Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
As ideias aparecem-nos como a
verdade — nuas; somos nós, os escritores, que as vestimos e, como cada qual tem
a sua feição própria, pode a mesma ideia, tratada por várias penas, ser jovial
como uma canção, meditativa como um provérbio, gloriosa como um epinício,
passional como uma ode sáfica, dolente como uma elegia, lúbrica como uma
fescenina, sentenciosa como uma máxima ou cômica como uma tabarinada. Tudo está
no gosto do revestimento.
Vejamos, por exemplo, uma
caveira que sugere, a quem quer que a veja, a ideia da morte — ponhamo-la sobre
uma erma, à beira dum caminho bem trilhado e façamos desfilar por ele um grupo
de poetas.
Dirá o primeiro:
“Eis um espelho de bom aço. Se
as mulheres o tivessem nas suas câmaras não haveria vaidade.”
Bem inspirada andou a Madalena
que o tomou para seu uso quando se fez troglodita arrependida. Este é o espelho
que a Verdade deve trazer na mão. Pois sim, senhores — “Não somos lá grandes
coisas!” Dirá outro: “Ser ou não ser, eis a questão...”
Outro: “Concha da ideia,
saíste do oceano tormentoso da vida, jazes vazia na praia deserta do nada.
Dentro de ti, porém, como dentro das conchas, há um rumor constante que é o eco
imorredouro da agitação de onde vieste. Na concha é o estuar da vaga, em ti é o
referver da ideia. Ondas, maiores que as do pensamento, tormentas, mais deseneadeiadas
do que as da consciência, não as tem o mar largo. Vós que passais encostai ao
ouvido o crânio tábido e ouvireis o eco da vida que por ele passou — são os espetros
dos sonhos, das ambições, das angústias, dos gozos que assombram a ruína. Evoé!
pela eternidade da agitação!”
Outro:
— “Poste, talvez, como uma
flor de aroma e os beijos procuravam-te ansiosos, hoje, fanada e seca, jazes no
esquecimento e no abandono. Onde andarão as abelhas que te buscavam? Que outro
nectário as prende? És como um caule seco de onde, uma a uma, todas as pétalas
caíram”.
Outro:
— “Pulvis! poeira e só. A
carne levou-a o verme, o arcabouço rolará na terra até à reversão total. Eis o
que somos. E já que o fim é tão triste, por que nos havemos de amofinar com a
ambição e a vaidade?”
Outro:
— “Nichos vazios, que é dos
olhos que rolavam ansiosamente dentro do vosso âmbito, como leões em jaulas
apertadas? Boca, que é da vossa umidade? que é do vosso perfume? vossa melodia?
Ouvidos, que é dos vossos andarilhos que levavam ao cérebro todos os que é da recados?...
Ah! pobre crânio, já não te abrasa a paixão, és como uma velha lâmpada sem
óleo. Quantas vezes, trazida pela Luxúria, a insônia hospedou-se entre os teus
muros! Quantas vezes, como em antro de lâmias, esfervilharam em ti espetros
delirantes? Foste, como cafurna orgitica,
abrigo de súcubas e todo o corpo que encimaste sofreu agitadamente com os teus
delírios. Agora repousas, só os insetos viajam pela abóbada deserta e os ventos
silvam atravessando é teu bojo vazio. Mas se o amor viveu em ti e com ventura,
foste feliz e eu invejo-te, carcaça”.
Outro: — “Não somos nada neste
mundo”.
Finalmente: “Eis, fazes bem; o
teu rictus é como um recibo irônico.
Durante a vida pagaste caro o teu tributo, foi uma cilada que teus pais armaram-te.
Quem eram eles? talvez não os houvesses conhecido. Fazes bem em rir, mas como a
vida exige a hipocrisia e tu, sendo caveira, áridas por entre os vivos, dias
antes do desastre que te levou os músculos e os outros enfeites, devias ter ido
a um dentista para que te arranjasse essa boca... porque, com franqueza, esses
molares estão indecentes e tu devias gastar muito algodão nas covas que eles
apresentam: não são dentes, são verdadeiros armazéns. Com o algodão com que os tamponavas
poderia uma fábrica tecer pano para um regimento. Se é para mostrar os dentes
que ris, podes limpar a mão à parede”.
Há disparates nesses
comentários, pois são tais disparates que constituem a harmonia. Homens há que
se comovem, até às lágrimas, com a claridade pálida da lua cheia, outros dão
para o derriço e saem afinando violões à procura de alguma dama descuidada ou
paciente que lhes ouça as loas; outros, finalmente, dão para valentias e,
ardidos, de sobrecenho carregado, brandindo cacetes, investem provocadoramente
desafiando e, se a polícia não açode a tempo, os jornais, no dia seguinte,
registram fraturas e contusões e autos de flagrante. Ainda se há de escrever
uma monografia sabia com este claro título:
Da influência da lua cheia sobre os espíritas.
