O galo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Todo curvado e atento, a olhar
as entranhas sangrentas dum galo, o meu amigo Galracho, harúspice e rosa-cruz,
venerador de Peladan, sar nos cartões
de visita e primeiro oficial do correio, na lúcida manhã de janeiro, enquanto o
Menino seguia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa pela intenção e
higiênica pelos resultados, tirava augúrios no fundo recôndito de um quarto
discreto, onde se empilham caixotes nos quais, à guisa de altar, as vítimas
palpitam e mostram nas vísceras os arcanos do futuro.
Galracho, em robe de chambre sacerdotal, com um
facalhão inglês, de lâmina luzente e larga, lembrava um sacrificador do antigo
tempo.
Quando entrei, sentindo os
meus passos no soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me com os seus olhos
de míope, desarmados das poderosas lentes. Não me reconheceu de pronto, mas
ouvindo-me a voz, tranquilizou-se e acenou misteriosamente para que eu
encostasse a porta a fim de que a senhora, que é alegre e incrédula, não
interrompesse a cerimônia com o seu riso e com os seus comentários mordentes.
Galracho suava em bicas
naquela estufa esotérica e depósito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo
pela claraboia, dourava a vítima gorda em torno da qual esvoaçavam gulosamente,
desrespeitosamente moscas zumbidoras e o harúspice, com as mãos mais vermelhas
do que as de um magarefe, tomava notas ligeiras numa larga folha de papel toda
manchada de sangue.
— Que diabo fazes tu aqui,
Galracho?
— Não vez? estou tirando
augúrios, como os nossos pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas entranhas
deste galo como se o lesse nos mesmos livros da sibila. Estava agora justamente
interpretando o fígado. Ah! meu amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em
grande e abatido desalento — as coisas não nos sorriem. Vamos ter moléstias
este ano, moléstias mortais e muitas.
— Epidemias?!
— Epidemias... não digo. Há
muita gordura no fígado, vê — o galo está gordo demais.
— Divino é que ele está
—... e a enxundia confunde as
linhas do mistério. Não te posso dizer se teremos epidemias; afirmo-te, porém,
que teremos moléstias.
— Isso também eu afirmo, mesmo
sem olhar as entranhas do bicho.
— Olha aqui a moela. Que vês
nela?
— Eu... eu vejo que o galo
morreu em jejum, ou, antes, tendo iludido a gana com uns granizos e areia.
— Sabes que quer dizer isto?
Sabes?
E a voz de Galracho silvava e
os seus olhos de míope faiscavam.
— Quer dizer que não atiraste
milho ao poleiro.
— Não, quer dizer que vamos
ter fome! fome!!! Não a fome que sofreram os lídios, mas...
— Uma fome modesta, assim como
quem diz: meia ração.
— Isso: meia ração; meia ração
ó bendito. Vamos passar à meia ração. E Galracho cocou a cabeça intrigado: O
diabo é a gordura! Quase que não posso interpretar com tanta banha. Mas cá está
a fome, cá está!
— Olha, Galracho, faze como
José; previne-te — enche a despensa e o galinheiro, põe-te em guarda e não
esqueças o meu talher. Mas o grande amigo saltou elétrico, arrepiado, numa
inspiração.
— Olha o fel: a política: está
túmido e negro. Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah! meu amigo, no ano
passado, consultando as entranhas de uma pata...
— Tão gorda como este galo?
— Não, mais magra, (era uma
pata própria para o mistério) eu anunciei todas as calamidades que nos haviam
de flagelar. Disse que o presidente seria substituído...
— E foi, realmente.
— Disse que havíamos de perder
um grande homem.
— Perdemos vários, a pata foi
sóbria; é verdade que estava magra.
— Prognostiquei o nascimento
do Augusto.
— Tua senhora, em outubro, já
se sentia mal e, em março, avisado amigo, levamos o lindo Augusto à pia.
