Um melodrama em Santo Tirso
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Estou embirrando solenemente
com o título do meu romance. Um melodrama em Santo Tirso, numa terra pacífica e
bem morigerada, cujos habitantes mais notáveis pela sua respeitabilidade, leem
o Flos Sanctorum, e suspiram pelo
tempo dos frades, desses incansáveis moralizadores e benfeitores da população!
Eu podia inventar um enredo
terrível, e tornar editores responsáveis das peripécias mais criminosas do meu
entrecho, alguns habitantes de quem eu tivesse tido razão de queixa, quando
estive em Santo Tirso (porque eu estive em Santo Tirso, oh! patrícios
alfacinhas) mas naquela boa terra não fui ofendido senão pelas pulgas da
estalagem, e, a respeito de pulgas, nem mesmo as industriosas são próprias para
personagens de melodrama.
Mas eu não quero inventar,
quero apenas ser cronista da muito verídica história (chavão infalível) que
passo a contar a quem tiver paciência de me ler, e declaro desde já aos Santo
Tirsenses que, se os fatos, que historio, têm uma aparência melodramática, a
culpa não é minha... é dos acontecimentos.
Anoitecia; à tarde, apesar do
outono ir já adiantado (a ação do meu romance passa-se em novembro), tinha
estado linda, e até mesmo quente; mas ao pôr do sol levantara-se um vento fino
e glacial que ameaçara os prudentes frequentadores da botica com um dilúvio de
catarros e constipações, e os narizes dos veneráveis minhotos, vítimas dum
abuso de confiança atmosférico, tinham obrigado os seus donos a procurarem um
abrigo nos lares domésticos, para não apanharem o ar úmido da noite, quando,
segundo o seu costume, abandonassem o gamão, para voltarem para casa a horas
mortas.
A horas mortas?! Sim, não
posso deixar de confessar que a perversão dos costumes tinha chegado a Santo
Tirso! Uma roda de jovens extravagantes, todos de menos de sessenta anos de
idade, haviam instituído, com grave escândalo das pessoas sérias, o costume de
se recolherem às dez horas!!! Às dez horas! Às dez horas, raça degenerada!
Quando, ao quintal fronteiro à botica, as galinhas se recolhiam à capoeira, não
vos parecia ver passar de envolta com dias as sombras venerandas dos vossos
avós, aconselhando-vos o regresso a casa?! Netos degenerados, as cinzas dos
vossos antepassados tremem de indignação, não vos sentindo ressonar às oito
horas da noite... Horror!
Fatais consequências do
progresso! E por toda a parte vai lavrando este contágio funesto. Tudo está
impregnado de imoralidade; a literatura mesmo está viciada. Ó adoradores do
passado, compadecei-vos de nós! Atualmente leem-se os romances de Alexandre
Dumas, filho. No vosso tempo lia-se o Cavalheiro
de Faublas, e a Justina do
Marquês de Sade. Ó tempos felizes de outrora! Ó moral das passadas eras!
Começo eu a perder-me em
digressões. É um defeito, que confesso humildemente; prometo emendar-me dele, e
vou entrar imediatamente na minha narração.
Começava pois a anoitecer,
quando à porta de uma das melhores casas de Santo Tirso um moço e esbelto
oficial de caçadores se apeava de um cavalo, que mereceria uma descrição
especial, se o meu protesto de me deixar de digressões não fosse ainda tão
recente. Basta dizer-se que o sendeiro de Nicolau Tolentino era um prodígio de obesidade,
comparado com o ente (rebelde a toda a classificação zoológica), em que vinha
montado o nosso jovem oficial.
A casa, junto à qual tinha
parado o intrépido rocinante daquele D. Quixote arregimentado, tinha uma
aparência sedutora para um lisboeta desterrado na província. Via-se que o proprietário
atendera às condições de elegância e conforto, quando mandou construir a casa.
Duas senhoras novas ainda, sofrivelmente feias, um tanto pardas, e ambas de
luneta, adornavam ou desadornavam uma das sacadas. Os sons dum piano
desafinado, (como qualquer piano dum terceiro andar da baixa, e tocado com a
mestria com que o poderia tocar em Lisboa a menina da casa, filha dum
negociante rico, em função de anos com entusiásticos aplausos dos convidados...
se o serviço ao chá foi bom) chegaram aos ouvidos do oficial de caçadores, e
vieram demonstrar-lhe que os instintos fildesarmônicos da nova geração feminina
se revelavam em Santo Tirso com tanto rigor, como na terra das alfaces.
O nosso lisboeta (o rapaz
efetivamente era de Lisboa) cumprimentou aqueles dois exemplares do sexo
feminino, tirados em papel pardo, e perguntou:
— Vossas excelências têm a
bondade de me dizer se mora aqui o Sr. Bernardo da Fonseca Guimarães, antigo
negociante?
— Sim, senhor, respondeu uma
das interpeladas, é meu pai.
— Nesse caso tem a bondade de
lhe dizer que lhe trago uma carta do seu amigo de Lisboa o Sr. Antônio Ricardo
de Souza.
— Ó paizinho tornou a
rapariga, voltando-se para dentro, está aqui um senhor oficial, que o procura.
— Manda subir, Adelaide.
Ao mesmo tempo abriu-se a
porta, e o nosso amigo, depois de ter atado à aldrava a rédea do rocinante (o
arrieiro chamava-lhe rédea, com o mesmo direito com que o governo chama barão a
um lapuz opulento), subiu a escada, no patamar da qual encontrou o nosso
Bernardo Guimarães, em chinelos de mouro, na mão um barrete cônico, em forma de
apagador, e pronto a receber diplomaticamente a visita inesperada.
