Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A velha tapuia Rosa já não
podia cuidar da pequena lavoura que lhe deixara o marido. Vivia só com o filho,
que passava os dias na pesca do pirarucu e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer
e de que tiravam ambos o sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para
o tabaco. Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as
paredes de sopapo, com o chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha
a tapuia em alguma conta o asseio. Trazia o terreiro bem varrido e o porto
livre das canaranas que a corrente do rio vinha ali depositando. E se os
tipitis, as cuiambucas e todos os utensílios caseiros andavam sempre lavados
com cuidado, as redes de dormir pareciam ter saído do tear, de brancas e novas
que sempre se encontravam. Rosa tecia redes, e os produtos da sua pequena indústria
gozavam de boa fama nos arredores. A reputação da tapuia crescera com a feitura
duma maqueira de tucum ornamentada com a coroa brasileira, obra de ingênuo
gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca, e provocara a inveja da
célebre Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar uma fortunazinha com
aquela especialidade, quando a indústria norte-americana reduzira à inatividade
os teares rotineiros do Amazonas. Ana Raimunda seria uma coisa nunca vista no
fabrico de redes de aparato, mas não lhe receava Rosa a competência na tecedura
do algodão e do tucum, talento de que tinha quase tanto orgulho como de haver
parido o mais falado pescador daquela redondeza.
Pedro era em 1865 um rapagão
de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos pequenos, tais quais os do
pai, com a diferença de que eram vivos, e duma negrura de pasmar. A face era
cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de cabelo legítimo, mas com um
cunho de bondade e de candura, que atraía o coração de quantos lhe punham a
vista em cima. Demais, serviçal e alegre até ali. Os viajantes, tocando no
porto do sítio da velha Rosa, seguindo para Alenquer ou de lá voltando, ficavam
cativos da doçura e da afabilidade com que se oferecia o rapaz para os
acompanhar à vila, ou dava conselhos práticos sobre a viagem e os pousos.
Quanto à generosidade, basta
dizer que jamais lhe sucedia arpoar um pirarucu sem presentear com a ventrecha
aos vizinhos pobres, e se num belo dia lhe caía a sorte de matar um peixe-boi
no lago, havia festa em casa. Todos os conhecidos recebiam um naco da carne do
saboroso mamífero, bebiam um trago da cachacinha da velha, e voltavam para o
seu sítio, proclamando com a língua grossa e pesada a felicidade da tia Rosa,
que tinha um filho tão amigo dos pobres. Era o mais destro pescador do igarapé
de Alenquer. Nenhum conhecia melhor do que ele as manhas do pirarucu e da
tartaruga, nenhum governava melhor a leve montaria, nem mandava a maior altura
a grande flecha empenada, que, revolvendo em vertiginosa queda, vinha fisgar
certeira o casco dos ardilosos batráquios. Para o Pedro da velha Rosa, todo o
mês era de piracema. Que se queixassem os outros da avareza da estação. Ele,
voltava sempre para a casa com algum pescado, ao menos uma cambada de arauanãs
ou de tucunarés de caniço. Era um pescador feliz, o diacho do rapaz, e a velha
Rosa devia viver muito contente!
E vivia.
A tapuia passava de ordinário
os dias sentada num banquinho diante do tear, trabalhando nas suas queridas
redes, que lhe pareciam superiores às dos Estados Unidos, com cuja concorrência
vitoriosa lutava debalde a rotineira indústria; e fumando tabaco de Santarém
num comprido cachimbo de taquari, com cabeça de barro queimado. Quando caía a
tarde, depois de ter comido a sua lasca de pirarucu assado ou a gorda posta do
fresco lambaqui, com pirão de farinha d’água, molho de sal, pimenta e limão, ia
sentar-se à soleira da porta, donde contemplava o magnífico espetáculo do pôr
do sol entre os aningais da margem do rio, e ouvia o canto da cigarra, chorando
saudades da efêmera existência, que a tananã oculta, em doce estribilho,
consolava.
É naturalmente melancólica a
gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e
solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação
social, concentra-se a alma num apático recolhimento, que se traduz
externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto.
O caboclo não ri, sorri
apenas; e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se
leem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo
objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras
por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada
pelo silêncio forçado da solidão.
