Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Ó mulher, onde meteste o
dinheiro?
— Que dinheiro, homem de Deus?
— Não te queiras fazer fina!
Responde e deixa-te de histórias. Que fizeste do dinheiro que estava no pé de
meia?
— No pé de meia não havia
vintém. O que havia no pé de meia foi-se na barrela.
— No pé de meia havia duzentos
e tantos mil-réis em muito boas notas, que eu lá guardei. Vamos, deixemo-nos de
brincadeiras: Onde meteste o dinheiro?
— Se eu te digo que não havia
vintém...
— Vintém não havia, havia
notas, já te disse, onde estão?
— Foram por água abaixo, na
lavagem.
— Mau! mau! Olha que não estou
disposto a rir. Quem sabe se a senhora quer imitar o ministro? Imitar, digo
mal, porque ele queima. Vamos, diga onde pôs o dinheiro, se não quer que eu
faça aqui uma das minhas. Depois... Aqui del-rei!
— Homem, queres que eu seja
franca?
— Sem dúvida.
— Pois o dinheiro... o
dinheiro... levou-o o burro.
— Que burro, senhora? Para que
quer um burro duzentos e tantos mil reis?
— Foi o burro. Ele não levou
os duzentos mil reis de pancada, foi levando aos poucos.
— Como? Então o burro entrava
no quarto, abria a meia, tirava o dinheiro que queria?...
Homem, mulher, tu pensas que
eu sou idiota?
— Quem tirava não era o burro,
Manoel.
— Então quem era?
— Era eu.
— Tu? Então que história é
essa do burro?
— É que era o burro que o
levava. Tu nunca jogaste no bicho?
— Eu? A senhora bem sabe que
eu não tenho vícios.
— Pois foi o burro do jogo que
levou o dinheiro.
O caso foi assim: Conheces a
mulher do Cunegundes, uma ruiva, que tem dois filhos pequenos?
— Conheço. Mas que vem cá
fazer a mulher do Cunegundes!
— Ouve. Como sabes o
Cunegundes está de cama há uns pares de meses. Enquanto teve saúde foi um homem
de trabalho, atirava-se a tudo para ganhar a vida — trazia a casa farta, a
mulher limpa, os pequenos sempre bem vestidos; a moléstia, porém, acabou com
tudo isso. O pobre homem para não morrer à míngua, aprendeu a fazer charutos,
mas os charutos dão pouco. Que eram cem charutos por dia para uma família como
aquela? A Adelaide andava varada, pálida: os pequenos, rotos, descalços, pediam
pão de casa em casa; até fazia pena. Quanta vez eu aqui lhes dei comida. Ah!
meu amigo, quando um pai de família cai numa cama...
— Pois sim, mas vamos ao
burro.
— Vamos. As coisas estavam
nesse pé quando, um belo dia, a Adelaide, que não tinha um casaco decente para
chegar à janela e andava sempre a chorar, a lamentar-se, pedindo a morte para
ela e para os filhos, apareceu risonha e mais contente do que dantes e, todos
os dias, eu, por entre as frechas da janela, via chegar gente com embrulhos
para a Adelaide: eram queijos, caixas de vinho, fazendas e a Adelaide a deitar
luxo até que um dia saiu de carro como a senhora do doutor.
— E o pobre do marido a fazer
charutos.
— A fazer? a fumá-los, e dos
bons, deitado em lençóis de linho, com fronhas de renda nos travesseiros: um
luxo de príncipe. Eu fiquei a banzar e, como não sou maliciosa, disse comigo: “A
Adelaide tirou a sorte.” E um dia, apanhando-a a jeito, disse-lhe em ar de
pagode:
— Então, sua felizarda, sempre
apanhou um bilhetinho premiado, hein?!
Ela ficou muito espantada e
respondeu:
— Então senhora: eu não jogo
na loteria. Ah! já sei porque a senhora fala — é porque me vê andar assim,
apesar da moléstia do Cunegundes, coitado! Que quer, minha amigai quem não tem
cão, caça com gato.
— Que gato?
— Espera, homem. “Enquanto o
Cunegundes tinha saúde e força eu não me preocupava, mas veio a doença e, a
senhora sabe, as crianças têm fome e o homem da venda não fia, principalmente quando
sabe que o dono da casa está entrevado no fundo de uma cama. Procurei trabalho.
