Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando a
cabocla Umbelina apareceu grávida, o pai moeu-a de surras, afirmando que daria
o neto aos porcos para que o comessem.
O caso não
era novo, nem a espantou, e que ele havia de cumprir a promessa, sabia-o bem.
Ela mesma, lembrava-se, encontrara uma vez um braço de criança entre as flores
douradas do aboboral. Aquilo, com certeza, tinha sido obra do pai.
Todo o tempo
da gravidez pensou, numa obsessão crudelíssima, torturante, naquele bracinho
nu, solto, frio, resto dum banquete delicado, que a torpe voracidade dos
animais esquecera por cansaço e enfartamento.
Umbelina
sentava-se horas inteiras na soleira da porta, alisando com um pente vermelho
de celuloide o cabelo negro e corredio. Seguia assim, preguiçosamente, com
olhar agudo e vagaroso, as linhas do horizonte, fugindo de fixar os porcos,
aqueles porcos malditos, que lhe rodeavam a casa desde manhã até a noite.
Via-os
sempre ali, arrastando no barro os corpos imundos, de pelo ralo e banhas descaídas,
com o olhar guloso, luzindo sob a pálpebra mole, e o ouvido encoberto pela
orelha chata, no egoísmo brutal de concentrar em si toda a atenção. Os leitões
vinham por vezes, barulhentos e às cambalhotas, envolverem-se na sua saia, e
ela sacudia-os de nojo, batendo-lhes com os pés, dando-lhes com força. Os
porcos não a temiam, andavam perto, fazendo desaparecer tudo diante da
sofreguidão dos seus focinhos rombudos e móveis, que iam e vinham grunhindo,
babosos, hediondos, sujos da lama em que se deleitavam, ou alourados pelo pó do
milho, que estava para ali aos montes, flavescendo ao sol.
Ah! os
porcos eram um bom sumidouro para os vícios do caboclo! Umbelina execrava-os e
ia pensando no modo de acabar com o filho duma maneira menos degradante e menos
cruel.
Guardar a
criança... mas como? O seu olhar interrogava em vão o horizonte frouxelado de
nuvens.
O amante,
filho do patrão, tinha-a posto de lado... diziam até que ia casar com outra!
Entretanto achavam-na todos bonita, no seu tipo de índia, principalmente aos
domingos, quando se enfeitava com as maravilhas vermelhas, que lhe davam
colorido à pele bronzeada e a vestiam toda com um cheiro doce e modesto...
Eram duas
horas da madrugada, quando a Umbelina entreabriu um dia a porta da casa paterna
e se esgueirou para o terreiro.
Fazia luar;
todas as coisas tinham um brilho suavíssimo. A água do monjolo caía em
gorgolões soluçados, flanqueando o rancho de sapé, e correndo depois em fio
luminoso e trêmulo pela planície fora. Flores de gabiroba e de esponjeira brava
punham lençóis de neve na extensa margem do córrego; todas as ervas do mato
cheiravam bem. Um galo cantava perto, outro respondia mais longe, e ainda
outro, e outro... até que as vozes dos últimos se confundiam na distância com
os mais leves rumores noturnos.
Umbelina
afastou com mão febril o xale que a envolvia, e, descobrindo a cabeça,
investigou com olhar sinistro o céu profundo.
Onde se
esconderia o grande Deus, divinamente misericordioso, de quem o padre falava na
missa do arraial em termos que ela não atingia, mas que a faziam estremecer?
Ninguém pode
fugir ao seu destino, diziam todos; estaria então escrito que a sua sorte fosse
essa que o pai lhe prometia — de matar a fome aos porcos com a carne da sua
carne, o sangue do seu sangue?!
Essas coisas
rolavam-lhe pelo espírito, indeterminadas e confusas. A raiva e o pavor do
parto estrangulavam-na. Não queria bem ao filho, odiava nele o amor enganoso do
homem que a seduzira. Matá-lo-ia, esmagá-lo-ia mesmo, mas lançá-lo aos
porcos... isso nunca! E voltava-lhe à mente, num arrepio, aquele bracinho
solto, que ela tivera entre os dedos indiferentes, na sua bestialidade de
cabocla matuta.
O céu estava
limpo, azul, um céu de janeiro, quente, vestido de luz, com a sua estrela
Vésper enorme e diamantina, e a Lua muito grande, muito forte, muito
esplendorosa!