Haveis de ter encontrado,
beirando o rio, em viagem pelos cílios, o dono da casa sentado no terreiro a
olhar fixamente para as águas da correnteza, para um bem-te-vi que canta na
laranjeira, para as nuvens brancas do céu, levando horas e horas esquecido de
tudo, imóvel e mudo numa espécie de êxtase. Em que pensará o pobre tapuio? No
encanto misterioso da mãe d’água, cuja sedutora voz lhe parece estar ouvindo no
murmúrio da corrente? No curupira que vagabundeia nas matas, fatal e esquivo,
com o olhar ardente e cheio de promessas e de ameaças? No diabólico saci-pererê,
cujo assovio sardônico dá ao corpo o calafrio das sezões? Em que pensa? Na
vida? É talvez um sonho, talvez nada. É uma contemplação pura.
Dessa melancolia contínua dão
mostra principalmente as mulheres, por causa da vida que levam. Os homens
sempre andam, veem uma ou outra vez gente e coisas novas. As mulheres passam
toda a vida no sítio, no mais completo isolamento. Assim a tapuia Rosa, que de
nada se podia queixar, com a vida material segura, suprema ambição do caboclo,
foi sempre dada a tristezas; a fronte alta e calma, os olhos pequenos e negros
e a boca séria tinham uma expressão de melancolia que impressionava à primeira
vista. Teria a natureza estampado naquele rosto o pressentimento de futuras
desgraças, ou a mesquinhez da alma humana ante a majestade do rio e da floresta
a predispunha a não oferecer resistência aos embates da adversidade? Era a
saudade do esposo morto ou o receio vago dos fracos diante dos arcanos do
futuro?
Ninguém o podia dizer, mas é
certo que até o princípio do ano de 1865 correram tranquilos os dias no cacaual
da velha Rosa.
Quem não sabe o efeito
produzido à beira do rio pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e
o Paraguai?
Nas classes mais favorecidas
da fortuna, nas cidades principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro.
Mas entre o povo miúdo o medo do recrutamento para voluntário da Pátria foi tão
intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios,
e ali viveram como animais bravios sujeitos a toda a espécie de privações.
Falava-se de Francisco Solano López nos sertões do interior da província como
dum monstro devorador de carne humana, dum tigre incapaz de um sentimento
humanitário. A ignorância dos nossos rústicos patrícios, agravada pelas fábulas
ridículas editadas pela imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de
libertador do Paraguai (embora contra a vontade do libertando o libertasse a
tiro) não podia reconhecer no ditador o que realmente era: uma coragem de
herói, uma vontade forte, uma inteligência superior ao serviço duma ambição
retrógrada. Os jovens tapuios tremiam só de ouvir-lhe o nome; as mães e as
esposas faziam promessas sobre promessas a todos os santos do calendário,
pedindo que lhes livrassem os queridos filhos e os maridos das malhas da rede
recrutadora.
Coisa terrível que era então o
recrutamento!
Esse meio violento de
preencher os quadros do exército era ao tempo da guerra posto em prática com barbaridade
e tirania, indignas dum povo que pretende foros de civilizado.
Suplícios tremendos eram
infligidos aos que, fugindo a uma obrigação não compreendida, ousavam preferir
a paz do trabalho e o sossego do lar à ventura de se deixarem cortar em postas
na defesa das estâncias riograndenses e das aldeolas de Mato Grosso. Narravam
diariamente os periódicos casos espantosos, reclamações enérgicas contra o
arbítrio das autoridades locais, mas o governo a tudo cerrava os ouvidos, por
necessitar de fornecer vítimas às disenterias do Passo da Pátria e carne
brasileira aos canhões vorazes de Humaitá. Foi então que se mostrou em toda a
sua hediondez a tirania dos mandões de aldeia. Os graúdos não perderam a
ocasião de satisfazer ódios e caprichos, oprimindo os adversários políticos que
não sabiam procurar, ao serviço de abastados e poderosos fazendeiros, proteção
e amparo contra o recrutamento, à custa do sacrifício da própria liberdade e da
honra das mulheres, das filhas e das irmãs. Sim. Não pretendo carregar os tons
sombrios do quadro da miséria do proletário brasileiro naqueles tempos
calamitosos, em que o pobre só se julgava a salvo do despotismo quando nas mãos
do senhor do engenho, do fazendeiro, do comandante do batalhão da guarda
nacional; abdicava a sua independência, pela sujeição a trabalho forçado mal ou
nada remunerado: a sua dignidade pela resignação aos castigos corporais e aos
maus tratos; e a honra da família pela obrigada complacência com a violação das
mulheres. Em Alenquer, por exemplo, o capitão Fabrício, nomeado recrutador,
alardeando serviços ao partido de cima, praticou as maiores atrocidades, tendo
por única lei o seu capricho. De toda a parte se levantavam clamores contra o
rico e perverso fazendeiro do igarapé, mas cônscio do apoio dos chefes do seu
grupo político, continuava Fabrício, obrando as maiores atrocidades, que
constituíram a sua vida até que o filho do Anselmo Marques, com um salutar tiro
de espingarda, pôs-lhe termo à ominosa existência.
