O Defunto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando ele
despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e doirado, tinha as
mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em
torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu
as mãos presas, sem movimento; e pareceu-lhe então que estava morto.
Como é
pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde
está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por
que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa?
E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia!
De novo
distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas
bateram de encontro a tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado,
sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga
lembrança de moléstia e de perda de sentidos...
E sentiu
sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!
Um medo
contínuo de si próprio, um indefinível asco do cadáver que sente a seu lado,
assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a
uma parede, — uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a
certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço.
No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça.
Que será?
E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois outro, mais
outro, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu
que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.
Em vão tenta
erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo
esforço para erguê-la: em vão! Uma sepultura de mármore, como que para guardar
o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga
a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma
laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os
vivos; oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura d’igreja!
E novamente
luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o
abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que
vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira,
ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no
mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um
trovão distante encerrado numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem
leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de
novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e
serenidade com que subira, junta ao intento a sua força, mas a pedra permanece
impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação;
com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na
onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num
ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho
inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, — e sente uma a
uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-se da carne as unhas.
Impossível!
Exausto de
fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em
degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria...
Veio o sono.
Veio seguindo à nébula do sono a doida fantasia do sonho.
Era vago e
tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o
Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, — assim como uma cidade que
despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.
Vai-se
largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.
Era uma
noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso
veludo macio. — E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade
estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que
amava; e pelos sítios conhecidos, — nem viv'alma! Apenas sombras... Caminhava;
e quando era grande a fadiga e o repouso lhe abria os braços amigos, outros
braços mais fortes o impeliam, e uma sinistra voz bradava: — Marcha! Marcha! —
As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe
o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram
jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que
fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas
exalando podridão. Passou por cemitérios, e à sua passagem os defuntos
erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por
dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de
avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como
o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta! E entretanto, no silêncio,
na noite e na treva — o Defunto caminhava.
De súbito,
como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma
praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de
loucura e de assombramento marcava o aniversário da sua Noiva e por data essa
tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. Com
uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de
palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida.
Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma
sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo
correu-lhe o corpo de alto a baixo — e partiu, assombrado, numa carreira mal
segura de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao
contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve;
houve um suspiro de prazer e de alívio e, flutuando no espaço, começou a voar.
Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu, e o céu tornou-se inteiramente negro.
Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul tão
límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto,
imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal
claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos
Poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. — Entre as estrelas
abriu-se o Céu, e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave
Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram
corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela!
Mas como, se ele ali estava oculto, contemplando a felicidade do outro ele!
Jesus sorriu, Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse também
seguir-lhes o voo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram, e ele caiu,
rolou, precipitou-se, tocou a terra — e partiu novamente, correndo pelas
estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo
vulto que o acompanhara; dominado pelo medo correu mais, até que, numa curva do
caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo
vulto que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica atravessou
planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda
das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que o não deixava. Mas, se ele
estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava, e era tão
longe a casa de sua Noiva! O vulto ia já tocá-lo... — Mas ele era cadáver, e na
sua qualidade de morto devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer
que era lhe riu diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si
mesmo e da sombra que devia ser a su’alma... E ela vinha, resvalando na sombra,
acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz
brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria! Era a casa de Sua Noiva! Mais um
passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a
casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco
de ânimo — coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da
sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também
pareceu que eram os braços regelados da Morte...
Um raio de
sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.
Despertou
suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava molemente uma larva. Quis
gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os
braços para certificar-se da vida, e na treva os braços bateram contra a
parede.
Pensou então
no seu sonho — e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o
aniversário de sua Noiva. Que data era a da sua morte? Quem sabe se não era
mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu tumultuando da sombra; e
ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu
ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a
encarar a sua situação de morto.
Longas horas
passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e
evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze,
chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade. A liberdade! A delícia
infinita! Ah! como era doloroso morrer assim solitário, consciente, indefeso,
abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o
enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à
morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram; e sofrendo sem termo, e chorando
sem esperança, adormeceu sem sentidos, esperando pela Morte...
Ao despertar
na manhã do outro dia, viu a fita do sol — único amigo que lhe levava à cova a
carícia de uma visita. Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se,
e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava.
Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem
beber! Sentia o estômago vazio e gelado, e a língua ressequida estalava. De
novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro — longo como um deserto; a
noite inteira — vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência,
ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber!
Outra vez o
sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!
O enterrado
ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer
e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato vivo e mole. Abrindo os lábios
num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato
à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh!
mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera
crescer! Então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante com
um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera
enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as — e, nu, selvagem, rugindo e chorando
de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue
brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um
lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota, chupando aquele sangue
que corria, quente, espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago
crispado pela fome.
Um rugido
mais rouco, dois saltos contra a parede onde partiu a cabeça, de onde brotou
mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.
Outra vez,
pela última vez subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os
dedos sobre as mãos, numa prece maldita — e ficou morto, imóvel, rígido e nu,
coberto de sangue escarlate como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...
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