Útil inda brincando
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
I
Uma noite o Leopoldo das Neves
encontrou no Passeio Público o Viriatinho da Estrada de Ferro, um bom camarada
que há muito tempo não via.
E, como os dois amigos se
encaminhassem para o terraço, o Viriatinho chamou a atenção do outro para uma bonita
mulher que descia a escada em companhia de um sujeito gordo.
— Oh! diabo! é a Clotilde!
exclamou o Leopoldo das Neves.
E, levando o amigo pelo braço, embarafustou com ele pela sombria alameda que contorna o lago.
— Que é isso? Foges daquela
mulher?
— Como o diabo da cruz.
— Por quê?
— Porque me amola; se me
visse, eu seria amanhã obrigado a explicar-lhe o que vim fazer ao Passeio Público!
— Amola-te? Ora essa! Eis ali
o caso de dizer que dá Deus nozes...
— Perdão, tenho muito bons
dentes!
— Nesse, és difícil!
— A Clotilde não é o meu tipo.
— Pois é bonita como
seiscentos diabos!
— Não nego! mas o meu ideal é
outro. Quisera que a minha amante fosse alta, magra, loura, alva, de olhos
azuis, e tivesse vinte e quatro anos, quando muito. Quisera também que fosse
viúva, conhecesse um pouco a Europa, e, sem ser literata nem artista, gostasse
das letras e das artes.
— Quiseras muitas coisas
juntas!
— A Clotilde é o contrário de
tudo isso: é mais baixa que alta, é mais gorda que magra, é morena, tem olhos
castanhos, e já completou a idade exigida para a senatoria...
— Do Império?
— Não; da República. — É a
digna esposa daquele negociante anafado e suarento que viste passar; adormece
no Lírico ouvindo o Otelo; dá o cavaquinho pelos cromos de Guimarães
Ferdinando, e delícia-se com a leitura de Xavier de Montepin, — traduzido,
note-se, porque nem ao menos sabe francês!...
— E as tuas relações com ela
têm tido caráter platônico... ou... positivo?
— Ah, meu amigo, eu dei-lhe,
infelizmente, amplo direito de perseguir-me...
— Maganão!
— Quem principiou fui eu. Que
queres?... a curiosidade... o vício... a poesia do adultério... Como isso foi?
Não sei. Um encontro numa soirée familiar... um aperto de mão mais forte... uma
valsa... durante a valsa uma troca de lenços... no lenço dela um perfume
capitoso e enervante... uma carta minha que ficou sem resposta... outra...
outra ainda...outra, que foi respondida afinal... uma entrevista concedida
depois de uma luta homérica entre duas fomes de beijos...
— Bonito!
— Uma entrevista em casa de
uma cartomante da Rua da Assembleia... Duas horas de prazer, e quatro anos de
cativeiro e arrependimento!
— Quatro anos?
— Sim, meu Viriatinho, há
quatro anos que isto dura; há quatro anos hipotequei a minha liberdade, o meu
sossego, e o meu bom humor; há quatro anos vivo aguilhoado a essa mulher, que
se encontra comigo de oito em oito, de quinze em quinze dias, furtivamente, às
pressas, mas que me escreve todos os dias, e me atormenta com protestos,
exigências, lamúrias, ameaças!...
E Leopoldo das Neves
interrompeu a lista das impertinências de Clotilde, batendo violentamente com a
bengala na relva:
— Quatro anos! Há quatro anos
— calcula! — tenho o coração nas mãos, receoso de que de um momento para o
outro o marido descubra tudo, ponha-a na Rua a pontapés, e eu seja obrigado a
ficar com aquela trouxa às costas!...
— Vejo que já não a amas.
— Nem nunca a amei. Foi um capricho...
Quinze dias depois da nossa primeira entrevista em casa da cartomante, já eu me
sentia farto e aborrecido!
Os dois amigos encaminharam-se
para o terraço.
A noite estava esplêndida. Não
havia luar, mas os astros brilhavam intensamente na profunda escuridão do céu.
As ondas, derramando-se na praia, pareciam alvíssimas rendas franjando uma
enorme colcha azul.
— Queres um conselho, Viriato?
Foge das ligações dessa espécie.
— Ah! de que me serve o teu
conselho?
— Por quê?
— Aqui onde me vês, estou ralado
de inveja!
— De inveja?