Descuidado e contente Pedro
labutava em paz, apesar das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da
missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam se não receava o
recrutamento, dizia, com a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e
era filho único de mulher viúva. Não contava, porém, com a má vontade de Manoel
de Andrade, mulato que era seu rival na pesca das tartarugas. Manoel era a alma
danada do capitão Fabrício, em cuja fazenda vivia como agregado. Toda a gente o
acusava de desapiedado executor das maldades do fazendeiro. Era tido como homem
sem escrúpulos, que matava por prazer. E as proezas pacíficas do filho da velha
Rosa enchiam-lhe o coração de inveja.
Numa tarde de dezembro de 1865
ou de janeiro do ano seguinte (já não me recordo bem da data), Pedro, ao voltar
da pesca, passando pelo porto da fazenda, notara um movimento desusado, e,
observando, pensara ter visto o Manoel de Andrade e dois ou três soldados, de
farda e baioneta, entidades não vulgares naquelas paragens. Sem saber explicar
o estranho caso, continuara a remar, e em breve aportara ao sítio, e puxando a
canoa para terra fora dar parte da pescaria à mãe, sem lhe falar do que vira na
casa do vizinho.
Na manhã do dia seguinte,
entretinha-se o rapaz a fazer uma cerca de varas no terreiro, quando lhe
aparecera pelo cacaual o velho Inácio Mendes, vizinho e amigo, o mesmo que
morreu o ano passado afogado no Inhamundá, tentando salvar o filho, atraído
pela mãe d’água. Como o assunto de todas as conversas da beira do rio era a
guerra, falou-se do recrutamento.
Inácio dizia-se portador de
notícias frescas. O capitão Fabrício, nomeado recrutador em todo o termo de Alenquer,
recebera ordem terminante do presidente da província para mandar pelo primeiro
vapor um contingente de voluntários, custasse o que custasse. Essa ordem,
transmitida pelo delegado de polícia de Santarém, fora trazida a toda pressa
pelo sargento Moura, acompanhado de cinco guardas nacionais que aquela
autoridade pusera à disposição do recrutador, prometendo enviar-lhe logo maior
força, se fosse necessário.
— O capitão, acrescentou
Inácio em em voz baixa, não é lá homem para hesitar em se tratando de maldades.
E continuara narrando as
desgraças da época. Já o Antônio da Silva fugira a todo o pano para Vila Bela,
onde mora um negociante que é seu compadre. Na casa do Pantaleão Soares,
português legítimo, o sargento Moura varejara os quartos em que dormiam as
filhas do pobre homem, e levara o atrevimento ao ponto de revistá-las, dizendo que
podiam ser homens disfarçados. O Raimundo Nonato e o filho da tia Rita
haviam-se metido pelo mato dentro, sem que se soubesse o seu paradeiro. Um
tapuio dos lagos, tendo vindo à vila comprar mantimentos, vira-se perseguido
pelos guardas, e fora comido por jacarés, querendo salvar-se a nado.
E terminou entre risonho e
triste o velho Inácio:
— Que quer, seu Pedro? Nestes
tempos nem os pobres velhos têm a certeza de escapar. O que vale é que Deus é
grande... E o mato, maior.
