O Cadáver
Soube-se um
dia em Lisboa que tinha aparecido um assassinado para as bandas do Campo
Grande, alta noite, mesmo ao pé do muro da quinta. Era em pleno Estio, quando a
população da capital emigra para todos os seus arredores. Nesse ardor anual de
bucólica, a notícia caiu como um mensageiro de terrores, e a vida do campo
criou subitamente, aos olhos dos emigrados, um aspecto torvo de crime.
Pairava
sobre esse caso trágico um mistério profundo. Não se suspeitava quem fosse o
assassino. Não se calculava sequer que causa determinara o crime. Posta em
campo, a polícia nem ao menos conseguiu lançar-se numa pista falsa;
faltavam-lhe completamente todos e quaisquer indícios, desde o rudimentar rasto
de passadas até ao boato inexplicável do povo.
O
assassinado tinha um nome na sociedade elegante de Lisboa. Era novo, rico,
alegre, sem inimigos, sem ligações aventurosas. Sabia marcar cotillons. Montava a cavalo.
Estimavam-no sem reservas, como a uma criatura neutra pelo espírito e pela
alma. Gozava a suprema ventura de não ser ninguém neste mundo.
A autópsia
ao cadáver, descoberto por volta da madrugada, estabeleceu que a morte fora
produzida por um tiro de pequeno calibre na fonte direita, com largo
derramamento interno e externo, e devia datar aproximadamente das onze horas da
noite. Nas algibeiras do morto tinham-se encontrado papéis sem importância,
dinheiro em ouro e em prata, o seu relógio e cadeia, uma lapiseira de marfim.
Era evidente que não tinham assassinado aquele pobre rapaz para o roubar. E
ninguém se perdia em conjecturas, porque, na verdade, não havia conjecturas
possíveis em face de tal extravagância.
Minutos
antes da descoberta do cadáver, vinha do Campo Grande, a pé, sozinho, pelo belo
luar da noite, o Fernando de Morais, um valsista infatigável de todos os bailes
do campo. Excelente moço, de uma finura precoce de nervoso, com delicadezas
superiores à sua magra instrução, necessidades estranhas e inconscientes de
ideal, — tirara o chapéu ao fresco da noite, e vinha por ali fora pausadamente,
gozando o silêncio em que apenas cantavam cigarras, e em que a Lua derramava
uma claridade alvacenta.
A partir do
cotovelo da estrada, o muro de uma quinta projetava a sua sombra no macadame,
cortando-o em duas fitas de cores diferentes. Fernando, seguindo pelo mesmo
lado em que vinha, entrou na zona da sombra. De repente, distraído, tropeçando
em qualquer coisa de mole, caiu de bruços para a frente, com as mãos
estendidas. As suas mãos bateram numa superfície fria e molhada; e quando ele rapidamente
se quis firmar para se pôr em pé, encontrou cabelos; o seu olhar já habituado
ao escuro reconheceu um cadáver ali estatelado, de ventre para o ar, com a
cabeça um pouco de lado, lívida e horrorosa sob o luar alvacento.
Pôs-se a pé
de chofre, gelado até à medula, sentindo-se aniquilado e pálido como aquele
defunto. Depois, afastou-se estugando o passo, com as pernas trêmulas, a
garganta contraída por um terror. Vinte passos andados sentiu atrás de si
patadas de cavalos avançando vagarosamente; e, no silêncio da noite, ouviu o
tilintar dos freios. Depois, o baque surdo das patadas parou; e ao cabo de um
minuto, Fernando ouvia apitarem como desesperados, com um rolar ininterrupto de
assobio, enquanto as patadas dos cavalos se precipitavam na sua direção. Cheio
de um medo irracional, subitamente galvanizado no seu terror que o punha trêmulo,
deitou a correr com quanta força tinha. A pequena distância, enfiou por um
atalho sombrio que desembocava na estrada; quase ao mesmo tempo, dois
municipais a cavalo passavam à desfiada na estrada, atrás de si, arrebatados
num galope infernal, apitando sempre.
Viu luz a
pouca distância, no escuro, e correu sempre direito a ela, cego para tudo que
não era ela. Tropeçou num barranco, levantou-se imediatamente, tornou a correr,
mais adiante tropeçou outra vez numa árvore caída, pôs-se a pé, e chegou
esbaforido à orla de um caminho, depois de ter andado alguns cinco minutos por
entre campos. A luz estava do outro lado do caminho, agora, mas ficava a muito
maior distância do que o fizera supor a escuridão. Parou, instintivamente;
seria denunciar-se, aparecer assim alvoroçado diante de alguém.
Reconheceu
uma taberna ainda aberta. Deu umas sacudidelas ao fato, verificou se teria o
chapéu amolgado pelas quedas, compôs o laço da gravata encarnada. Depois,
atravessando o caminho, chamando a si todo o ânimo, entrou, bateu palmas. A
taberneira acudiu lá de dentro, chegando a sua cara engelhada de velha à luz
baça da candeia pregada na porta interior.
— Dê-me...
dê-me aguardente — disse Fernando.
E pensava:
"Se eu
estarei pálido! se eu estarei trêmulo!..."
Sentara-se,
quase se deixara cair sobre um banco de pinho alinhado com uma extensa mesa, ao
fundo sombrio da taberna. A velha trouxe-lhe uma grande garrafa branca,
oitavada, cheia de um líquido turvo, dum amarelado ligeiramente vinoso, e um
copinho. Não falou, tinha olhos de sono, parecia casmurra de a terem ido
incomodar. E retirando-se logo para junto da porta interior, agachou-se no chão
com os braços cruzados no peito e a cabeça pendente, como para continuar o sono
interrompido.