— Antão bossenhoria traz-me uma carta do meu amigo Antônio Ricardo? Ora
pois, muito estimo, muito estimo. Como está aquele maganão?
— Menos mal!
— Ele dantes padecia muito de
calos!
— Ainda hoje.
— Ora bom, entre aqui para a
sala... como se chama bossenhoria?
Quero apresentá-lo a minhas filhas, a quem dei uma educação, que não a têm
melhor as fidalgas de Lisboa! Como é a sua graça?
— Eduardo Augusto de Almeida
Teixeira.
— Vá entrando, vá entrando que
eu vou ler a carta do meu Antônio Ricardo.
Eduardo Teixeira entrou na
sala, e achou-se em frente das duas pardas, que já tinha visto, e duma
terceira, que estava sentada ao piano, bonita falando em absoluto, e
formosíssima comparando-a com as outras. Lindos olhos pretos rasgados, um pouco
morena, grande a boca, mas não muito desgraciosa, — tal é o retrato da
desalmada pianista.
Eduardo cumprimentou-as; elas
responderam com um comprimento cerimonioso, e ficaram todos em silêncio.
As raparigas olhavam para
Eduardo, como olhariam para um objeto de curiosidade; e o nosso alfacinha, que
não gostava de ser contemplado como se fosse um macaco de espécie raríssima, ou
um embaixador japonês, entendeu que devia sair daquela posição embaraçosa,
lançando mão da primeira banalidade, que lhe ocorresse. Lembrou-se que ao subir
a escada tinha ouvido o La dona é mobile
desfigurado com a maior bulha possível pela pianista provinciana.
Foi uma ideia salvadora!
Eduardo, por conseguinte, puxou os punhos da camisa, torceu o bigode com toda a
afabilidade, tossiu agradavelmente, esboçou no sorriso o prólogo de uma fineza,
e disse com o tom mais melífluo que pôde encontrar:
— Minha senhora, eu assim que
entrei nesta casa, tive uma surpresa muito agradável.
— Sim, então qual foi? tornou
a martirizadora de Verdi.
— Ouvi tocar admiravelmente no
piano um trecho do Rigoletto.
As três meninas olharam umas
para as outras boquiabertas. Finalmente a pianista desfez provisoriamente o
ponto de admiração em que tinha transformado a cara, e exclamou:
— É espantoso! Como conheceu!
— Mas, minha senhora...
observou Eduardo.
— Não admira, é de Lisboa,
interrompeu uma das pardas.
— Mas, minha senhora... acudiu
o lisboeta.
— Frequenta muito o teatro
lírico, tornou a parda no 2.
— Mas, minha senhora continuou
Eduardo já aterrado por aquela insistência.
— Oh! o teatro lírico, acudiu
a pianista em tom inspirado, e arregalando muito os olhos, o santuário do
prazer. Como deve ser belo! Viu a Lotti, Sr. alferes? Tem ouvido o Rigoletto? Como ele conheceu!
Eduardo escandalizou-se; o
espantarem-se de que ele conhecesse La dona é mobile era a maior ofensa que se
podia fazer aos seus conhecimentos musicais, por isso não pôde deixar de
responder:
— Mas, minha senhora, em
Lisboa não há um só gaiato, que não conheça este trecho.
— Ah! é vulgar!
— Sim, minha senhora, é do
domínio do realejo.
Neste momento entrava na sala
o Sr. Bernardo Guimarães. Vinha com uma cara prazenteira, óculos no nariz, e
sorvendo com delícia uma pitada de simonte.
— Antão já se conhecem, bradou ele, olhem que este senhor é afilhado
do nosso Antônio Ricardo. Antão está agora em caçadores 7, e tem licença de um
mês? Anda a ver o nosso Minho. Isto para quem em de Lisboa, não tem que ver.
— Ora se tem, Sr. Guimarães! é
um torrão abençoado. Que deliciosas paisagens, que magníficos panoramas! É
realmente uma província muito pitoresca, e muito curiosa até pelas suas
recordações históricas. Guimarães possui relíquias arqueológicas
importantíssimas, e é pena que as não saibam avaliar devidamente, e que
profanem os venerandos monumentos do berço da monarquia, sarapintando de verde
e azul, por exemplo, a pia do batismo de D. Afonso Henrique.
— Ora, não me venha com
lérias. Os cônegos fizeram muito bem. Estava a pia suja, que metia medo, e
envergonhava a colegiada. Há mais tempo que o deviam ter feito. Vejam como
agora está bonita. Ninguém há de dizer que tem oitocentos anos a tal pia. Vão
lá adivinhá-lo. Agora nem o mais pintado.
E o bom do negociante
confirmava a sua dissertação artística com o silvo estrondoso duma pitada.
— Bossenhoria agora fica conosco alguns dias, tenha paciência. Hei de
lhe dar água da fonte da Maria Velha, que tem a virtude de fazer que quem a
bebe só com muito custo saia de Santo Tirso. Já tem um quarto preparado, vá
descansar um pouco, depois ceia conosco às sete horas, sem cerimônia, sem
cerimônia.
— Ó paizinho, observou a mais
bonita das filhas, este senhor pode ser que esteja costumado a tomar chá e
tostas, veja lá não lhe faça mal cear.
— Oh! não, minha senhora,
muitíssimo obrigado; o meu estômago é duma flexibilidade espantosa, presta-se a
todos os usos gastronômicos das diferentes terras. Isto para um militar é
essencial.
