O Natal Minhoto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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É dia de
Natal.
A cidade
amanheceu alegre no céu fresco e azul. Os carrilhões das igrejas repicam
festivamente. As salsicharias, os restaurantes, as pastelarias, ostentam em
exposição os seus produtos mais apetitosos: os grandes porcos, de couro
nitidamente barbeado, suspensos do teto com a cabeça para baixo; as salsichas e
os chouriços de sangue pendentes em bambolim; as cabeças de vitela, de uma
palidez linfática, rodeadas de agriões; os perus gordos como ventres de
cônegos, com o papo recheado pela respectiva cabidela; as galantines marmoreadas; as louras perdizes postas em pirâmide; as
costeletas; as geleias de reflexos cor de topázio; as verduras de salsa picada;
os grossos molhos opulentos dos espargos; os bolos do Natal: os fartes, os
sonhos, os morgados, as filhós, as queijadas, os christmas kacks, os puddings,
os bombons glacês.
E a
profusão destas exposições dá às ruas o aspecto culinário da abundância, da
plenitude.
Os
ramalhetes de violetas, com o seu colarinho feito de duas malvas, estendem-se
de todos os lados para as casas dos paletós, e perfumam o ambiente com uma
frescura orvalhada. Os cabazes das camélias cintilam como grandes esmaltes. As
lojas de bijuterias armaram o grande pinheiro do Natal, cujas hastes
desabrocham em cartuchos de amêndoas, em cartonagens douradas, em animais de
quase todas as espécies recolhidas na Arca, em cabriolets de lata, em cavalos de cartão, em palhaços vermelhos que
tocam pratos, e em lindas bonecas vestidas de cetim com os seus pufs, os seus chignons e os seus regalos.
Lisboa
inteira passeia na vasta alegria do sol. Os homens trazem os seus embrulhos, as
mulheres levam os seus filhos pela mão.
As
meninas, vestidas de novo, em grande toilette,
frescas como lilases, com os seus narizinhos rosados pelo nordeste, dirigem-se
ao baile infantil, organizado no salão de um teatro por uma associação de
senhoras, em favor de um estabelecimento de beneficência.
O piano,
em alegres esfuziadas, chama à quadrilha as jovens damas de quatro anos e os
pequenos cavalheiros seus pares. A árvore de Natal braceja as dádivas
encantadoras sobre o grande baile em miniatura...
Ide,
queridos amiguinhos, ide divertir-vos! Aquele que vos fala já foi em tempo — há
bom tempo! — aquilo que vós hoje sois, e teve também a sua festa inteiramente
desanuviada, absolutamente feliz como a vossa. A única diferença é que, nessa
remota idade e no obscuro canto da província em que ele nasceu, a árvore do
Natal era ainda uma instituição desconhecida. Era uma terra bárbara aquela em
que este pai-avô veio à luz e que tantas vezes ele percorreu, já periclitante
na imperial de trêmulas e arrastadas diligências, já a cavalo debaixo de um
amplo capote de cabeções, já a pé, só, com um bordão!
Ele
conhecia-a nesse tempo como o seu próprio quarto, a essa terra; tinha de cor o
número das covas no macadame das estradas, os buracos dos velhos muros por onde
rompiam os musgos e as madressilvas, os brancos campanários das igrejas
situadas no fundo dos vales, entre as nogueiras e os carvalhos, ao cabo dos
longos tapetes formados pela superfície variegada dos campos de trevo. Sabia em
que casais se bebia o melhor leite nas manhãs de Verão, e em que rios se
pescavam à linha os salmões mais saborosos e as mais volumosas trutas.
Constava-lhe cada manhã em que outeiros cobertos de urze, de cardos, de ásperas
moitas de tojo e de espessos fetos tinha ficado de véspera a revoada das
perdizes. Conhecia os diferentes vinhos selvagens, que se vendiam na sombria
frescura interior das tabernas recolhidas nos cotovelos das brancas estradas
cobertas de sol, nos recostas das empinadas ladeiras tortuosas, e nas
desembocaduras das longas pontes de madeira de pinho. Sabia os nomes dos
abades. E ainda agora, depois de uma ausência de bastantes anos, pensando nisso
e fechando os olhos, torna em espírito a ver as viçosas várzeas, as frescas
matas das terras fundas, sonoras dos murmúrios da água corrente na rega ou
caindo nas levadas e nas azenhas; a forte vegetação dos milhos e dos
castanheiros; e, acompanhados de um pequeno pastor imundo, a cavalo numa velha
égua lãzuda, alguns poucos bois magros de trabalho e de fadiga atravessando
lentamente o ribeiro, mugindo com saudosa melancolia, ou abeberando-se
inclinados e humildes na frescura da corrente. Depois, nos terrenos altos, os
pinhais, as encruzilhadas das estradas com os seus cruzeiros de granito, as
caixas das esmolas para as almas, o tosco nicho na forma de um armário de
cozinha, talhado em arco, tendo em frente a sua lanterna enfumada, encanastrada
numa rede de ferro e chumbada ao alto do nicho por um gancho; e, disseminados
pelos caminhos recurvos e acidentados, os pequenos eirados seguros em esteios
de pedra com os parapeitos pintados de vermelhão; os alpendres dos ferradores,
onde os pardais debicam nos beirais do telhado; as choças cobertas de colmo,
eternamente envoltas em fumo, ao pé das eiras em que se erguem as medas como
altas cabanas pontiagudas.