Três dias depois da visita de
Inácio Mendes, pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço, e Pedro,
sentado à soleira da porta, preparava-se para caçar papagaios, limpando uma
bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o capitão
Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom vizinho. Pedro ergueu-se
surpreso e acanhado e pôs-se a balbuciar comprimentos ao fazendeiro, cujo
sorriso o enleava.
— Ora bom dia, seu Pedro.
Então já sei que vai à caça? E está com uma bonita arma! Quer vendê-la?
E foi-lhe tirando-a das mãos,
sem que o pescador, admirado de tão grande afabilidade, pensasse em contrariar-lhe
o gesto.
— Eh, eh! Seu Pedro, você está
um rapaz robusto, e devia ser voluntário da Pátria. O governo precisa de gente
forte lá no sul para dar cabo do demônio do López. Ora é uma vergonha que você
esteja a matar os pobrezinhos dos papagaios e a arpoar os inocentes dos pirarucus,
quando melhor quebraria a proa aos paraguaios, que são brutos também e inimigos
dos cristãos.
Pedro balbuciava negativas e
desculpas. Era filho único... não tinha jeito para a guerra... quem tomaria
conta da pobre velhinha? Mas o capitão pôs-lhe a mão no ombro, dizendo em voz
repassada de mel:
— Pois então tenha paciência.
Se não quer ser voluntário, está recrutado.
Pedro deu um pulo para traz,
como se fora mordido por uma cobra. Recrutado, ele! E a palavra fatídica
soou-lhe aos ouvidos como anúncio de irreparável desgraça. O seu ar de candura
e de bondade desapareceu por encanto, e o rapaz ficou todo transformado, como o
pai, quando lutava braço a braço com alguma onça traiçoeira. Os olhos
injetaram-se-lhe de sangue. Os lábios entreabriram-se para deixar sair a
palavra rebelde, mas só descobriram os alvíssimos dentes, cerrados por um esforço
violento. O corpo todo tremia, como se maleitas o sacudissem e um último
lampejo de razão o impediu de atirar-se ao recrutador e de o afogar nas mãos
robustas. Mas o capitão prosseguia com brandura hipócrita:
— Ora deixe-se de tolices...
Afinal que é que tem ser soldado? É até muito bonito, e as mulheres pelam-se
pela farda azul-ferrete e pelos botões amarelos. Não será uma honra para a
tapuia velha o ter um filho oficial? Pois é o que pode muito bem acontecer, se
você tiver juízo, não beber, não furtar, não fizer nenhuma má-criação, e
resolver-se a aprender a leitura e a escrita, que não é lá bicho de sete
cabeças. É verdade que você pode ficar prisioneiro dos paraguaios e mesmo morrer
duma bala na cabeça, mas isso... São fatalidades. Também se morre na cama e até
pescando pirarucus e caçando papagaios. Por isso deixe-se de asneiras, carinha
alegre e marche-marche para o sul. Mesmo porque você está recrutadinho da silva
e o que não tem remédio remediado está.
O rapaz soltou um grito surdo,
avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos e brandiu-a sobre a
cabeça do capitão, como se fora uma bengala. Quando ia descarregar o golpe,
sentiu-se agarrado. Eram o sargento Moura e dois soldados, que saindo dum
matagal próximo se haviam aproximado sem ser vistos. Ao ruído da luta, acudiu a
velha Rosa, que soltando brados lamentosos tentou arrancar o filho aos
soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e atirou-a de encontro
a um esteio da casa.
A tapuia, caindo, feriu a
cabeça, mas, erguendo-se de súbito e levantando a espingarda que estava no
chão, fez pontaria contra o sargento. A arma não estava carregada.
Foi uma cena terrível que teve
lugar então. A velha Rosa, desgrenhada, com os vestidos rotos, coberta de
sangue, soltava bramidos de fera parida. Pedro estorcia-se em convulsões
violentas, e os soldados não conseguiam arredá-lo da mãe. Fabrício, ordenando
que levassem o preso, lançara ambas as mãos aos cabelos da velha e puxando por
eles procurava conseguir que largasse as roupas do filho. Os guardas,
impacientes e coléricos, desembainharam a baioneta, e começaram a espancar
alternativamente a mãe e o filho, animados pela voz e pelo exemplo do sargento,
ainda pálido do susto que sofrera.