— Bem dito, bem dito, tornou o
Sr. Bernardo, até daqui a pedaço, hein?
— Até já, minhas senhoras; um
criado de vossas excelências.
E Eduardo Teixeira saiu da
sala, guiado pelo seu hospedeiro.
CAPÍTULO 2
Vamos nós, amigo leitor, assistir à ceia do Sr. Bernardo Guimarães. O digno negociante não se deve zangar conosco; eu pelo menos vou com o propósito firme de não lhe aceitar coisa alguma; porque ao amaldiçoado caldo verde, e ao detestável vinho verde tenho um ódio particular. Venho simplesmente, como grande curioso que sou, espreitar o aspecto da mesa, e ver se pesco a conversa dos convivas que deve estar interessante.
Ao pé do respeitável Sr.
Bernardo, está sentado o nosso alferes de caçadores, a cair de sono, segundo
parece; porque as pálpebras cercam-se-lhe a miúdo, e os bocejos, apesar dos
esforços incríveis que faz para os reprimir, tornam-se cada vez mais frequentes.
À esquerda do nosso Eduardo
Teixeira senta-se a veneranda metade do venerando Bernardo. Cinquenta vezes tem
florido a amendoeira desde, que Santo Tirso teve a glória de produzir um dos
mais feios espécimes da fealdade humana. Apesar disso, rosnavam os maldizentes
que um certo mestre de meninos da vila se encarregara do papel de Cireneu, que
ajudasse o Sr. Bernardo a levar aquela cruz desdentada ao Calvário matrimonial.
Línguas danadas, que não poupam nem a virtude... nem os mestres de meninos.
Defronte estava sentado o
sobredito Sr. Temudo (que este era o nome do chichisbeo) homem rubicundo, e de
proporções hercúleas, capaz de levar trinta cruzes principalmente carunchosas
como aquela, ao gólgota mais elevado.
Este senhor estava flanqueado
pelas três meninas da casa, e felizmente para o equilíbrio gastronômico, ficava
ele desse lado da mesa, porque as filhas do negociante, donzelas vaporosas e
ideais, achavam feio comer diante de gente; mas o nosso amigo tratava com muito
cuidado do seu estômago, do coração de D. Belisária Guimarães, e da cabeça do
ex-negociante, porque comia como quatro, deitava olhos ternos à respeitável
matrona, e aconselhava o uso do chinó ao marido, que se queixava de frequentes
constipações na cabeça.
No momento em que eu e o
leitor começamos a espreitar aquela cena doméstica, tinha um formidável prato
de arroz doce entrado em cena, e o nosso Eduardo Teixeira, apreciador dessas
doçuras gastronômicas, atacava-o com um denodo, que honrava sobremaneira o
valor do seu... apetite.
As meninas da casa entretanto
apoquentavam-no com perguntas acerca de Lisboa, do casamento do rei, dos
teatros, dos literatos, enfim, de todas as casas da capital, desse eldorado das
donzelas pretensiosas das províncias.
— Então, diga-me uma coisa, Sr.
Teixeira, como ia vestida a rainha no dia do casamento?
Eduardo, que em questões de toilettes femininos era perfeitamente um
selvagem, e que demais estava saboreando com delícias uma colher de arroz doce,
respondeu com toda a serenidade:
— Ia vestida de verde, branco
e escarlate.
— Uma noiva!
— Sim, minha senhora, trajava
as cores italianas, para mostrar o afeto que tem à sua pátria!
— Mas os jornais não falavam
em tal coisa!
— Ora, os jornais sabem lá o
que dizem, respondeu Eduardo cortando com a colher a questão, e um castelo de arroz
doce, que se formara ao canto do prato, os jornais estão sempre pessimamente
informados.
Ninguém ousou replicar; falara
o oráculo lisbonense, emudeciam os profanos da província.
— O Sr. Eduardo, exclamou a
menina Adelaide, que era uma das pardas, já leu o D. Jaime?
— Já, sim, minha senhora; vossa
excelência também o leu, segundo vejo. É um bonito poema.
— O que é isso do D. Jaime? perguntou o Sr. Bernardo.
— O meu amigo nunca leu aquela
sandice, observou o mestre de meninos em tom... de mestre de meninos, fez bem,
fez bem; é um péssimo livro; tem um erro de gramática, e meia cacofonia; e de
mais a mais é revoltantemente imoral, acrescentou ele, lançando um olhar terno
para a mulher do seu amigo.
— O Sr. Temudo deve ser muito
entusiasta da História da Imperatriz
Porcina, observou Eduardo com a maior gravidade.
— Não desgosto, não desgosto;
mas lá o D. Jaime, não presta para
nada; e aquele pateta do Castilho a elogiá-lo... Ora o Castilho sempre é homem,
que quer ensinar as crianças com um método racional! Como se, para ensinar
meninos, fosse necessário ser racional! Aqui estou eu para prova do contrário.
Ensino os pequenos com a cartilha do mestre Inácio, e no fim de quatro anos
estão prontos. Eu cá sou assim.
— Diga-me uma coisa, Sr. Teixeira,
conhece o Thomaz Ribeiro? perguntou a pianista.
— Se conheço o Thomaz Ribeiro?
Perfeitamente, minha senhora, tornou Eduardo, que tinha adormecido quase,
ouvindo o discurso do Sr. Temudo.
— Então diga-nos como é a
fisionomia do poeta?
— Cabelos louros e olhos
azuis.
— Ah! Também?!
— Também, sim, minha senhora,
estatura ordinária e boca regular!
