Uma noite em Petrópolis
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Gustavo era literato e quase
jornalista. Casou-se muito novo, aos vinte e rês anos, e fez-se guarda-livros,
porque decididamente a literatura não lhe dava com que manter a família.
O casamento havia sido muito contrariado
por uma dona Pulquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em
Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra
essa velha: não a podia ver nem pintada.
Ora, uma bela manhã, seis anos
depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de
costume.
— Gustavo!
— Hein? Que queres tu? Para
que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar
no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!
— Ouve; trata-se de uma coisa
grave.
— Hein?
— Tia Pulquéria...
— Morreu?
— Não; mas está morre não
morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.
— Responda-lhe que morra
quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!
— Gustavo, lembra-te que ela é
irmã de meu pai...
— Lembro-me que esse diabo
inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!
— Pois sim, perdoa-lhe...
aquilo foi rabugice de velha.
— Vai tu, se quiseres, com os
meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.
Uma hora depois, a sobrinha de
dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de
todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.
O Gustavo tentou dormir ainda,
mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e
foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.
Ao meio dia recebeu um bilhete
de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da
manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima
“fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.
O marido ficou bastante contrariado.
Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar um noite
longe da família.
Um dos seus companheiros de
escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:
— Eu, no seu caso, Gustavo,
tratava de aproveitar esta noite de liberdade...
— Aproveitar como? Não sou
pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta
noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor
terrível.
— Pois aproveite a noite
dormindo bem.
— Onde?
— Em Petrópolis. Você vai hoje
na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai
dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite
deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.
A ideia sorriu ao Gustavo. Que
bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da
serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia
seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro eleve como
uma flor!
Demais a mais, Gustavo nunca
fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à
Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à
Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.
O Gustavo foi à casa,
acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu
para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.
O programa traçado começou por
ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e
serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair
de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.
Acabado o jantar, o nosso
viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar,
voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:
— Ora, adeus! vou deitar-me...
Há de ser um sono só pela manhã!
Quis porém a fatalidade que,
ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás,
um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um
defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem
se diz: — Coitado! é mau só para si. — Olhe quem ele é: O Gustavo!...
— Oh, Miranda!
— Que fazes tu em Petrópolis?
— Vim dormir, e tu?
— Eu resido aqui.
— Ah! E em que te empregas?
— Em coisa nenhuma. Dissipo os
restos do meu patrimônio.
O Gustavo notou que o Miranda
tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a
de um bêbado, tratou de despedir-se.
— Não! já não te deixo!...
protestou o Miranda. Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.
— Não... desculpa-me...
— Não admito desculpas!
— Pois sim, mas há de ser aqui
mesmo no hotel.
— Nada! nada! Cerveja em hotel
não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela
ponte...
— Isso é uma extravagância:
está chovendo!
— Ora! um chuvisquinho à toa!
Vamos!
— Perdão, Miranda, eu vim a
Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite
passada, estou a cair de sono!
— Oh, desgraçado! pois tu
queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um
trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!...
E Gustavo deixou-se levar,
quase de rastros, à cervejaria.
Os dois amigos sentaram-se a
uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente
um deles, e pediu reforço.
— Era o que faltava! Dormir às
oito horas noite! nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um
plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.
— Fala, disse Gustavo contrariadíssimo,
arrependido, mas resignado.
— Pretendo fundar uma folha
diária aqui, nesta cidade vermelha!
O Miranda esperava que Gustavo
perguntasse: — Vermelha, por quê? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou,
como se o outro houvesse feito a pergunta:
— Pois não reparaste ainda que
tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as
casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!
E apontou para o moço que
trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo
teutônico.
— Em Petrópolis há um jornal,
mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! um Mercantil
nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de
diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!
E o Miranda expôs longamente o
plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as
narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística,
parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que
esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial
ou duas linhas de reticências...
Inflamado, o Miranda indicava
os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la,
os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e
mais aquilo outro.
O Gustavo, que por diversas
vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. ouvia-o com as pálpebras
semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma
palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado
jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava
abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para
beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.
A chuva caía agora a cântaros.
Na cervejaria só estavam os
dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços
cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do
plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu
dos fundos do estabelecimento:
— Endão que é isto, meus zenhores?
Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...
O Miranda tentou recalcitrar,
mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo
braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal,
conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.
O Miranda, mal deu dois
passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se
para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para
levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!
Imaginem a situação do
guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa Rua deserta, numa
cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha
iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de
“lutas”, que não podia abandonar ali!
Imaginem os trabalhos porque
passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia
inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este,
mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...
Era perto de quatro horas
quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir,
de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:
— Ai! Ai! Estes moços felizes
que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... —
Ai! Ai!
O Gustavo às sete horas da
manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado
pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.
Felizmente a velha deixou-lhe
uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em
Petrópolis.
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