Uma Embaixada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Minervino ouviu um toque de
campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo,
e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.
— Entra. Estava ansioso.
— Vim, mal recebi o teu
bilhete. Que desejas de mim?
— Um grande serviço!
— Oh, diabo! trata-se de algum
duelo?
— Trata-se simplesmente de
amor. Senta-te. Sentaram-se ambos.
Eram dois rapagões de vinte e
cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois
companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de
opiniões ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.
— Mandei-te chamar, continuou
Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos
interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na
Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.
— Estou às tuas ordens.
— Bom. Lembras-te de um dia
ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito
apaixonado?
— Sim, lembro-me... um
namoro...
— Namoro que se converteu em
amor, amor que se transformou em paixão!
— Quê? Tu estás
apaixonado?!...
— Apaixonadíssimo... e é
preciso acabar com isto!
— De que modo?
— Casando-me; e tu que hás de
pedi-la!
— Eu?!...
— Sim, meu amigo. Bem sabes
como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando
chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse
falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião
em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a
tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o
ministro me disse: — Vá descansado, hei de fazer justiça, — eu respondi-lhe: —
Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! — Ora, se sou assim com
os ministros, que dirá com as viúvas!
— Mas tu a conheces?
— Estou perfeitamente
informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins,
negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures
imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu
sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que
puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão
do teu amigo será eterna.
— Mas que diabo! observou
Salema, — isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia?
Não vim preparado!
— Não pode deixar de ser hoje.
A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não
queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.
— Mas, se lhe não falas, como
sabes que ela vai partir?
— Ah! como todos os namorados,
tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está
sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve
estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente
não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa. E Minervino empurrava Salema
para a porta, repetindo sempre: — Vai! Vai! não te demores!
Salema saiu, atravessou a rua,
e entrou em casa da viúva Perkins.
No corredor pôs-se a pensar na
esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.
— Que diabo! refletiu ele; não
sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais
natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?...
Mas, ora adeus!... eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido
de braços abertos.
Alguns minutos depois, Salema
achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo
gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã
de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos
azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.
Salema esperou uns dez
minutos.
Quando a viúva Perkins entrou
na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os
movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa.
Era ela! ela!.. a misteriosa
mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e
meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe
no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.
Durante muitos dias e muitas
noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde
procurou tornar a vê-la nos bondes, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes,
nos passeios, nas festas. Debalde!...
— Oh! disse a viúva,
estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o
senhor?
— Conhece-me? balbuciou
Salema.
— Ora essa! Que mulher poderia
esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no
bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e,
não sei porque... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me
lembro a quem.... lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei
a vê-lo?
Diante do desembaraço da viúva
Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, — mas cobrou ânimo, e
respondeu:
— Não foi porque não a
procurasse por toda a parte...
— Não sabia onde eu morava?
— Não; supus que nas
Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão
de vezes, na esperança de tornar a vê-la.
— Era impossível; aquela é a
casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está
fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e
diga o motivo de sua visita.
De repente, e só então, Salema
lembrou-se do Minervino.
— O motivo da minha visita é
muito delicado; eu...
— Fale! diga sem rebuço o que
deseja! seja franco! imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada
por meu marido...
E apontou para o retrato.
— Era americano; educou-me à
americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma
senhora. Vamos fale!...
— Minha senhora, eu sou...
Ela interrompeu...
— É o senhor Nuno Salema,
órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a
minha mão em casamento.
Ela estendeu-lhe a mão, que
ele apertou.
— É sua! Sou a viúva Perkins,
honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho
filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente
viúva. Não percamos tempo! Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou
falar.
— Amanhã parto para a fazenda
da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.
Nisto entrou na sala, vindo da
rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto,
muito bem trajado.
— Mano, apresento-lhe o senhor
Nuno Salema, o meu noivo.
O rapaz inclinou-se, apertou
fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:
— All right!...
Depois inclinou-se, de novo e
saiu da sala, sempre apressado.
— Mas, minha senhora,
tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que
mora ali defronte...
— Ah! aquele moço?... Coitado!
não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu
namoro à brasileira!...
— Mas... ele... tinha-me
encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha
encontrar...
— Deveras?! exclamou a viúva
Perkins.
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
E deixou-se cair no divã.
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
— Que hei de dizer ao meu
amigo? Ela ficou muito séria, e respondeu:
— Diga-lhe que quem tem boca
não manda assoprar.
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