— E o nariz, e o nariz?
— O nariz, tornou Eduardo
surpreendido em flagrante delito de contemplação diante dum copo de vinho do
Porto, que estava observando à luz; o nariz arrebitado!
— Arrebitado, tornaram as
raparigas em coro, e depois, voltando-se umas para as outras acrescentaram em reza-voce: O autor das Cenas da Minha Terra tem o nariz
arrebitado!
— Já se vê, minhas senhoras,
observou Eduardo, nariz de folhetinista! Todos os folhetinistas têm o nariz
arrebitado!
— Ora essa, então a mana
Emília, respondeu uma das pardas apontando para a pianista, a mana Emília deve
escrever folhetins, tem o nariz arrebitado.
— Exatamente, minha senhora,
se tivesse o nariz aquilino, aconselha-lhe que escrevesse poemas épicos, ou
tragédias de cinco atos!
Eduardo, julgando-se livre de
interrogatórios, dispunha-se a pedir licença para se retirar, quando a mana
Emília acrescentou:
— Gostou do Prato de arroz doce?
— Muito, minha senhora, os
ovos estavam em muito boa conta, açúcar magistralmente distribuído, e a canela
dizia-lhe muito bem!
— Mas eu falo do romance do
Antônio Augusto.
— Ah! O romance está muito bem
escrito, é uma bela obra!
— Conhece o Teixeira de Vasconcellos!
— Ora essa, nisso nem se
fala... sou íntimo amigo dele. Inda vossa excelência me pergunta se conheço o
Teixeira de Vasconcelos!
— Descreva-nos lá a cara dele.
Nós temos muita curiosidade de conhecer a fisionomia dos literatos notáveis!
— Oh! o Antônio Augusto! Tem
cabelos louros e olhos azuis!
— Então todos os literatos de
Lisboa têm cabelos louros e olhos azuis?
— Todos, minha senhora,
excetuando os ultrarromânticos, que esses têm olhos verdes. e cabelo ruivo, e
se me dão licença, minhas senhoras, retiro-me; porque estou caindo de sono e de
cansaço.
E saiu, deixando ficar os seus
hospedeiros, como se vê, perfeitamente conhecedores da fisionomia dos literatos
lisbonenses.
CAPÍTULO 3
No dia seguinte acordou
Eduardo sobressaltado, ouvindo o piano revoltar-se em guinchos desafinados
contra os incríveis tormentos com que uma das meninas martirizava o inofensivo teclado.
Eduardo julgou que seria pelo
menos meio dia; saltou fora da cama, e correu à janela. Um nevoeiro densíssimo
não deixava calcular as horas pela altura do sol. O nosso alferes tinha vindo
na véspera com tanto sono, que nem reparara que havia um relógio em cima da
mesa; quando voltava da janela, deu com ele, e viu que ainda não eram oito
horas!
Com efeito, pouco depois da
aurora ter vindo abrir com os dedos rosados as portas do Oriente, viera a
menina Feliciana (parda no 2) abrir o piano com os dedos cor de cobre, e
sobressaltar Eduardo com aquela desafinação matutina.
O nosso herói arranjou-se à
pressa, e abriu a porta do quarto. Apenas o ex-negociante o sentiu, veio ter
com ele rindo muito.
— Ora viva o nosso mandrião;
vá almoçar, ande que lá tem guardado o almoço. Como passou a noite?
— Perfeitamente; eu peço mil
desculpas do incômodo involuntário que lhe dei; mas vinha tão cansado e com
tanto sono, que, por melhores tenções que formasse, não consegui levantar-me a
horas, mas protesto que será a última vez, que isto me há de suceder.
— Nada... não incomoda, vá
almoçar, ande, e volte depois para a sala ouvir as pequenas tocar piano.
Quando daí a dez minutos o
nosso herói fez a sua entrada na sala, a menina Emília, que estava sentada
junto à janela em atitude melancólica e romanticamente cismadora,
cumprimentou-o suspirando plangentemente; a menina Adelaide fez esforços
incríveis para substituir a camada de sécia que lhe cobria as faces, pela
camada carmínica indicativa de modéstia; e a menina Feliciana, sacerdotisa do
deus Charivari, sacrificou o Míserere do Trovador, para solenizar a entrada de
Eduardo Teixeira.
O Sr. Bernardo, querendo
mostrar ao seu hóspede, que conhecia perfeitamente a música que a filha estava
tocando, assobiava ingenuamente o Pirolito. Eduardo, muito longe de supor que aquilo
era música de Verdi, inclinava-se para a interpretação musical do honrado
negociante.
O nosso alferes foi postar-se
ao pé da menina Emília, ouviu primeiro em silêncio o pseudo-Miserere, e depois, inclinando-se para a provinciana, que
suspirava amiudadamente, disse-lhe a meia voz:
— Está hoje um dia triste, não
acha, minha senhora?
— Ah! Não me fale nisso; dias
assim esmagam-me o coração. Estes dias chubosos
são horríveis para os sofrimentos interiores!
— Vossa excelência padece do
interior... azias de estômago, talvez?!
— Ah! não, senhor, sou
excessivamente nerbosa; o espírito
domina o que há em mim de material!
— Há de lhe fazer muito mal o
café, minha senhora, aconselho-lhe os banhos do mar.
— Para os sofrimentos da alma
não tem a medicina valsamos,
respondeu a provinciana suspirando ruidosamente.
