12/09/2017

Romantismo (Conto), de Artur Azevedo


Romantismo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
— Então, Rodolfo, decididamente, não te casas com a viúva Santos?

— Nem com ela, nem com outra qualquer. E peço-lhe, meu pai, que não insista sobre esse ponto, para poupar-lhe o desgosto de contrariá-lo. O casamento assusta-me; é a destruição de todos os sonhos, o aniquilamento de todas as ilusões. Deixe-me sonhar ainda. Tenho apenas vinte e cinco anos.

— Tu o que tens é uma carregação de romantismo e preguiça, que me aborrece deveras. O teu prazer, meu mariola, é andar envolvido em aventuras de novela, desencaminhando senhoras casadas, procurando amores misteriosos e noturnos, paixões de horas mortas, de chapéu desabado e capa. Olha que um dia vem a casa abaixo! Don Juan, quando menos pensava, lá se foi para as profundas do inferno!

— Entretanto, observou Rodolfo a sorrir, Don Juan também usava capa, e dizem que quem tem capa sempre escapa.

— Ri-te! Ri-te! um dia hás de chorar!

E o doutor Sepúlveda pôs-se a medir com largos passos nervosos o assoalho do gabinete.

De repente estacou, sentou-se, e, voltando-se para o filho:

— Que diabo! disse, a viúva Santos é uma das senhoras mais lindas que conheço! Não se diga que te estou metendo à cara um estupor!

— Fosse a própria Vênus!

— É mais, muito mais, porque a Vênus não tinha duzentos contos de réis em prédios e apólices.

— Ora, sou bastante rico, e o senhor, meu pai, não sabe o que há de fazer do dinheiro. A sua banca de advogado rende-lhe uma fortuna todos os anos e eu tenho a satisfação de lhe lembrar que sou filho único.

— A minha banca, maluco, há muito tempo não rende o que rendia no tempo em que os cães andavam com linguiças no pescoço. O que te ficou por morte da tua mãe, e o que te posso dar, ou deixar, é pouco para a tua dispendiosa vida de rapaz romântico, anacrônico e serôdio.

— Tenho ainda meu padrinho, o general.

— Pois sim! Teu padrinho é muito bom, sim senhor, muita festa pra festa, meu afilhado pra cá, meu afilhado pra lá, mas olha que daquela mata não sai coelho.

— É extraordinário o interesse que o senhor toma por essa viúva Santos!

— Não é por ela, é por ti, pedaço de asno! Vocês foram feitos um para o outro, acredita, e o que mais lhe agrada na tua pessoa é justamente esse feitio que tens, de Antony de edição barata.

— Ela nunca me viu.

— Nunca te viu, mas conhece-te. Pois se não lhe falo senão do meu Rodolfo! Levei-lhe a tua fotografia, aquela maior... do Pacheco... aquela em que estás tão bonito, que até me parece a tua mãe...

— Que tolice! minha mãe com bigodes!

— Os bigodes não, mas os olhos, a boca e o nariz parecem tirados de uma cara e pregados na outra.

— Mas se o senhor lhe levou o meu retrato, por que não me trouxe o dela?

— Disso me lembrei eu. Infelizmente nunca se fotografou. Se eu lhe apanhasse o retrato, oh! oh! mostrava-to, e estou certo que não resistirias.

— O senhor mete-me medo! Para evitar uma asneira de minha parte, hei de fugir da viúva Santos como o diabo da cruz!

— Disseste que me interesso por ela; e quando me interessasse? Não é filha de um bom camarada, o Teles, que morou comigo quando éramos estudantes, e se formou em Olinda no mesmo dia que eu? — Não imaginas o prazer que tive quando recebi uma carta de Rosalina — ela chama-se Rosalina — dizendo-me: “Venha ver-me; quero conhecer um dos melhores amigos de meu pobre pai.”

— O pai é morto?

— Há muitos anos. Morreu juiz municipal nas Alagoas. Deixou a mulher e os filhos na mais completa pobreza, mas os rapazes arranjaram-se no comércio, e lá estão em Pernambuco em companhia da mãe. A Rosalina, essa casou-se com um negociante aqui do Rio, o Santos, que a viu por acaso uma vez que teve de ir a Pernambuco tratar de negócios.

O doutor Sepúlveda aproximou a sua cadeira par mais perto do filho e comentou:

— Alguém disse que a viúva é como a casa que está para alugar: há sempre lá dentro alguma coisa esquecida pelo antigo inquilino. Bem vejo, meu filho: o que te desgosta é esse Santos, esse marido, esse inquilino; pois não tens razão. O casamento de Rosalina foi obra dos irmãos — um casamento de conveniência. A pobre rapariga sacrificou-se à felicidade dos seus. O coração entrou ali como Pilatos no Credo. Oito dias depois de casados, os noivos vieram para o Rio de Janeiro. Seis meses depois morreu o marido, mas antes disso teve a boa ideia de chamar um tabelião e fazer testamento em favor dela. Ofereço-te um coração virgem, meu rapaz; aceita-o, e com isso darás muito prazer a teu pai e ao general, teu padrinho, que consultei a esse respeito, e é inteiramente da minha opinião.

Rodolfo ergueu-se, espreguiçou-se longamente, e disse, com os braços estendidos, e a boca aberta num horroroso bocejo:

— Ora, meu pai, não falemos mais nisso. E não falaram mais nisso.