O objeto
do culto, da admiração, do entusiasmo, do enlevo dos pequenos do meu tempo era
o velho presépio, tão ingênuo, tão profundamente infantil, tão cheio de coisas
risonhas, pitorescas, festivas, inesperadas.
Era uma
grande montanha de musgo, salpicada de fontes, de cascatas, de pequenos lagos,
serpenteada de estradas em ziguezagues e de ribeiros atravessados de pontes
rústicas.
Embaixo,
num pequeno tabernáculo, cercado de luzes, estava o divino bambino, louro,
papudinho, rosado como um morango, sorrindo nas palhas do seu rústico berço, ao
bafo quente da benigna natureza representada pela vaca trabalhadora e pacífica
e pela mulinha de olhar suave e terno. A Santa Família contemplava em êxtase de
amor o delicioso recém-nascido, enquanto os pastores, de joelhos, lhe ofereciam
os seus presentes, as frutas, os frangões, o mel, os queijos frescos.
A grande
estrela de papel dourado, suspensa do teto por um retrós invisível, guiava os
três magos, que vinham a cavalo descendo a encosta com as suas púrpuras nos
ombros e as suas coroas na cabeça. Melchior trazia o ouro, Baltasar a mirra, e
Gaspar vinha muito bem com o seu incenso dentro de um grande perfumador de
família, dos de queimar pelas casas a alfazema com açúcar ou as cascas secas
das maçãs camoesas.
Atrás
deles seguia a cristandade em peso, que se afigurava descendo do mais alto do
monte em direção ao tabernáculo. Nessa imensa romagem do mais encantador
anacronismo, que variedade de efeitos e de contrastes! Que contentamento! Que
alegria! Que paz de alma! Que inocência! Que bondade!
Tudo
bailava em chulas populares, em velhas danças mouriscas, em bailados à la moda
ou à meia volta, em ingênuas gaivotas, em finos minuetes de anquinhas e de bico
de pé afiambrado.
Tudo ria,
tudo cantava nesses deliciosos magotes de festivais romeiros de todas as
idades, de todas as profissões, de todos os países, de todos os tempos! Os
cegos tocando as suas sanfonas; os pretos pulando uma sarabanda; os galegos com
a sua gaita-de-fole dançando a "munera"; a saloia de carapuça de bico e de saiote
encarnado, trazendo o cesto com ovos; o saloio com o peru, com o vitelo ou com
o bacorinho às costas; o aguadeiro com o seu barril novo; o ceifeiro com a sua
foice e o seu feixe de trigo; o lenheiro carregando o cepo sagrado para a
fogueira da Missa do Galo; o pequeno saboiano com a sua marmota; o tocador de
realejo dando à manivela do seu instrumento; o pastor com um borrego ou um
chibo debaixo do braço; o passarinheiro com as suas esparrelas e o seu alçapão
com um melro dentro; a manola com o
seu leque e a sua mantilha sevilhana traçada na cinta; o maioral tocando a
guitarra sentado no garrido albardão da sua mula; os gitanos entoando a seguidilha;
numerosos rebanhos, de perus, de patos, de anhos, de porcos e de cabritos; e
muitas personagens, de variegados trajos exóticos, tangendo pandeiros, adufes e
castanhetas, como nos autos pastoris, nos colóquios e nos vilancicos,
antigamente representados diante das lapinhas nas catedrais da Idade Média.
Alguns —
os mais ricos presépios — tinham corda interior fazendo piar passarinhos que
voavam de um lado para o outro, mexiam as asas e davam bicadas nas fontes de
vidros, em que caía uma água também de vidro, fingida com um cilindro que
andava à roda por efeito de misterioso maquinismo.
Todas
essas figuras do antigo presépio da minha infância tinham uma ingênua alegria
primitiva, patriarcal, como devia ser a de David dançando na presença de Saul.
Dessas boas caras de páscoas, algumas modeladas por inspirados artistas
obscuros, cuja tradição se perdeu, exalava-se um júbilo comunicativo como de
uma grande aleluia.
Um outro
menino — não o do tabernáculo, que esse estava seguro ao berço com um parafuso
—, um menino maior, sobre uma toalha bordada, era trazido em roda e recebia
sobre os seus diminutos pés polpudos, saudáveis, rubenescos, a enfiada de
beijos de todas as pequenas bocas inocentes, vermelhas, afiladas em bico,
gulosas dos refeguinhos daquele pequenino Deus tão louro, tão manso, tão lindo!