— Na sua idade, minha senhora,
tornou Eduardo, vendo que não havia remédio senão afinar a conversa no tom de
Emília, na sua idade, só uma paixão infeliz produz grandes infortúnios. Ora vossa
excelência pode inspirar, mas não sentir uma paixão infeliz, não julgo os
santo-tirsenses tão falsos de gosto, que algum deles recusasse a felicidade
invejada por todos. Só se a morte lhe veio truncar nas primeiras páginas algum
romance da juventude...
E Eduardo, ufano (com razão)
do romanticismo da sua linguagem, recostou-se na cadeira com gravidade igual à
dum ilustre orador, que ao acabar um discurso monumental acerca do sino da sua
paróquia, é cumprimentado por vários senhores deputados de todos os lados da
câmara, e de todas as cores políticas.
— Oh! mas ver as ilusões
desfolharem-se pouco a pouco, observou a Sra. D. Emília, e ver trocar-se o amor
ideal, que sonhamos, pela vil realidade deste mundo prosaico... é atroz, não é?
— Sofrer tormentos
horríveis... eis a fatal predestinação das almas privilegiadas, tornou Eduardo,
abanando a cabeça lugubremente.
— Diz bem, diz. Ah! não
encontrar eu no mundo uma alma irmã da minha, que compreenda e avalie o meu
afeto! Oh!
— Ih! que maçadora, disse
Eduardo com os seus botões; tem curso completo de romances sentimentais. E o
caso é que não é feia. Vou-me propor a candidato ao trono do seu afeto.
— Ó Feliciana, dizia
entretanto o Sr. Bernardo à menina que tocava piano, toca-me aquele bocadinho
do Ernani, de que eu gosto tanto.
— Qual é?
O ilustre Bernardo começou a
assobiar a Maria Cachucha
aproximadamente.
— Ah! já sei! É a cabatina do soprano. Já toco.
— Eu, minha senhora, dizia
Eduardo em voz cavernosa à sua interlocutora, também por muito tempo vaguei
errante no mundo, sem encontrar a mulher que a Providência me destinava, aquela
que devia realizar os sonhos mais arrojados da minha fantasia. Nenhuma
compreendeu o amor santo e puro que eu lhe queria ofertar... escarneceram-me e
passaram.
— Isto não vai mau, dizia ele
lá de si para si; mas eu daqui a pedaço engasgo-mo. — Sim, minha senhora,
continuava Eduardo entusiasmando-se, só agora posso dizer: Eureka! achei no mundo o anjo que eu sonhava... achei... sim,
encontrei... sim, minha senhora, quero dizer que simpatizei com vossa
excelência desde que a vi, e que serei o mais feliz dos homens, se corresponder
ao meu ardente amor. Lá estraguei o efeito, concluiu ele em aparte, parece-me que este final é do Secretário dos Amantes.
— Eu, Sr. Teixeira, respondeu
a menina, procurando corar, eu aceitaria o seu amor, mas os
homens são tão lisonjeiros...
— Eu sou uma exceção, creia,
minha senhora....
— A mim agradam-me os seus
sentimentos, e simpatizei com o senhor também, logo que o vi; mas...
— O Emiliazinha, bradou o
negociante, vem tocar também.
— Lá vou, paizinho. — CaIe-se,
continuou ela, dirigindo-se a Eduardo.
— Mas eu desejava tanto
falar-lhe mais em particular...
— Pois sim, logo às onze horas
da noite, desça ao quintal, que eu lhe falo da janela do meu quarto; que deita
para lá.
— Oh! quanto lhe agradeço!
— Silêncio!
— Então, que lhe parecem as
pianistas, exclamou o Sr. Bernardo, sorvendo uma pitada, há-as melhores em
Lisboa?
— Qual história! Suas filhas
tocam admiravelmente! Se as levasse à Lisboa, haviam de ser muito admiradas.
— À Lisboa? Nada, isso é muito
longe, lá esteve agora o meu Dionísio; por sinal que há de estar a chegar. Ele
é rapaz, pode ir; mas eu e a minha Belisária, já estamos velhos para essas
danças.
— É verdade, o mano Dionísio
temo-lo cá um dia destes...-muito se divertiu ele por lá provavelmente,
observou a menina Adelaide com um suspiro.
— Deus queira que o Dionísio
se não esqueça de me trazer a música, que lhe pedi. Ó Sr. Eduardo quer ouvir a
ária final da Lucia? perguntou a romântica Emília.
— Pois não, minha senhora, com
todo o gosto, respondeu Eduardo aproximando-se do piano.
— Como a música exprime bem os
sentimentos da alma! observou Emília, quando o viu sentado ao pé de si — eu
adoro as músicas tristes!
— Também eu, minha senhora,
também eu.
— Acho prazer em derramar
lágrimas, quando ouço algum trecho patético.
— Também eu, minha senhora,
também eu.
— Que doce conformidade de
sentimentos!
— Também eu, minha senhora,
também eu, tornou Eduardo distraidamente.
— Que diz?
— Que também me enleva,
emendou ele, essa conformidade de sentimentos. Estou ansioso por ouvir a Lúcia.
Neste ponto vejo-me obrigado a
estigmatizar o meu herói. Tornou-se cúmplice de um assassínio. Para se salvar
da entalação, em que a sua distração o tinha colocado, sacrificou Donizetti, e
a sua ópera magistral. É imperdoável!
Quando o crime de lesa-harmonia
se consumou, e foi devidamente aplaudido por todos os circunstantes, o nosso
Bernardo Guimarães, dirigindo-se ao moço alferes, convidou-o a ir dar um giro
pela vila. Eduardo aceitou o convite com o entusiasmo que os seus ouvidos magoados
lhe inspiravam.