Muito tempo teria durado a
luta, se não tivessem aparecido alguns agregados do capitão, dirigidos pelo
Manoel de Andrade, em cuja larga face morena se lia a satisfação de um ódio até
ali contido a custo.
O mulato adiantou-se com ar
resoluto:
— Ó gentes! Temos cerimônias?
E voltando-se para os que o
seguiam.
— Amarra porco, rapaziada!
Ou pela sua profissão de
vaqueiros, ou porque já se achassem prevenidos, traziam cordas consigo. Pedro e
Rosa foram deitados por terra, e amarrados de pés e mãos. Depois a gente do
Manoel de Andrade carregou o rapaz e foi depô-lo numa grande montaria que o
capitão mandara buscar à fazenda.
Quando o preso, o sargento e
os soldados se acharam dentro da canoa, Fabrício ordenou ao Manoel de Andrade e
a outro agregado que tomassem os remos e seguissem para Alenquer. Depois, dando
um pontapé na velha tapuia estendida em meio do terreiro, seguiu com o resto da
sua gente a caminho da fazenda.
Ela desmaiara. Não dera acordo
de si quando lhe levaram o filho para a canoa, nem sequer sentira a última e
bestial expansão da ira do recrutador. Mas quando o sol, adiantando-se na
carreira, veio ferir-lhe em cheio os olhos amortecidos, tornou a si, olhou em
derredor e recordando o que se passara, começou a agitar-se e a dar gritos que
ecoavam lugubremente na floresta. Procurava pôr-se de pé, mas não o conseguia.
Não podia também desprender os braços e as pernas; as cordas eram solidas e os
nós apertados. Sozinha, abandonada no sítio deserto, exposta no terreiro,
ferida e quase nua aos raios ardentíssimos do sol, a velha Rosa, a boa e
generosa velhinha teria sucumbido miseravelmente, se por volta de meio dia não tivesse
ali chegado o vizinho Inácio Mendes. O português vira do seu porto passar a
canoa que levava o recruta, e, desconfiando do que sucedera, viera, logo que
pudera furtar algum tempo aos seus afazeres, informar-se do ocorrido.
Pobre tia Rosa! Em que miserando
estado a encontrara! Seria possível que Deus permitisse tão grande injustiça! O
Inácio cortou-lhe as cordas, lavou-lhe a ferida com água avinagrada, e teve de
empregar a força para obrigá-la a deitar-se, pois ardia em febre. Depois que a
viu mais sossegada, o bom do português correu à casa em busca da mulher para
fazer companhia aquela noite à doente, recomendando-lhe que não dormisse,
velasse toda a noite, pois o estado da tapuia era melindroso. Apesar da
advertência do marido, a enfermeira adormecera pela madrugada, e quando
acordara, a claridade dum dia esplêndido entrava pela transparência do japá. A
rede da velha Rosa estava vazia. A mulher do Inácio Mendes correu ao porto e
não achou a montaria de pesca de Pedro.
Estava eu a esse tempo em
Santarém, preparando uma viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia.
Passeando uma tarde na praia
do Tapajós, abeirou-se de mim uma cabocla velha em quem a custo reconheci a
industriosa e boa velhinha do igarapé de Alenquer, em cuja hospitaleira casa
dormira algumas vezes de passagem pelo sítio. Ela, porém, me reconhecera
facilmente, e parece até que a conselho de algumas pessoas me procurava como o
único doutor da terra, que exercia a profissão de advogado. Contou-me a sua
história, interrompendo-se a miúdo para limpar na manga do vestido as lágrimas
que lhe corriam, e finalizou entregando-me um embrulho com dinheiro, duzentos e
poucos mil-réis, tudo quanto tinha, para que lhe livrasse o filho de jurar
bandeira.
Voltei imediatamente à cidade,
e por intermédio de um amigo comum obtive do delegado de polícia a licença de
ver o recruta na cadeia, mas por uma só vez, e como exceção rara. O tapuio
estava mergulhado num silêncio apático, de que nada o fazia sair. O fatalismo
do amazonense o convencera de que não se poderia arrancar à irreparável
desgraça que o abatia. Ou não me reconheceu, ou não quis falar-me.