— É verdade! Vi tudo na pata.
— É extraordinário. E agora no
galo?
— Vejo todo o ano em que
entramos. Chamo a tua atenção para aquela gordura que se vai fundindo ao calor
do sol.
— E que diabo ó aquilo na tua
sombria ciência?
— Aquilo? pois não vês? a
gordura é dourada, não é? pois é um projeto de conversão do papel moeda.
— Em ouro, compreendo.
E Galracho meditou e disse:
— E pôde ser também uma
tentativa revisionista.
— E sobre o Código Civil, que
diz o galo?
— Tem muita gordura, meu
amigo, e a gordura é o embaraço. Vou agora consultar uns velhos livros sibilinos
para ordenar o oráculo. Espera-me um instante no meu gabinete, tens lá a rede,
livros e uma caixa de música com doze peças.
Dirigi-me ao gabinete, tomei
um livro ao acaso — era um romance venusino com gravuras que fariam humilhação
aos camafeus antigos, dei corda à caixa de música e afundei molemente na rede,
ouvindo o repinicar do Trovador e deliciando-me
com uma história de alcova, ardentemente ilustrada. Despertei em sobressalto, sacudido
pelo amigo Galracho que me chamava para o almoço.
— Doce sono! exclamei
esticando-me nas pontas dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.
A caixa emudecera e o livro
jazia escancarado sob a rede expondo uma cena lúbrica aos olhos pudibundos do
ledor de entranhas.
Lá fomos ao almoço e, enquanto
roíamos azeitonas e barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco e mole, levantou-se
uma questão. Galracho afirmava que as entranhas do galo gordo haviam-lhe
augurado um sucesso estranho e tão novo que ele, apesar de haver consultado
todos os mestres da ciência, não conseguira decifrar. E Galracho estava, em
verdade, sombrio e preocupado e, tão distraindo estava que, com vagar, soprava
para o prato toda a polpa das azeitonas e engolia, com gosto, os caroços. Uma
terrina, fumegante e cheirosa, apareceu e ocupou, com grandeza e brilho, o centro
florido da mesa. Galracho meditava, enquanto a senhora ia enchendo os pratos
com uma canja, toda lentejoulada de olhos de ouro e com paio às rodelas.
Cheirava e espalhava por toda a casa o seu apetitoso cheiro.
— Galracho, disse eu, baixa à realidade:
deixa lá o transcendente, toma a tua colher e atira-te à canja. Deixa lá o
sucesso: que venha e, para que não nos encontre fracos, comamos e bebamos.
— Não, meu amigo, não; o que
eu achei no galo não me sai da cabeça. Ali há sucesso e grande!
— Então que foi? dize lá!
— Que foi! que havia de ser?
um ovo, homem, achei um ovo.
— Superfetação...
— Qual superfetação!
— Velhice... e eu ia comendo.
— Qual velhice! Um ovo
autêntico... num galo. Este país está perdido, meu amigo; irremissivelmente
perdido. Nem Deus o salva!
— Por causa do ovo?
— Então? Queres ver?
E, arrebatadamente, Galracho
deixou a mesa, correu ao santuário e eu ouvi um urro, um verdadeiro urro e logo
o harúspice reapareceu tremendo de terror sagrado, com os cabelos em pé, lívido,
bradando:
— Que é do galo?
E a senhora, serenamente,
sorrindo, mostrou a terrina que rescendia dizendo ao esposo alarmado:
— Está aqui, homem, não te
apoquentes — aproveitei-o para a canja; estava tão gordo...
— O galo profético! Estamos
perdidos!
E Galracho deixou-se cair
pesadamente no sofá e pôs-se a dizer com uma voz tão soturna, rolando uns olhos
tão apavorados: “Estamos perdidos! Estamos perdidos!” que eu, francamente, não descansei
enquanto não me vi livre do diabo do galo gordo e carregado de vaticínios.
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