E, depois de ter trocado um
olhar amoroso com a romântica donzela, saiu para ir admirar a vila de Santo
Tirso, e o seu convento.
Nessa mesma noite, pouco
depois das onze horas, estava Eduardo Teixeira colocado no quintal da casa do Sr.
Guimarães, ao pé de uma janela pouco elevada, janela que servia de tribuna,
onde a jovem provinciana, declamava enfaticamente os seus discursos
sentimentais.
Infelizmente para a romântica
oradora, a noite estava fria e úmida, o que tinha por tal forma congelado a pouca
dose de sentimentalismo, de que Eduardo podia dispor, que respondia a uns
protestos de amor ardentes, com uns queixumes sobre a frialdade dos pés, e a um
trecho sublime acerca da lua argêntea, da rainha da noite, com um espirro
acompanhado por uma dissertação científica sobre o perigo das constipações
desprezadas.
Estavam pois aqueles dois
entes poéticos embebidos em tão suaves colóquios quando de repente no quintal
se sentiram passos apressados.
— Que será? bradou Emília
bastante assustada, retira-se depressa, não quero que ninguém o veja aqui.
— Nesse caso é impossível
safar-me, porque estão interceptadas as comunicações!
— Mas como há de ser isto, meu
Deus!
— Como quem quer que for não
se dirige ao seu quarto, conceda-me vossa excelência por um instante licença
que me esconda nele, porque lhe dou a minha palavra de honra, que saio, apenas
o perigo tenha cessado.
E, juntando a ação à palavra,
Eduardo lançou as mãos ao parapeito da janela, e num pulo se achou dentro do
quarto.
Com grande espanto dos dois,
um outro vulto apareceu junto da janela, e, repetindo a manobra de Eduardo,
entrou logo atrás dele no quarto da Sra D. Emília Guimarães.
— Dionísio! bradou aterrada a
romântica donzela.
— Querem ver que é o irmão,
murmurou Eduardo.
— Enbiou-me a Probidência, regongou o recém-chegado com entonação irrepreensivelmente
melodramática, é grande o crime, Sra. D. Emília da Fonseca Guimarães; a
vingança há de ser tremenda, senhor desconhecido!
CAPÍTULO 4
Os meus leitores, se forem imparciais,
hão de confessar, que nunca leram cena de tanto efeito, nem de interesse tão
palpitante.
O Sr. Dionísio, tirano
interino, tipo de janota portoense (vide romances de Camilo Castelo Branco)
vinha embuçado num capote de camelão. Ora sabido é, que todos os embuçados,
mesmo em xales-mantas, são terríveis; mas os embuçados em capotes de camelão
atingem as raias da sublimidade melodramática!
A vítima masculina é Eduardo
Teixeira, que um defluxo, complicado por uma grande frialdade de pés, torna
duplamente interessante aos olhos de todos os leitores compassivos.
A vítima feminina é D. Emília
Guimarães, a qual, compreendendo a situação num abrir e fechar de olhos,
elevou-se rapidamente à altura do seu papel, caindo artisticamente em cima duma
poltrona, à falta de confidente, a quem dissesse como nas tragédias clássicas:
Desmaiar vou! Recebe-me em teus braços.
— Então quem é bossenhoria? Que fazia o senhor neste
quarto? perguntou o Sr. Dionísio, tirando o chapéu desabado dom gesto
majestoso, e armando-se de luneta, à falta de punhal.
— Eu... senhor... eu, tornou
Eduardo, convencido que era o irmão, e cônscio por conseguinte do direito que
ele tinha para fazer a pergunta.
— Dionísio, juro-te que sou
inocente, exclamou a menina Emília, levantando-se rapidamente, e correndo a
ajoelhar-se aos pés do homem de capote de camelão, acredita-me Dionísio.
— Levantai-vos, senhora, vós
não sois culpada; mas o infame sedutor.
— Oh! senhor eu não seduzi
ninguém.
— Calai-vos.
— Dionísio, peço-te justiça, e
não indulgência. Eu não traí os meus deveres, juro-o perante o céu, que estende
sobre as nossas cabeças o seu manto azul, puro como a minha alma.
Exageração de metáfora. Sobre
as suas cabeças estava apenas o teto, que nem era azul, nem puro; porque estava
muito sujo das moscas.
— Pode acreditar o que sua
irmã lhe diz, atalhou Eduardo, posso asseverar-lho debaixo da minha palavra de
honra.
— Minha irmã? As filhas da
casa de Val-de-Camellos portam-se dum modo mui diferente do desta menina,
indigna mesmo de ostentar o nome honrado de seu pai, o Sr. Bernardo Guimarães.
— Não lhe admito mais
insultos, Sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, tenho a honra de lhe apresentar
meu marido, o Sr. Eduardo Augusto de Almeida Teixeira.
— Perdão, perdão, minha
senhora, interrompeu com vivacidade o moço alferes, eu não hesitaria um momento
em a chamar minha esposa, se devesse a vossa excelência uma reparação, mas não
há coisa alguma que a isso se assemelhe, e, visto este senhor não ser seu
irmão, vou ter com ele uma explicação mais corrente. Direi pois ao Sr. Dionísio
de Val-de-Camellos, que está perfeitamente equivocado a meu respeito. Esta
senhora lhe explicará, se a isso quiser descer, o modo porque entrei no quarto
dela. Poder-lhe-ia eu perguntar também o motivo porque veio cá meter o nariz.