O doutor Sepúlveda foi ter com o general, e contou-lhe a relutância do afilhado.

— Mas hei de teimar, seu compadre, hei de teimar!

— Não teime. Você não arranja nada. Aquele que está ali não se casa nem à mão de Deus Padre.

— É o que havemos de ver, seu compadre, é o que havemos de ver”...

II
Dois dias depois, Rodolfo sentia-se abalado pela insistência paterna, e estava quase disposto a pedir ao doutor Sepúlveda que o apresentasse à viúva Santos, quando o correio urbano lhe trouxe uma carta concebida nos seguintes termos:

“Rodolfo — Se não é medroso, esteja amanhã, quinta feira. Às 8 horas da noite, no largo da Lapa, junto ao chafariz. Ali encontrará uma senhora idosa, vestida de preto, com o rosto coberto por um véu. Faça o que ela indicar. Trata-se de sua felicidade.”

A carta escrita com letra de mulher, em papel finíssimo, não tinha assinatura, e exalava um delicioso perfume aristocrata. Rodolfo leu-a, releu-a três vezes, e guardou-a cuidadosamente. Ocioso é dizer que a viúva Santos varreu-se inteiramente da sua imaginação, excitada agora pelo misterioso da aventura que lhe propunham.

Foi ao largo da Lapa. Por que não havia de ir? Poderia recear uma cilada? Ora! no Rio e janeiro não há torres de Nesle nem Margaridas de Borgonha.

Já lá encontrou a velha, junto do chafariz. Ela foi ao seu encontro, cumprimentou-o, e, dirigindo-se a um coupé estacionado a alguns passos de distância, abriu a portinhola e com um gesto convidou-o a entrar. Rodolfo não hesitou um segundo; entrou; a velha entrou também, e o coupé rodou na direção do Passeio Público.

— Aonde vamos? perguntou ele.

A velha disse-lhe por gestos que era muda, e abaixou os stores.

Rodolfo percebeu que o carro entrou na rua das Marrecas, e dobrou a dos Barbonos; depois não pode saber ao certo se tomou a rua dos Arcos ou a de Riachuelo. As rodas moviam-se vertiginosamente. De vez em quando dobravam uma esquina. Dez minutos depois, o moço ignorava completamente se se achava em caminho e Botafogo ou de Vila Isabel, da Tijuca ou do Saco do Alferes. Quis levantar um store. A velha opôs-se com um gesto precipitado e enérgico. Ele caiu resignadamente no fundo do carro, e deixou-se levar. Ora, adeus!

A viagem durou seguramente uma hora. Quando o coupé estacou, a velha ergueu-se, tirou um lenço da algibeira, e tapou os olhos do moço, que se deixou vendar humildemente, sem proferir uma palavra.

Ela ajudou-o a descer, e levou-o pela mão, sempre de olhos tapados, como Raul de Nagis nos Huguenotes. Pelo cascalho que pisava e pelo aroma que sentia, Rodolfo adivinhou que estava num jardim, caminhando em deliciosa alameda.

Depois de andar cinco minutos, guiado sempre pela mão encarquilhada da velha, esta murmurou baixinho: — Adeus, seja feliz! — e afastou-se. Ao mesmo tempo, uma voz argentina, uma voz de mulher que parecia vir do alto e soou musicalmente aos seus ouvidos, disse-lhe: — Desvenda-se, Rodolfo.

Ele arrancou o lenço dos olhos. Estava efetivamente num jardim, defronte de uma das partes laterais de um belo prédio moderno. A lua, iluminando suavemente aquele magnífico cenário, batia de chofre na sacada em que se achava uma mulher vestida de branco com os cabelos soltos.

— Onde estou eu? perguntou ele, e olhou para o horizonte, a ver se algum morro conhecido o orientava. Nada! — nos fundos da casa erguia-se, é verdade, um morro, mas tão próximo e tão alto, que o moço do lugar em que se achava, não lhe podia notar a configuração.

— Onde estou eu? repetiu.

Por única resposta a mulher de cabelos soltos deixou cair uma escada de seda, cuja extremidade ficou presa à sacada; e Rodolfo subiu por ela com mais presteza do que o faria o próprio Romeu.

Ao entrar na alcova, fracamente iluminada pela meia luz de um bico de gás, ficou deslumbradíssimo. Estava diante de um prodígio de formosura! O pasmo embargou-lhe a fala; quis soluçar um madrigal, e não teve uma palavra, uma sílaba, um som inarticulado!

— Amo-te, disse ela com uma voz que mais parecia um ciciar de brisa; amo-te muito, Rodolfo, e quero que também me ames.

— Oh! sim, sim... quem quer que sejas... eu amo-te, e...

Uma gargalhada o interrompeu. Era o doutor Sepúlveda que entrava na alcova e dava mais luz ao bico de gás.

— Meu pai!

— Teu pai, sim, meu romântico. Era esse o único meio de te fazer cá vir. Ora aqui tens a viúva Santos. Agora recuas, se és homem!

O casamento ficou definitivamente tratado naquela mesma noite.

III
No dia seguinte o doutor Sepúlveda, nadando em júbilo, foi ter com o general e contou-lhe tudo.

— Então? não lhe dizia, seu compadre?

— Ora muito obrigado! respondeu o outro com a sua rude franqueza de velho militar; por esse processo você poderia casá-lo até com a Chica Polca!

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