Os nossos cronistas são, em
geral, contemplativos (meã culpa! meã culpa!) e vestem todas as ideias de
melancolia, torcem o mesmo riso e descobrem em tudo um estigma de dor — poucos são
os que riem. Dir-se-á — somos um povo triste e o cronista, que reflete a alma
do povo, não pôde andar às gargalhadas. Não sei se somos um povo triste, sei
que somos um povo tímido.
O brasileiro é naturalmente
expansivo, mas profundamente desconfiado e a verdade da afirmativa, que faço
sem receio da contestação, tiro-a do seguinte caso comum:
Chega-se a uma casa e, pouco a pouco, vêm surgindo
os membros da família, todos mais ou menos reservados, de olhos baixos, como
receosos; por fim aparece o pimpolho chupando o dedo e trata logo de
encolher-se entre os joelhos da mamã. A conversa vai indo arrastada, por
monossílabos, com grandes pausas, até que o chefe, vendo o embezerramento do
petiz, chama-o à ordem:
— Então, que é isso? Tira o
dedo da boca.
O pequeno amua e o hóspede,
para dizer alguma coisa, afirma — “ que o menino tem um olhar revelador e
parece muito bonzinho..” Espanto dos pais:
— Bonzinho! isto... ahn! É
porque o senhor não sabe. Ele é porque está fazendo cerimônias, o senhor há de
ver.
Efetivamente, dali a instantes
está o pequeno a cavalgar a bengala do hóspede, estão as meninas ao piano, a
dona da casa faz o histórico da vizinhança, o chefe reclama as chinelas e
todos, à vontade, riem, galram, mostram que têm sangue e que não são mudos,
muito pelo contrário, como dizia o outro.
O brasileiro é isso: “um povo
que faz cerimônias” e os cronistas sempre o apresentam em momentos
cerimoniosos, raros são os que no-lo mostram como ele verdadeiramente é — em
calças fofas e largas chinelas, rindo de mãos nas ilhargas, como riam os bons
velhos de Brantôme e Des Periers.
Desses raros cronistas um dos
mais fiéis era Urbano Duarte, o excelente, o alegre companheiro que se finou na
estação do riso.
Conversávamos uma vez, no bom
e guloso tempo do Babélais, aqueles
opíparos e intelectuais jantares! a propósito de crônicas, era do grupo o torturado
Pompeia, que então andava a burilar os seus rendilhados períodos das Canções sem metro, quando, a propósito
de estilo, alguém lembrou-se de fazer a apologia da Forma. Urbano, encarquilhando
as pálpebras, sumindo, ainda mais, os olhinhos miúdos, sorria; de repente,
pondo-se de pé, disse peremptoriamente: — não concordo. A crônica deve ser um
flagrante da vida, e eu desafio a todos vocês a que me apresentem um homem, seja
uma besta ou um gênio, que, na intimidade, fale essa linguagem que vocês lhe
emprestam. Eu tomo os meus burgueses nos dias comuns, no trabalho ou na cadeira
de balanço da sala de jantar, com as calças brancas e o paletó de alpaca ou em
mangas de camisa, à fresca, enquanto esperam o jantar, ouvindo os seus
canários. Vocês só apresentam tipos endomingados, num estilo de sobrecasaca e
cartola, com muita água de Colônia no lenço e muita severidade nos modos. Vocês
não conhecem o homem — o homem é isso que eu descrevo; o resto, meus amigos,
arranjo. Vocês inventaram essa história da “tristeza do povo “ e aferram-se a
ela. O brasileiro não é triste; o brasileiro é o povo mais pândego do mundo.
Querem a prova? Sempre que eu conto uma das minhas anedotas encontro um sujeito
que me diz, sorrindo maliciosamente; “Seu maganão, aquilo foi com o F.... hein?
“ Protesto — que não, nem conheço o F... e o homem, sempre com o risinho
malicioso: “Não conhece, hein? ora morda-me o dedo se é capaz”. Isso prova que
o fato que relatei foi um reflexo da realidade. "Eu não invento — transcrevo.
Tristes... tristes somos nós".
Efetivamente... tristes somos
nós e ele era dos nossos. Atravessou a vida a fazer rir, que ele não ria, as
suas crônicas eram verdadeiras máscaras e, com a atroada carnavalesca, como se
a morte quisesse, em homenagem a esse dispensador de prazer, dar-lhe a extrema
ilusão no derradeiro momento, ele volvia os olhos úmidos para a esposa e para
os filhos, que era para esses entes que ele, calando as dores, ria através das páginas,
incessantemente, com a regularidade de uma máquina hilariante e, para não
entristecer a meiga companheira... talvez ainda sorrisse.
A sua própria dor saía
disfarçada e quem diria que era um gemido de moribundo que vinha, às vezes, com
tão ruidoso tintinabulo pelas colunas dos jornais afora?
Bem podia ele dizer com
Stecchetti:
Ben ritornato carneval gioeondo;
Eccomi serio: ecoo repiglio il mondo,
La maschera bugiaria.
Oa! non tradire il mio dolor segreto.
Pallido aspetto mio! Mostrati lieto,
Che Ia folia ti guarda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...