Um sábio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Foi em meados de março de
1883, numa triste, lutuosa noite de quaresma, que cheguei a São Paulo.
As ruas estavam apinhadas de
povo que esperava, com ânsia devota, a passagem de uma procissão. A espaços,
dobravam sinos plangentes e mulheres, sob negros biocos, passavam à pressa,
surdamente, como sombras que desusassem.
O carro, depois de fazer
grandes voltas lentas, deixou-me à porta do Hotel da Boa Vista, na esquina da
ladeira do Porto Geral. Os hóspedes desse casarão taciturno eram, quase todos, estudantes
e, escusado é dizer que me fizeram as honras da casa, não como os árabes
costumam acolher nas tendas aqueles que os procuram, mas como os galos antigos
dos poleiros recebem os frangos novos.
Não me demorei muito tempo no
salão onde o agudo Érico, de mãos para as costas, os óculos brilhando no nariz
afiado, ia e vinha criticando, com furor, aquela “miséria moral” — toda uma
população abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas, pondo no ar puro um fartum
insuportável de suor e de banha. Não, o Estado devia intervir energicamente
opondo-se àquelas cenas ridículas e impróprias de uma cidade civilizada. Outro
acadêmico, esguio e louro, saiu em defesa da religião e do sem ritual,
demonstrando a necessidade desse culto externo. Érico fitou o adversário e
fulminou-o com um dito violento que provocou verdadeira conflagração.
Alguém, rompendo, então, o
grupo, lembrou-se de pedir a minha opinião. “Sim, concordaram todos: que fale o
calouro!...” Tremi e teria, certamente, de sofrer a pena ridícula que me
impunham se o Érico não houvesse anunciado sisudamente:
— Lá vai a procissão,
senhores. Vamos ver as pequenas.
E o bando de hereges abalou,
deixando-me naquela sala imensa e obscura a ouvir os tristes sons da marcha
fúnebre que lá ia. Recolhi ao meu quarto com a minha saudade.
No dia seguinte, cedo, Érico,
que era meu vizinho, bateu à minha porta, chamando-me:
— Ó amigo, é sol nado; venha
contemplar o grande Buda ebúrneo!
Não compreendi àquelas
palavras misteriosas, mas saí e Érico, muito grave, levou-me pelo corredor, em silêncio,
até à sala. Ali, fazendo-me chegar a uma das janelas, disse, mostrando-me a casa
fronteira:
— Vê você esse pardieiro
fechado? é o templo de Buda, o grande Sabedor, o Sete Chaves, o Homo Sapiens. O vulgo ignaro chama-lhe
Justino, o conselheiro Justino. Celibatário e civilista, esse homem conhece
todas as leis, menos as naturais — é assim que detesta a mulher e o vinho, a música
e as flores, a retórica e a salada de pepinos. Vive ali com os livros como São Jerônimo
vivia em Belém. E, fitando-me com pequeninos olhos, agudos estiletes: Conheces
São Jerônimo? Pensas, talvez, que é o marido de Santa Bárbara, por que aparecem
sempre juntos nas invocações? Não, criatura serôdia, essa aliança é iníqua — o
santo nunca quis saber desse sexo comprometedor e, se escreveu à Paula, não
passou disso. Mas deixemos as divagações. Olha, espera o Buda e, se tens relógio,
acerta-o pela sua saída; nove e meia, nem mais, nem menos um segundo.
Efetivamente eu olhava quando
vi sair da casa indicada um homem amarelo, magro, seco e rijo, de preto; os
mesmos óculos que, de longe, lhe escaveiravam o rosto como duas órbitas fundas
e vazias, eram escuros.
Grave, sem olhar para o nosso
lado, seguiu com um bamboleio de corvo, dobrou a esquina e lá foi.
— Viste? pois, meu amigo, se
anotas a tua vida, registra no teu diário este grande acontecimento. Esse homem
sombrio, que parece um inquisidor, é o grande, o incomparável Justino, mais sábio
que Hermes, mais virtuoso que Santo Antônio, mais seco da alma do que um
arenque defumado. É lente; um dos mais respeitados da academia pelo seu grande
saber. As suas preleções são verdadeiras derrubadas de bibliotecas. Se um novo
cataclismo fizesse desaparecer o mundo e tudo que nele existe, esse homem,
recolhido a uma arca, quando as águas baixassem, recomporia toda a ciência do
Direito, desde as leis mais profundas até à mais reles chicana.
