterno: — Vê tu que desgraça! Fui eu, eu só, o teu exemplo na infância,
o teu guia, o teu mestre — eu! Eu, que jamais compreendi deveres de espécie
alguma, nem tive nunca esperanças no futuro, nem ambições de qualquer gênero,
nem ao menos confiança e fé na família ou em Deus! Sei que sou homem, porque às
vezes sofro! O companheiro fiel que me seguiu pela existência, meu filho, não
foste tu, nem foi tua mãe ou algum amigo estremecido, foi a forte paixão pelos
meus próprios vícios; e, na ausência destes, foi só o tédio que enxerguei
sempre ao meu lado. Ah! como tenho remorsos de te haver feito viver!... Como fui
mau, principalmente com relação a ti!...
— É exato! suspirou o filho.
— Como sou um pai digno da tua
inutilidade e da tua degeneração! Como tu, pobre esqueleto gotoso, és bem o
filho dos meus ossos!
E, depois de outro cálice de conhaque,
o velho começou a declamar, em uma explosão nervosa, agitando os braços e dando
à voz inflexões teatrais:
— Fui na existência um navio
inútil, sem carga, sem destino, sem bandeira e sem munições para nenhum combate!
Vaguei, errante e perdido, por todos os mares largos do vício, sacudido por todas
as tempestades e por todos os vendavais da intemperança e da luxúria! Cheguei à
velhice como um casco naufragado, com a mastreação partida, as enxarcias
estaladas e o cavername arrebentado! Eis o que sou!
O filho afastou-o com a mão,
enfastiadamente, a torcer o rosto aflito em ura esgar de repugnância.
— Vai-te embora!... murmurou. Já
estás bêbedo!...
— E é este despojo, continuou a
declamar o pai, sem levar em conta aquelas palavras; e é este resto de
naufrágio que há vinte anos representa para ti, minha, querida vítima, todo o
teu passado e toda a tua família!... Oh! sem dúvida que não serias isso que aí
está prostrado nessa cadeira, a implorar por amor de Deus uma injeção de
morfina, se fosses gerado por qualquer outro homem!... Perdoa-me ter sido eu o
teu pai, meu filho!
— Mas, vai-te embora! Vai-te
embora, por piedade! Para que me hás de torturar?!
— Amo-te entretanto, pobre
criança! sempre te amei! O meu amor, porém, nunca te serviu de benefício;
fez-te, ao contrário, caminhar até hoje pela minha mão no sombrio e úmido caminho
da minha loucura, sem me lembrar, desgraçados de nós! que não tinhas tu herdado
de mim, como eu herdei de meu pai, a resistência física que ele economizara
durante a sua vida e que eu prodigamente gastei toda inteira, só comigo, nos
meus prazeres egoístas!
— Mas, vai-te embora! São quatro
horas. A primeira banca principia no Clube às quatro e meia! Vai-te embora! Vai
jogar!
— Queres tu vir comigo?...
— Não.
— Vê se te resolves... Talvez até
isso te faça bem...
— Não posso... Sinto-me mal.
— Como tens um pai diferente do
pai que eu tive!... Aquele que ali está naquele quadro, ao lado de tua avó; ah!
esse um homem!...
— Não recomeces por amor de Deus!
Vai-te embora!
— Aquele não conhecia tédios, nem
fastios! Não tinha vícios! Trabalhou toda a vida! Triplicou a fortuna que
herdou, e que eu desbaratei antes dos trinta anos! Era um justo!
— Já sei de tudo isso! já mo
disseste mil vezes! Vai-te embora! Vai-te embora, se me não queres ver
disparatar.
— Se eu tivesse ao menos amado
tua mãe... é possível, se assim fosse, que te salvasses!... E como merecia ela
ser amada!... a infeliz senhora!... Ah! se a conhecesses, meu filho!... (E a
voz do miserável começou a estalar, ameaçando abrir em soluços) Era uma santa
criatura! Fria, indiferente, mas resignada e casta!... Imagina que eu...
O outro, porém, ergueu-se
possesso e começou a agitar-se por toda a sala, bradando desabridamente:
— Mas que malfiz eu para me
torturarem deste modo?!
— Acalma-te! Acalma-te!
— Arre! É muito! É demais!
— Acalma-te, meu filho!
— Acalmar-me, é boa! Já me não
posso conter! Era isto que querias?! Pois, aqui o tens! Daqui a pouco estou por
terra, espumando!
— Não! Não te apoquentes! Saio
já! Saio imediatamente!...
— Agora! Agora pouco me importa
que saias ou não! O que eu não queria era cair neste estado! Vê como tremo
todo! Olha como tenho já a língua! Olha para as minhas mãos!
— Vê se sossegas!...
— Que inferno! Que inferno!
bramiu o moço. E, depois, de puxar pelos cabelos e bater contra a cabeça os
punhos contraídos, exclamou, de braços e olhos arrancados para o teto: — Mas, meu
Deus! Meu Deus! por que me fizeram viver?! Que espírito cruel me chamou a esta
vida de lama, sem indagar se eu tinha forças para arrastá-la pelo mundo?! Por que
me entalaram nesta prisão que me dói, onde meu pobre espírito ofega oprimido e
a minha carne geme e os meus ossos estalam?! E para que me deixaram cá dentro
do barro podre deste corpo só prestável para doer, esta maldita consciência que
marca os segundos da minha agonia como um relógio de médico; esta enfermeira
coberta de luto que ronda a minha insônia e pesa a minha incalculável miséria,
grama a grama, numa balança de hospital?! Por quê?! Por quê?! Que mal fiz eu ao
mundo, meu Deus?! Amaldiçoados sejam os criadores de existências e mais os seus
agentes e os seus cúmplices! Amaldiçoado sejas tu, velho libertino!
— Meu filho!...
— Vai-te para o diabo! Se ao menos
pudesse eu matar-me! Mas o covarde instinto da vida agarra-me torpemente a esta
carcaça epiléptica e leva-me de bruços pela existência, como a lesma rastejando
na própria baba!
— Acalma-te, meu filho!
— Mostra-me então o meu lugar
nesse alegre banquete, do qual nunca te levantaste! Mostra-me o meu talher e o
meu copo! Aponta-me a cama da mulher que tenha lábios e braços para me amar!
Vamos! O que é do meu quinhão? Devoraste-mo tu, Falstaf! Choras, hein? mas
choras repleto e ainda não saciado! Choras, bem vejo! mas tens rido a vida toda
com todas as dissolutas que topaste no caminho! tens palpitado de comoção em
todas as bancas de azar! tens te embriagado com todos os vinhos que existem na terra!
E continuas a beber, a fumar, a viver noites inteiras no amor e no jogo; e eu?!
O que foi que eu gozei até agora?! Deste-me para ama de leite uma das tuas
cúmplices venéreas! desmamaste-me a conhaque! levaste-me ainda criança a todos
os lugares em que te corrompeste! fizeste-me, na idade em que se aprendem as
orações, fumar e beber para divertir os teus companheiro de libertinagem e
fizeste-me macaquear os libertinos para servir de histrião às tuas prostitutas!
És um monstro! Sai da minha presença ou eu te mato!
— Não! não, meu filho, não quero
que fiques mal comigo!... Não ficarás! Aqui tens morfina!
— Morfina?! Ah! dá ma! dá ma!
Perdoo te tudo! Como és bom! como és bom, meu pai! Muito obrigado!
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