Requeri habeas corpus em favor
de Pedro, alegando a sua qualidade de filho único de mulher viúva. O juiz de
direito ordenou o seu comparecimento, inquiriu o comandante do destacamento e
algumas testemunhas, e exigiu informações do delegado. Empreguei a maior
atividade nas diligências necessárias, porque sabia que era esperado a toda a
hora o vapor da Companhia do Amazonas, que devia levar o contingente de
recrutas para a capital. Uma manhã vinha eu da casa do juiz com as melhores
esperanças de êxito, pois se mostrava crente do direito que assistia ao meu
cliente, e compadecido da sorte da velha que lhe não deixava a soleira da
porta, onde dormia. Vinha pensando na minha viagem pelo Tapajós acima logo que
terminasse a obra de humanidade que queria praticar, quando me encontrei com o
agente da Companhia.
— Olhe, doutor, o vapor está
entrando. Os voluntários estão prontos.
Corri imediatamente à cadeia,
e notei o movimento que produzira a ordem de embarque. Corri à praia, onde era
imensa a aglomeração de povo à espera do vapor que vinha entrando à boca do
largo Tapajós, em busca dos futuros defensores da Pátria.
Começou logo o embarque dos
recrutas. Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obrigava a representar
a comédia do voluntariado. Vi-os sair da cadeia, entre duas filas de guardas
nacionais, e encaminharem-se para o porto, seguidos dos parentes, dos amigos e
de simples curiosos.
Iam cabisbaixos, uns corridos
de vergonha, como criminosos obrigados a percorrer as ruas da cidade nas garras
da justiça; outros resignados e imbecis como bois caminhando para o matadouro;
outros ainda procurando encobrir sob uma jovialidade triste as amarguras
íntimas; todos marchando maquinalmente, alheios ao que se passava e dizia em
redor de si, e oferecendo um aspecto de apatia covarde e idiota. Vestiam calça
e camisa de algodão riscado, a mesma roupa com que uma semana antes arpoavam
pirarucus ou plantavam mandioca nas roças da beira do rio. Alguns, aqueles de
quem se desconfiava, por mais valentes e ágeis, traziam algemas.
As portas e as janelas das
ruas por onde passava a nova leva de recrutas estavam apinhadas de gente. As
mulheres e as crianças corriam a vê-los de perto, conservando-se, porém, a uma
distância respeitável dos guardas nacionais, que marchavam pesadamente, acanhados,
vestidos na sua jaqueta de velho pano azul, quase vermelho, e vexados com a
comprida baioneta colocada muito atrás, a bater-lhes os rins num compasso
irregular, conforme com os acidentes das ruas mal calçadas. O povo comentava o
caso, analisava a fisionomia dos novos soldados, daqueles heroicos defensores
da Pátria, carneiros levados em récua para o açougue.
As exclamações cruzavam-se, as
pilhérias atravessavam a rua e caíam duras como pedras sobre as cabeças
impassíveis dos guardas nacionais, pobres operários, honrados roceiros, arrancados
à oficina ou à lavoura para guarnecerem a cidade e fazerem o serviço da polícia
ausente. Outras vezes eram lamentações e condolências da sorte daqueles pobres
diabos que nem sabiam naquele momento se voltariam a ver a terra adorada do
Amazonas.
Os curumins anunciavam os
recrutas à medida que se aproximavam:
— Os voluntários! Os
voluntários!
— Voluntários de pau e corda!
disse causticamente o vigário padre Pereira, fumando cigarros à porta duma
loja.
Já mais adiante os curumins
repetiam numa ironia inconsciente:
— Os voluntários, olha os
voluntários!
Os recrutas caminhavam sob um
sol ardente, seguidos das mães, das irmãs e das noivas, que soluçavam alto,
numa prantina desordenada, chamando a atenção do povo. Os homens iam silenciosos
como se acompanhassem um enterro. Ninguém se atrevia a levantar a voz contra a
autoridade. Se a fuga fosse possível, nenhum daqueles homens deixaria de
facilitá-la. Mas como fugir em pleno dia, no meio de tantos guardas nacionais
armados e prevenidos? Nada, mais valia resignar-se e sofrer calado, que sempre
se lucrava alguma coisa.