— Sim, confesso-te que guardo
dentro esse sentimento ignóbil. Invejo a perseguição de que te dizes vítima e,
— palavra! — tenho ciúmes, ciúmes incoerentes, dessa mulher que não é minha,
que não conheço, apenas entrevi... Eu dava dez anos de vida — vê tu lá! — pelo
prazer de entrar com ela furtivamente em casa de uma cartomante misteriosa e
hospitaleira!
Leopoldo das Neves encarou
fixamente o outro, e, depois de uma grande pausa, perguntou-lhe, segurando-o
por um botão do casaco:
— Viriatinho, és meu amigo?
— Certamente.
— Queres prestar-me um grande
serviço?
— Qual?
— Um serviço que não te será
desagradável.
— Que ordenas tu?
O amante de Clotilde recuou
uns passos, apontou para o lado da rua, e declamou o verso de D. Salustio "De
plaire à cette femme et d’être son amant!"
O Viriatinho soltou uma
gargalhada tão cristalina e vibrante que chamou a atenção das pessoas que
passavam.
— Não te rias! estou falando
sério!...
— Mas isso é lá possível!
Tirar-te do lance, eu!... E ela tão apaixonada por ti!...
— Conheço-a como as palmas das
minhas mãos; dar-te-ei as instruções necessárias... Desde que estejas munido de
todos os recursos estratégicos, desde que saibas como atacar a praça, a vitória
nãos será difícil.
— Olha que sou um péssimo general!
— Deixa-te de modéstias!
Vamo-nos embora... Pelo caminho irei te desenvolvendo o plano do ataque.
— Vamos lá!
— Não calculas como vais ser
útil! disse Leopoldo das Neves, descendo.
— “Útil inda brincando”,
acrescentou Viriatinho, descendo também, e apontando para o desgracioso Cupido
que desde 1783 dá de beber aos fluminenses.
II
Mês e meio depois desse
encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e
sentia um aborrecimento de morte.
Era uma noite chuvosa e fria.
Tentou escrever, e não
conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda
não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao
piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e
deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés.
Tinham-se já passado quarenta
dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de
um tal Comendador Freixo.
Leopoldo tratara Clotilde com
muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um
major de engenheiros e um Médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na
sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas.
Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e,
na Rua deram cinquenta passos ao lado um do outro sem falar.
Leopoldo quebrou o silêncio:
— Então, César? Chegaste,
viste e venceste?
Por única resposta o
Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo,
dizendo:
— Vê se conheces este perfume.
— Bravo!... as coisas chegaram
à cerimonia, meio maometana, da troca dos lenços?
— Tal qual como contigo.
Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa
impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de
Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns
apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a
troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta...
Os dois amigos separaram-se,
e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A
correspondência de Clotilde cessou completamente.
Durante os primeiros dias ele
sentiu-se feliz, aliviado — uf! — daquela pesada algema que durante quatro anos
penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos.
Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto.
Clotilde aparecia-lhe agora
com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e
se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano Depois, ele
passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito
magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens!
Agora, sim, agora sou o teu ideal!...
Naquela noite chuvosa e úmida,
Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim
de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera
um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao
Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com
certeza não saberia apreciá-la.
O ingrato monologava esta
interrogação terrível: — Já teriam indo à Rua da Assembleia? — quando ouviu
bater à porta.
Foi abrir. Era o Viriatinho,
que entrou alegre e radiante.
— Está chovendo: tinha certeza
de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista... Fomos
hoje à cartomante!...
Leopoldo estremeceu, teve um
sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair.
— Arre! Custou! Escrevi nada
menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi
ela própria quem me indicou o buen
retiro da Rua da Assembleia... Talvez o mesmo quarto, hein?
— Talvez...
— Olha: sobem-se duas
escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor,,, primeira alcova
à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de
fumos... É isso?...
As palavras de Viriatinho
penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O
pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a
pauladas, o seu substituto; mas — que diabo! — o culpado de tudo não tinha sido
ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?...
não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta
espontaneamente por ele?...
O Viriatinho observou:
— Mas... valha-me Deus!
acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido?
— Eu?... que ideia!...
murmurou Leopoldo sufocado; que ideia!...
— Olha, se queres que te diga,
acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher
vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!...
— Não te dizia? acudiu
vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada!
— Sabes? não estou disposto a
aguentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me
dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda
brincando”.
Alguns minutos depois, o
Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto.
Foi para o seu quarto de
dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto
de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço,
aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse
anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e
numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela.
Passou assim toda a noite.
III
Ela enviuvou há um ano. Eles casaram-se
há seis meses.
Quando se encontram com o
Viriatinho da Estrada de Ferro, fingem que o não conhecem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...