A cabocla
espreitou com olho vivo para os lados da roça de milho, onde ao seu ouvido
agudíssimo parecera sentir uma bulha cautelosa de pés humanos; mas não veio
ninguém, e ela, abrasada, arrancou o xale dos ombros e arrastou-o no chão,
segurando-o com a mão, que as dores do parto crispavam convulsivamente. O corpo
mostrou-se disforme, mal resguardado por uma camisa de algodão e uma saia de
chita. Pelos ombros estreitos agitavam-se as pontas do cabelo negro e luzidio;
o ventre pesado, muito descaído, dificultava-lhe a marcha, que ela interrompia
amiúde para respirar alto, ou para agachar-se, contorcendo-se toda.
A sua ideia
era ir ter o filho na porta do amante, matá-lo ali, nos degraus de pedra, que o
pai havia de pisar de manhã, quando descesse para o passeio costumado.
Uma vingança
doida e cruel aquela, que se fixara havia muito tempo no seu coração selvagem.
A criança
tremia-lhe no ventre, como se pressentisse que entraria na vida para entrar no
túmulo, e ela apressava os passos nervosamente por sobre as folhas da
trapoeraba daninha.
Ai! iam ver
agora quem era a cabocla! Desprezavam-na? Riam-se dela? Deixavam-na à toa, como
um cão sem dono? Pois que esperassem! E ruminava o seu plano, receando esquecer
alguma minúcia...
Deixaria a
criança viver alguns minutos, fá-la-ia mesmo chorar, para que o pai lá dentro,
entre o conforto do seu colchão de paina, que ela desfiara cuidadosamente, lhe
ouvisse os vagidos débeis e os guardasse sempre na memória, como um remorso.
Ela estava
perdida. Em casa não a queriam; a mãe renegava-a, o pai batia-lhe, o amante
fechava-lhe as portas... e Umbelina praguejava alto, ameaçando de fazer cair
sobre toda a gente a cólera divina!
O luar com a
sua luz brancacenta e fria iluminava a triste caminhada daquela mulher quase
nua e pesadíssima, que ia golpeada de dores e de medo através dos campos.
Umbelina ladeou a roça de milho, já seca, muito amarelada, e que estalava ao
contato do seu corpo mal firme; passou depois o grande canavial, dum verde
d’água, que o luar enchia de doçura e que se alastrava pelo morro abaixo, até
lá perto do engenho, na esplanada da esquerda. Por entre as canas houve um
rastejar de cobras, e ergueu-se da outra banda, na negrura do mandiocal, um voo
fofo, de ave assustada. A cabocla benzeu-se e cortou direito pelo terreno mole
do feijoal ainda novo, esmagando sob a sola dos pés curtos e trigueiros as
folhinhas tenras da planta ainda sem flor. Depois abriu lá em cima a cancela,
que gemeu prolongadamente nos movimentos de ida e de volta, com que ela a
impeliu para diante e para trás. Entrou no pasto da fazenda. Uma grande mudez
por todo o imenso gramado. O terreno descia numa linha suave até o terreiro da
habitação principal, que aparecia ao longe num ponto branco. A cabocla
abaixou-se tolhida, suspendendo o ventre com as mãos.
Toda a sua
energia ia fugindo, espavorida com a dor física, que se aproximava em
contrações violentas. A pouco e pouco os nervos distenderam-se, e o quase
bem-estar da extenuação fê-la deixar-se ficar ali, imóvel, com o corpo na terra
e a cabeça erguida para o céu tranquilo. Uma onda de poesia invadiu-a toda:
eram os primeiros enleios da maternidade, a pureza inolvidável da noite, a
transparência lúcida dos astros, os sons quase imperceptíveis e misteriosos,
que lhe pareciam vir de longe, de muito alto, como um eco fugitivo da música
dos anjos, que diziam haver no Céu sob o manto azul e flutuante da Virgem Mãe
de Deus...
Umbelina
sentia uma grande ternura tomar-lhe o coração, subir-lhe aos olhos.
Não a sabia
compreender e deixava-se ir naquela vaga sublimemente piedosa e triste...
Súbito,
sacudiu-a uma dor violenta, que a tomou de assalto, obrigando-a a cravar as
unhas no chão. Aquela brutalidade fê-la praguejar e ergueu-se depois raivosa e
decidida. Tinha de atravessar todo o comprido pasto, a margem do lago e a orla
do pomar, antes de cair na porta do amante.