Contudo, dir-lhe-ei unicamente que não tenho que lhe dar satisfações, a não ser
num sítio mais conveniente do que este a explicações da natureza, das que hão
de ter lugar entre nós. O modo insolente com que me tratou a princípio, merece um
a correção, e há de tê-la. Estou às suas ordens.
— Um duelo, e por minha causa,
bradou Emília, despenteando-se e procurando arranjar um olhar desvairado, oh!
não façais com que o sangue venha manchar as minhas vestes virginais.
— Vamos embora, Sr. Dionísio.
— Vamos lá, respondeu o homem
de capote de camelão, em tom um pouco menos arrogante.
— Suspendei! Dionísio, Sr.
Eduardo, horror! Meu Deus, valei-me!
E desmaiou.
“Bravo!” — diria um espetador
do teatro normal, entusiasta da Dama de
S. Tropez.
Eu e o leitor aplaudimos silenciosamente,
e vamos seguir os nossos dois heróis, que saíram pela janela, perdendo-se assim
todo o efeito de uma saída solene pela porta de fundo, cujos batentes de
papelão se abrissem de par em par.
Dionísio e Eduardo
atravessaram o quintal silenciosos; chegando a uma portinha que deitava para a
estrada, o Sr. de Val-de-Camellos tirou uma chave que trazia na algibeira,
abriu a porta, e os dois contendores saíram.
— O sangue de um de nós há de
ser hoje derramado, vociferou o ilustre janota do Porto, com tétrica entonação.
— Está dito; mas, a propósito,
parece-me que não temos remédio senão jogar o soco; porque não temos armas, nem
padrinhos, de sorte que o nosso duelo tem todas as condições de irregularidade.
— Ora diga-me uma coisa,
tornou Dionísio, descendo das regiões melodramáticas ao terreno das explicações
prosaicas, isto não se poderia conciliar amigavelmente?
— Oh! homem, isso é
impossível, o senhor descompôs-me atrozmente, abusando da identidade do seu
nome com o do irmão de Emília, e realmente eu não vim ao Minho para receber
descomposturas.
— Oh! senhor, tenha paciência,
a Emília gosta dessas coisas, e eu não tive remédio senão fazer aquela cena. Eu
não tinha intenção ofensiva. Mas que relações tem o senhor com a rapariga?
— Um simples namorico.
— Olhe; tornou Dionísio
coçando a cabeça, a D. Emília Guimarães é uma senhora muito estimável.
— Não duvido.
— Muito prendada!
— Apoiado.
— Formosíssima, continuou o Sr.
de Val-de-Camellos animando-se pouco a pouco.
— Pois não!
— Espirituosa! bradou o homem
encaixando a luneta majestosamente no rubicundo nariz.
— Oh!
— Senhora, a quem amo
delirantemente!
— Muitos parabéns, Sr.
Dionísio, muitos parabéns!
— Única mulher, que me pode
tornar feliz.
— Oh! Sr. Dionísio, não me
comova!
— Adoro-a, senhor, adoro-a
corno a uma estrela, que reluz nas trevas do meu viver.
— Bravo, ia-me arrancando
lágrimas.
— E tem um dote de vinte
contos de réis! concluiu o homem do capote de camelão com sublime expressão de entusiasmo.
— Muito bem, Sr. Dionísio, muito
bem. Permita-me que o abrace. Que rasgos de sentimento!
Comoveu-me profundamente. Foi
o coração quem lhe ditou essas frases entusiásticas. Esse argumento dos vinte
contos revela claramente a pureza dos seus sentimentos. Ó patriarcal Dionísio,
cedo-vos Emília. Não serei eu quem vá perturbar a felicidade conjugal, tão
solidamente baseada. O amor, fugindo das grandes cidades, vem, segundo vejo,
aninhar-se à sombra de vinte contos nos corações desinteressados dos jovens
provincianos. Sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, não servirei de
obstáculo à sua felicidade. Adeus, seja venturoso!
— Oh! muito obrigado, generoso
desconhecido! volveu Dionísio, que estava decididamente infetado de
romanticismo sombrio.
— Amanhã parto para o Porto.
Deixo-lhe o campo livre.
— Espero que me perdoe a
involuntária ofensa.
— Não falemos nisso. O que lá
vai, lá vai. Adeus.
— Adeus. Disponha do meu fraco
préstimo.
Se os nossos dois amigos
estivessem em Lisboa, tinham ido juntos a uma ceia no Mata, ceia, que (se eles
fossem bem conhecedores dos costumes portugueses em matéria de duelo) deveriam
ter encomendado antes do desafio.
Assim, Dionísio embuçou-se
simplesmente no capote de camelão, e voltou para a cama, onde ressonou pacificamente
o resto da noite, sonhando que tinha comprado, com o dote de Emília, uma junta
de bois, e dois pedaços de terra, em que semeara milho, obtendo uma colheita
formidável, e granjeando deste modo tal consideração em Santo Tirso, que tinha
sido nomeado por unanimidade de votos... juiz eleito.
Eduardo meteu-se na cama,
aqueceu os pés, transpirou muito, e no outro dia estava quase livre do defluxo
teimoso, que o apoquentara tanto.
Apesar de ter tido a
felicidade de se curar com rapidez, o nosso alferes, que era um rapaz prudente,
jurou nunca mais ter namoro com raparigas românticas em noites de novembro!
CAPÍTULO 5
Ainda que as intenções
madrugadoras de Eduardo Teixeira fossem as mais sinceras deste mundo, passou
segunda vez pelo desgosto de não assistir ao almoço da família. O nosso alferes
chegou a convencer-se de que o almoço em Santo Tirso, como a tremenda nos conventos dos monges
negros, era lá por alta noite.