Chegaram ao porto e avistaram
o vapor que fumegava, prestes a partir. As canoas que os deviam conduzir para o
paquete estavam prontas. Começou o embarque em boa ordem. Nenhum dos recrutas
abraçou amigos e parentes; os adeuses trocaram-se com os olhos e com as mãos,
de longe.
Quando as canoas largaram da
praia, as mulheres romperam num clamor; e os tapuios, acocorados ao fundo da
igarité que os separava da ribanceira, seguiam com a vista a terra que recuava,
fugindo deles. Tinham os olhos secos, mas amortecidos. Um deixava naquela saudosa
praia a mãe doente e entrevada, arrastada até ali para soluçar a última
despedida ao filho que partia para a guerra. E o voluntário, resignado à morte
com que contava nos sertões do sul, tinha o coração apertado, pensando na
miséria em que deixava a velhinha, obrigada dali em diante a viver de esmolas.
Outro pensava na sua roça nova, aberta pelo São João havia seis meses apenas,
com tanto amor e trabalho, e que seria dentro em breve pasto de capivaras
daninhas e de macacos gulosos; ou na montaria de pesca, abandonada no porto,
para presa do primeiro ladrão que passasse. Este sonhava com as longas horas de
imobilidade ansiosa, nas brumas da antemanhã, de pé na canoa, esperando o
primeiro respirar do pirarucu possante; aquele com a gentil namorada, tanto
tempo cobiçada e quase noiva, que não teria paciência para esperar-lhe a volta
incerta. E todos pálidos, desesperados, sombrios, sentiam no supremo momento da
separação que tudo estava perdido, e a morte, uma morte terrível e misteriosa
os esperava lá nas terras em que dominava o monstro do Paraguai, devorador de
carne humana.
Apesar da tristeza do
espetáculo que me compungia o coração, não pude deixar de alegrar-me por não
ver entre os recrutas o filho da velha Rosa. Acompanhei a leva desde o quartel
até a praia, vi-a embarcar, não me afastei enquanto o vapor não levantou
ferros, e procurou a barra do Tapajós, soltando um silvo rouco e prolongado.
Adquiri então a certeza de que Pedro não embarcara, de que ficara em terra, e
dessa convicção augurei as melhores esperanças. Se o delegado o não enviara por
aquele vapor, fora certamente por não haver ainda jurado bandeira, e duvidoso
se fazia o caso do seu recrutamento, em face dos fundamentos do habeas corpus
requerido. Em todo o caso, mesmo considerando a polícia bem recrutado o tapuio,
tinha diante de mim oito ou dez dias, o intervalo de uma chegada de paquete a
outra, para trabalhar em seu favor.
Comuniquei a nova à tia Rosa
que fui encontrar sentada à porta do juiz de direito, onde passara a noite. Não
partilhou da minha convicção. Na sua opinião, eu estava enfeitiçado. Pedro não
estava no quartel, e, portanto, seguira naquele mesmo vapor para a capital.
Levei à conta de demência a
incredulidade da velha, e entrei na casa do juiz para informar-me do resultado
do habeas corpus.
O magistrado disse-me com
alguma tristeza:
— Escusado é tentar mais nada.
O rapaz já embarcou.
E como me visse atônito, sem
ânimo de proferir palavra, compreendeu o meu espanto, e acrescentou:
— Desconfiaram de mim. Ontem à
noite mandaram-no numa canoa bem tripulada, esperar o vapor a meia légua da
boca do rio.
A indignação fez-me
ultrapassar os limites da conveniência. Perguntei, irado, ao juiz como se
deixara ele assim burlar pela polícia, expondo a dignidade do seu cargo ao
menosprezo de um funcionário subalterno. Mas ele, sorrindo misteriosamente,
bateu-me no ombro, e disse em tom paternal:
— Colega, você ainda é muito
moço. Manda quem pode. Não queira ser palmatória do mundo.
E acrescentou alegremente:
— Olhe, sabe uma coisa? Vamos
tomar café.
Ainda há bem pouco tempo
vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia
passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, cantando com
voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular:
Meu anel de diamantes
caiu n’água e foi ao fundo;
os peixinhos me disseram:
viva Dom Pedro Segundo!
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