Depois
celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os
filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a
toalha grande, os talheres de cerimônia, os copos de pé, as velhas garrafas
douradas. Acendiam mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas
novas, iam e vinham ativamente com as rimas de pratos, contando os talheres,
partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.
Os que
tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos,
pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam
uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite,
esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados,
confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé
da família.
E o
nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou
zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira,
chegava num respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas
de Alicante e com canela.
Finalmente
o bacalhau guisado, como a brandada da Provença, dava a última fervura; as frituras de abóbora-menina, as
rabanadas, as orelhas-de-abade tinham
saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas
grandes. Uma voz dizia: — Para a mesa! Para a mesa!
Havia o
arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos
guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo
de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés do
que estavam em frente. Bom aconchego! Belo agasalho!
As
fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude. Que diabo!
Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do
homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava tudo aí reunido numa
doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?
Não é. O
primeiro dos convivas que tinha o sentimento dessa imperfeição era a velhinha
sentada ao centro da mesa. Ela, que para nós representava apenas a avó, tinha
sido também a filha, tinha sido a irmã, tinha sido a esposa, tinha sido a mãe...
No seu pobre coração, quantos lutos sobrepostos, quantas saudades acumuladas!
Por isso, enquanto os outros riam e conversavam alegremente, a mão dela
emagrecida e enrugada tremia de comoção ao tocar no copo, e dos seus olhos
cansados despegavam-se silenciosamente duas lágrimas, que ela embebia no
guardanapo enquanto a sua boca procurava sorrir e titubear palavras de
resignação, de conforto, de felicidade.
Essas
lágrimas eram como a evocação do espírito dos ausentes e do espírito dos mortos
para aquele banquete. A festa era então interrompida por silêncios graves,
pensativos, durante os quais cada um se recolhia em si mesmo e olhava um pouco
ao passado e um pouco ao futuro.
Dos que
se tinham sentado àquela mesa, em idêntica noite, quantos tinham partido para
não voltarem mais! Quantas lacunas dentro dos últimos anos! Dentro de alguns
anos mais, quantas outras!
Se havia,
como quase sempre sucede, um filho, um neto, um irmão ausente, era em volta da
recordação dele que se agrupavam e fixavam esses vagos cuidados dispersos. A
mágoa do passado, a incerteza do futuro, acabava por aparecer a cada um sob a
figura aventurosa do viajante intrépido ou do trabalhador vigoroso que
celebrava aquela noite num país longínquo ou nas águas do mar.
E esse
amado ausente era o conviva que cada um sentia mais perto, a essa mesa, junto
do seu coração.
Só nós,
as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria imperturbável e perfeita,
porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupações
incertas do futuro. Para nós tudo na vida tinha o caráter imutável e eterno. O
destino aparecia-nos ridentemente fixado, como no musgo as alegres figuras do
presépio. Supúnhamos que seriam eternamente lisas as faces da nossa mãe,
eternamente negro o bigode do nosso pai, eternamente resignada e compadecida a
decrépita figura da nossa avó, toucada nas suas rendas pretas, no fundo da
grande poltrona.
Não
tínhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. Não nos tinham explicado
suficientemente que o louro Menino Jesus que nos sorria no seu bercinho, tão
descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do perfume das
violetas, era o mesmo Deus descarnado e lívido, coroado de espinhos, alanceado
no coração, pregado na cruz e exposto no altar. Repugnar-nos-ia acreditar, se
então no-lo dissessem, que o tenro e suave bambino do presépio, cercado de
amores, de cânticos, de festas, de dádivas, de bonitos, cheio de carícias e de
beijos, teria um dia de ser um mártir, um herói, um Deus, mas que para isso
haveriam de o perseguir como um rebelde, de o torturar como um criminoso, de o
justiçar como um bandido, que ele teria de ser esbofeteado, azorragado, traído,
que receberia o beijo de Judas, que seria preso entre os seus discípulos no
Jardim das Oliveiras, que mandaria embainhar a espada de Pedro para beber o
cálice da amargura, que seria levado de Caifás para Pilatos, que seria
condenado, que lhe poriam a coroa de espinhos, que o fariam subir o Calvário
sob o peso da cruz, que finalmente o crucificariam entre os dois ladrões aos
olhos da sua própria mãe.
Não, a
vida não é uma festa permanente e imóvel, é uma evolução constante e rude. O
Natal é a festa das lágrimas para todos aqueles para quem ele não é a festa da
inexperiência. E, todavia, pensavam alguns que era útil não deixar de a
celebrar. Que importa que o número ou que o nome dos convivas varie em cada
ano? Que importa que alguns amados velhos faltem ao banquete? Que importa que
nós mesmos faltemos para o ano que vem na festa dos mais novos?
Esta
noite de alegria para as crianças será sempre de alguma saudade para os
adultos. Assim teremos a esperança terna de sobreviver, por algum tempo, na
lembrança dos que amamos — uma boa vez ao menos, de ano a ano.
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