Érico, o fecundo Érico, que,
pela sua grande força de generalização, não conseguira sair do curso anexo,
onde era considerado o “ancestral maior”, deu uma volta pela sala, chuchando um
dente, e tornou ponderoso, resumindo numa expressão, já usada por Ésquines com
relação a Demóstenes, toda a sua admiração pelo civilista: “É um monstro!” Mas,
vê tu, continuou com intimidade, espalmando a mão no meu ombro: é um rochedo,
não produz uma linha, não tem um conceito, ninguém lhe atribui uma frase. E
explicou: O homem é como a planta. Queres esterilizar uma árvore? aduba-a em
demasia; cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as folhas, mas as flores
rareiam e quase nunca vem fruto.
O acúmulo de ciência mata as
fontes da imaginação e da crítica. Quase que estou a dizer que a ignorância é
preferível. Um homem como aquele vale por uma congregação e, que deixa? a
memória rápida de uma vida, nada mais. Toda a gente afirma que tem um grande
talento e eu afirmo como toda a gente, mas afirmo por afirmar, porque do
talento desse homem vejo apenas os livros, às centenas, muito bem arrumados nas
imensas estantes. É um carregador de ideias, um estivador de pensamentos: transporta-os
dos compêndios, dos tratados, para as memórias dos alunos. Ou melhor: é uma alfândega,
entende você? uma alfândega onde os autores estrangeiros descarregam as suas
mercadorias e onde os jovens estudantes as vão buscar. É isso! Não, a ciência
não é a esterilidade. Sábio não é simplesmente o que estuda, o que armazena, entesoura
— é o que produz. O que é, em verdade, é um excelente método, isto sim, um
método de vida e de estudo: honra e memória, ascetismo e rijeza. Érico
deixou-me apressado ao ouvir tinir a campainha que anunciava o almoço, mas, a
meio do caminho, voltou dizendo-me:
— Olha, é verdade — hoje não
há aula, mas o homem, para não transigir com o hábito, lá vai a um passeio de
uma hora, certamente fazendo uma preleção erudita, à meia voz, para os botões
da sua sobrecasaca. Vem almoçar, são horas.
O Justino que eu vi nessa
memorável manhã de quaresma, encontrei, dez anos depois, uma tarde, à porta de
um ourives da Rua Quinze de Novembro — muito grave, de preto, óculos escuros, o
cabelo muito empastado e luzente, a tez cor de velho marfim. Vendo-o, passou-me
rapidamente pela imaginação esse tipo tão fielmente retratado pelo incomparável
Queiroz na Correspondência de Fradique
Mendes — o conselheiro Pacheco, o do imenso talento.
Não julguem, porém, os
admiradores do grande mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja capaz de medir
o seu alto valor moral pelo estalão do Pacheco da sátira, não! O que eu analiso
é o tipo físico, é aquele vulto severo e ríspido do homem de negro, metódico,
reservado, taciturno.
O saber de Justino lampejava
nas suas preleções e, se ele não deixou, em corpo perfeito, uma obra que leve o
seu nome mais longe do que o levará a memória ingrata dos homens, aí estão as
suas apostilas, que serviram a quase todos os que legislam para o país, como
clarões passageiros do seu espírito, mas não sei porque, acho que o grande
Pacheco devia ser como o finado Justino e, na assembleia, espetando o dedo para
confundir com uma frase forte a oposição rumorosa, devia ter aquela mesma grave
figura que dava, nas aulas, ao grande mestre o ar divino e ornitoide de um Thot
venerável silvando ciência do alto de um poleiro, com o bico muito curvado e as
negras azas encolhidas e imóveis. Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando foi
imposta a sua jubilação, provocada por um as somo irrefletido e injusto da
mocidade, a minha pena, que sempre foi fiel aos moços, traiu-os nesse dia
aliciando-se ao mestre, porque do seu lado, sobre estar a Razão, estava também
a tradição do prestigio do velho convento.
E agora venho trazer
veneradamente ao seu túmulo o meu preito de antigo aluno e de admirador do
grande estudioso, do enérgico disciplinador e do homem exemplar que viveu moralmente
fechado num programa rígido e seco, só comparável à velha casa em que acabou e
que, no meio das construções modernas da cidade, parecia um protesto forte do
passado, último remanescente ferrenho do arcaísmo, achatado entre as construções
esbeltas do presente.
Como a casa era o homem, que
Deus tenha.
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