Foi; mas as
forças diminuíam e as dores repetiam-se cada vez mais próximas.
Lá embaixo
aparecia já a chapa branca, batida do luar, das paredes da casa.
A roceira ia
com os olhos fitos nessa luz, apressando os passos cansados. O suor caía-lhe em
bagas grossas por todo o corpo, ao tempo que as pernas se lhe vergavam ao peso
da criança.
No meio do
pasto, uma figueira enorme estendia os braços sombrios, pondo uma mancha negra
em toda aquela extensão de luz. A cabocla quis esconder-se ali, cansada da
claridade, com medo de si mesma, dos pensamentos pecaminosos que tumultuavam no
seu espírito e que a Lua santa e branca parecia penetrar e esclarecer. Ela
alcançou a sombra com passadas vacilantes; mas os pés inchados e dormentes já
não sentiam o terreno e tropeçavam nas raízes das árvores, muito estendidas e
salientes no chão. A cabocla caiu de joelhos, amparando-se para a frente nas
mãos espalmadas. O choque foi rápido e as últimas dores do parto vieram
tolhê-la. Quis reagir ainda e levantar-se, mas já não pôde, e furiosa descerrou
os dentes, soltando os últimos e agudíssimos gritos da expulsão.
Um minuto
depois a criança chorava sufocadamente. A cabocla então arrancou com os dentes
o cordão da saia e, soerguendo o corpo, atou com firmeza o umbigo do filho, e
enrolou-o no xale, sem olhar quase para ele, com medo de o amar...
Com medo de
o amar!... No seu coração de selvagem desabrochava timidamente a flor da
maternidade. Umbelina levantou-se a custo com o filho nos braços. O corpo
esmagado de dores, que parecia esgarçarem-lhe as carnes, não obedecia à sua
vontade. Lá embaixo a mesma chapa de luz alvacenta acenava-lhe, chamando-a para
a vingança ou para o amor. Julgava agora que se batesse àquelas janelas e
chamasse o amante, ele viria comovido e trêmulo beijar o seu primeiro filho.
Aventurou-se em passadas custosas a seguir o seu caminho, mas voltaram-lhe
depressa as dores e, sentindo-se esvair, sentou-se na grama para descansar.
Descobriu então a meio o corpo do filho: achou-o branco, achou-o bonito, e num
impulso de amor beijou-o na boca. A criança moveu logo os lábios na sucção dos
recém-nascidos e ela deu-lhe o peito. O pequenino puxava inutilmente, a cabocla
não tinha alento, a cabeça pendia-lhe numa vertigem suave, veio-lhe depois
outra dor, os braços abriram-se-lhe, e ela caiu de costas.
A Lua
sumia-se, e os primeiros alvores da aurora tingiam dum róseo dourado todo o
horizonte. Em cima o azul carregado da noite mudava para um violeta
transparente, esbranquiçado e diáfano. Foi no meio daquela doce transformação
da luz que Umbelina mal distinguiu um vulto negro, que se aproximava
lentamente, arrastando no chão as mamas pelancudas, com o rabo fino, arqueado,
sobre as ancas enormes, o pelo hirto, irrompendo raro da pele escura e rugosa,
e o olhar guloso, estupidamente fixo: era uma porca.
Umbelina
sentiu-a grunhir, viu confusamente os movimentos repetidos do seu focinho
trombudo, gelatinoso, que se arregaçava, mostrando a dentuça amarelada, forte.
Um sopro frio correu por todo o corpo da cabocla, e ela estremeceu ouvindo um
gemido doloroso, dolorosíssimo, que se cravou no seu coração aflito. Era do
filho! Quis erguer-se, apanhá-lo nos braços, defendê-lo, salvá-lo... mas
continuava a esvair-se, os olhos mal se abriam, os membros lassos não tinham
vigor, e o espírito mesmo perdia a noção de tudo.
Entretanto,
antes de morrer, ainda viu, vaga, indistintamente, o vulto negro e roliço da
porca, que se afastava com um montão de carne pendurado nos dentes,
destacando-se isolada naquela imensa vastidão cor-de-rosa.
ESSE CONTO DESGRAÇOU MINHA MENTE!!!!
ResponderExcluirEsse conto me fez refletir por várias horas e acabou que eu dormi refletindo sem saber o sentido da vida
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