Só me apareciam charutos; desanimei. Foi então que uma comadre minha, cujo
marido anda longe, apanhando borracha nos sertões do Amazonas, disse-me que eu aventurasse
alguma coisa no touro. Aventurei. A primeira marrada custou, isso custou, mas
hoje... E desatou a rir, só para que eu lhe visse os dentes obturados a ouro,
como lá diz o outro. Piquei a olhar para ela e, com franqueza, estranhei aquela
alegria, porque a Adelaide era alegre, mas agora dá umas gargalhadas... “Então
a senhora vive à custa do touro?”
— É verdade, respondeu ela.
— E seu marido?
— Ah! meu marido não sabe.
Para uma mulher ser feliz no jogo do bicho deve guardar segredo, principalmente
para o marido. A senhora porque não tenta? Tu sabes que não gosto de bois, não
gosto de touradas. Boi só vaca, essa mesma cozida. E disse-lhe:
— Não, D. Adelaide, eu não
gosto de bois.
— Não gosta! A senhora diz
isso porque ainda não experimentou. Eu também não gostava e hoje não posso
passar sem ele. Experimente, experimente — e dobrou-se toda noutra gargalhada. Fiquei
pensando e depois que ela saiu resolvi experimentar.
— Tu?
— Então? No primeiro dia
mandei pedir porco; deu o burro; no segundo dia mandei buscar elefante, deu
outra vez o burro. Desconfiei de tanto burro. Diabo! isso não é um jogo, é uma
estrebaria! Quem sabe se não é Deus que me está mostrando o caminho da
felicidade! pensei. À noite sonhei que estava agarrando um burro pelo rabo. Foi
naquela noite em que te agarrei, não te lembras?
— Sim, mas eu não sou burro.
— Nem eu te agarrei pelo rabo.
De manhã, muito cedo, fui ao pé de meia e mandei comprar no burro... coice!
E... de coice em coice, meu velho, fiquei a tinir. A Adelaide vive
regaladamente à custa do touro, eu com o burro só consegui amofinações e
misérias.
— Então os duzentos e tantos mil-réis
foram todos no burro?
— Todos.
— Muito bem.
— Antes eu tivesse jogado no
touro — ainda ontem deu.
— Se a senhora tivesse jogado
no touro ia agora mesmo, como um fuso, para o olho da rua, entende? O touro dá
todos os dias, mas se me constar que a senhora joga em semelhante bicho eu faço
um banze dos diabos nesta casa. Touro não é bicho que entre em casa de família,
está ouvindo?
— E a Adelaide?
— Que tenho eu com a Adelaide?
— Ela não joga em outro.
— Por que o marido está
entrevado, mas eu não estou, com a graça de Deus. Enfim — no burro pode jogar
uma ou outra vez, pouco, com touros é que não quero negócios. Se eu souber que
me entrou touro aqui em casa a senhora vai para o olho da rua em dois tempos. É
o que lhe digo. (E foi; todos os jornais noticiarem o caso comentando-o). O
homenzinho, que apertara os cordões à bolsa, levando para a Caixa Econômica o
que dantes deixava nas meias, começou a desconfiar dos lautos jantares que a
mulher lhe apresentava — eram verdadeiros festins — e, farejando os pratos,
perguntava desconfiado:
— Mulher, isto é burro?
— Tudo é burro, pelo moderno.
— Então agora não dá coices?
— Qual! está manso como
cordeiro.
— Pois sim, mas não te fies.
Depois apareceram sedas,
chapéus, costumes de pano francês, joias, camarotes do lírico.
— É burro?!
— Então! que há de ser?
— Olha lá, mulher — acho muita
carga para um burro só.
— A culpa não é minha... se
ele dá.
Um dia, porém, o homem entrou
em casa justamente na ocasião em que a mulher fazia jogo e viu. Que viu ele!
Sei apenas o que os jornais disseram: que ele travou dum pau e desancou a
mulher. Sem razão disse a coitada ao delegado, explicando o caso: na ocasião em
que o marido entrou no quarto ela abria a porta de espelho do guarda casaca e o
homem tomou por uma desobediência o que era a sua própria imagem.
— Eu permiti que ela jogasse no burro, senhor
doutor, mas o que lá vi de burro não tinha nada.
— Então que era?
— Ora! que havia de ser?
palpites da Adelaide.
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