Quando entrou na sala achou a
menina Emília sozinha sentada ao piano. O vestido branco, que tinha envergado
apesar do intenso frio, o cabelo muito de propósito em desalinho, as olheiras,
que suponho tinham origem idêntica à das do Silvestre da Silva, de Camilo
Castelo Branco, mostravam que Emília se tinha caracterizado convenientemente
para representar a última cena de um melodrama.
Quando viu Eduardo,
levantou-se, e caminhou a encontrá-lo, hirta e vagarosa. O jovem oficial
estacou à porta pasmado.
— Qual dos dois morreu?
perguntou ela solene e lugubremente.
— Fui eu, minha senhora
Seguiu-se um curto silêncio.
— O senhor está zombando de mim?
tornou Emília.
— Não, minha senhora, estou
respondendo à pergunta de vossa excelência Com efeito, morri para o seu amor,
Sra. D. Emília. Interroguei o meu coração, achei-o frio demais para sentir uma
dessas paixões ardentes, que vossa excelência deve inspirar. Não acontece o
mesmo com Dionísio. Minha senhora, vim descobrir um vulcão em Santo Tirso,
desmentindo por esta forma a geografia. Esse Vesúvio desconhecido é o coração
do Sr. de Val-de-Camelos... Ontem os discursos de Dionísio, se não me aqueceram
os pés, que tinha muito frios, como vossa excelência sabe, pelo menos
aqueceram-me... o coração. Na lava candente, que brotou espontânea do peito
daquele jovem, acendi eu o lume pronto da generosidade. Entendi que devia
aconselhá-la a visitar essa cratera de paixão. Asseguro-lhe que se há de
abrasar. Digo-lho eu.
— Não zombe tanto de mim, Sr.
Eduardo. Se tive ligeiro namoro com esse rapaz, o amor verdadeiro, que sinto
agora, dissipou completamente esse frívolo galanteio.
— Mas, minha senhora, vossa
excelência deve fazer a felicidade dum Dionísio. Atenda, por amor de Deus, à
influência dos nomes nos destinos dos indivíduos. O nome de Dionísio dá logo a conhecer
que o possuidor deve ter um caráter patriarcal. Ora casem, casem, meus pombinhos,
tenham muitos filhos, e sejam muito felizes.
— Assim me despreza, sabendo
que o amo!
— Não, minha senhora, não
creia tal. Hei de ser sempre o maior dos seus admiradores.
— E mais nada?
— E de vossa excelência o mais
atento venerador.
— Ingrato, pérfido! Disse-lhe que
o amava, menti-lhe, detesto-o!
E a romântica menina ia
aproveitar a situação, e a proximidade duma poltrona para desmaiar, quando
felizmente entraram as duas manas.
Acabados os comprimentos
preliminares:
— Que pena tenho, minhas
senhoras, de as ter conhecido, disse Eduardo; os momentos deliciosos, que aqui
passei, servem apenas para tornar mais pungente a saudade, que me vai atormentar.
— Por que, deixa-nos? bradaram
em coro as três provincianas.
— Sim, minhas senhoras, recebi
ontem notícia de ter obtido passagem para um regimento da capital, de forma que
hoje mesmo tenciono partir para o Porto.
— Partir, quem fala aqui em
partir? bradou o Sr. Bernardo que entrava nesse instante.
— Eu, Sr. Guimarães, replicou
Eduardo, que, depois de lhe agradecer imenso o modo amabilíssimo com que me
recebeu, lhe peço agora as suas ordens para o Porto e para Lisboa.
— Mas por que não se demora
pelo menos alguns dias?
— Sou militar, Sr. Guimarães,
e devo cumprir à risca a ordem que recebi.
— Esta é que eu não esperava!
— Ingrato, e eu amava-o tanto,
murmurou Emília, recostando-se na poltrona.
— Então, minha senhora, cá
fica Dionísio para a consolar. É um belo rapaz, dum caráter excelente, e com
alguma aplicação pode-se tornar-se um herói de romance. Dê-lhe vossa excelência
vinagre todos os dias, e receite-lhe uma dose forte de Visconde de Arlincourti
e verá como faz do Sr. de Val-de-Camellos um rapaz ideal. Vou para Lisboa
formar votos pela sua felicidade.
***
Nessa mesma tarde, Eduardo Teixeira
empoleirado no seu fiel rocinante, dizia adeus a Santo Tirso, depois de ter
aturado uma cena patética de despedida, tal como a poderia imaginar o mais
lamuriento autor de melodramas.
O Sr. Dionísio Antunes de
Val-de-Camelos, veio com grato coração, e com um jumento chibante, em que
montara, acompanhar o nosso herói à travagem; onde se despedia de Eduardo,
protestando-lhe eterno agradecimento, e amizade constante.
Dionísio Antunes continua
serenamente o namoro com Emília, sujeitando-se contudo a uma dieta rigorosa, a
ver se abate um pouco a sua nutrição antirromântica.
O Sr. Temudo cada vez embirra
mais com o D. Jaime; e quando, em
doces colóquios amorosos com D. Belisária Guimarães, interrompe a conversação
íntima para falar da depravação do século, cita o enredo do D. Jaime, e vela o rosto pudicamente com uma toalha de mãos. Belisária
sorve com indignação uma pitada de simonte.
Eduardo Teixeira, diz-nos pessoa fidedigna, que
passa bem de saúde, sendo contudo muito sujeito a ataques de nervos, que o assaltam
sempre que ouve... um piano!...
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