Fernando
encheu um copinho, e ia levá-lo à boca, maquinalmente, quando os seus olhos se
fixaram na sua mão cortada de laivos de sangue já seco, de um vermelho escuro.
E voltou-lhe todo o seu terror. A espaços, considerava-se verdadeiramente
assassino, e horrorizava-se de si próprio. Pousou o copo sem beber, e meteu a
mão no bolso do casaco, como quem esconde um facínora num cacifo. Depois,
sentiu-se branco como a cal, pensando de novo:
"Estou
decerto cheio de sangue... talvez com sangue na cara, com sangue no fato..."
E
estremecendo, viu defronte de si a velha, imaginou que ela o espionava com o
seu perfil adunco, pressentiu-se denunciado por ela. Teve ímpetos de deitar
outra vez a fugir, e de correr, de correr sempre para a frente, doido, com a
cabeça vazia de intenções e de pensamentos, até ao fim do mundo,
vertiginosamente, numa fuga fantástica adiante dos esquadrões de cavalaria que
o perseguiriam também sempre, apitando. Então, num esforço violentíssimo da sua
vontade contra o seu terror louco engoliu de um trago o copinho cheio, encheu
outro e bebeu-o, depois encheu outro, e outro, e outro, engoliu-os sem quase
saber o que fazia, bateu na mesa com cinco tostões que tilintaram acordando a
velha, saiu sem esperar pelo troco, e meteu-se a caminho ao acaso, como um
espectro, olhando sem ver, com o cérebro cheio de alucinações atrozes, até que
caiu num valado e adormeceu como uma pedra, vendo em torno de si uma dança
macabra de cadáveres lívidos, empastados de sangue.
Quando
acordou era meio-dia, entrava-lhe o sol pelo quarto dentro; e Fernando,
erguendo-se meio estonteado, com uma vaga recordação muito confusa da sua
terrível noitada, notou que a única porta do seu quarto estava fechada à chave
por dentro, e que uma acumulação de móveis formava barricada de encontro a essa
porta. Fez-se então mais nítida, no seu espírito, a evocação dos acontecimentos
da noite. Voltou-se, o seu fato estava sobre a cadeira do costume, e tinha
vestígios de lama. De repente levou a mão direita aos olhos; e viu-a, — cortada
de laivos de sangue já seco, de um vermelho escuro. Era pois verdade tudo! Mas
como viera ele ali parar, depois da queda exânime no valado, após a qual de
nada se lembrava?
Entretanto,
o luminoso sol, o movimento da rua, o dia — entravam-lhe agora no cérebro e
clareavam-lho; e expulsavam de lá os terrores fantásticos, — simplesmente os
terrores irracionais. Fernando via agora os fatos lucidamente, e apenas
estabelecia no seu espírito este aforismo sensatíssimo:
"Se se
lembrarem de propalar que furtei sub-repticiamente o zimbório da Estrela, a
primeira coisa que tenho a fazer é fugir para o estrangeiro, e justificar-me de
lá..."
Raciocinou
então o seu caso, metodicamente, e pôs-se à obra. Examinou nas menores minuciosidades
o seu vestuário, encontrou uma nódoa de sangue no colete, outra no lenço da
algibeira. Acendeu uma vela, queimou o lenço, fez depois uma larga queimadura
no colete. Procedeu em seguida a uma revista suplementar, e reconheceu que tudo
o mais estava em perfeita ordem. Então, fez a sua toilette com precauções infinitas, empregando todos os sabonetes,
todos os cosméticos; e degredando para o fundo do seu baú o seu vestuário da
véspera, vestiu-se todo de novo, — sempre com a porta implacavelmente fechada
como um homem que fizesse moeda falsa. Depois, desarrumando os móveis
encostados à porta, saiu, foi almoçar ao restaurante, e andou todo o dia
alegre, mal pensando de tempos a tempos na sua aventura da véspera.
À noite, no
Martinho, os seus olhos caíram sobre um jornal em que vinha a notícia do
fúnebre achado, e acertou logo com estas palavras: — "O cadáver tinha
dedadas de sangue na cara. A polícia anda na pista do assassino." — Teve
um calafrio, turvou-se-lhe instantaneamente a vista, como se visse os beleguins
diante de si.
E todo o
horror da noite precedente lhe voltou, viu-se caindo sobre aquele corpo inerte,
as suas mãos palpando o frio úmido do rosto do cadáver, os seus dedos ficando
assinalados em sangue na face do morto. Olhou de repente para as mãos, e
pareceu-lhe vê-las cheias de sangue ainda fresco e morno, fumegando como ao
esguichar da ferida de um assassinado. Ergueu-se, cambaleando; e levantando a
gola do casaco, derrubando para os olhos o chapéu, cosendo-se com as paredes,
escondendo-se na sombra, tremendo e ficando-se palpitante ao ver alguém que
parecia dirigir-se-lhe, foi meter-se em casa com precauções de ladrão, com
esquivanças de assassino que se evade.
O escuro da
escada fez-lhe medo, via de repente alvorecer em certos pontos da treva a face
lívida do cadáver — do seu cadáver — e tomar-lhe os degraus. No seu quarto
fechou-se por dentro, acendeu a luz, e passou toda a noite sentado numa
cadeira, absolutamente imóvel, na atitude boquiaberta e desvairada do assombro
perante qualquer coisa de infinitamente horroroso, tendo um solavanco elétrico
a cada rangidozinho do caruncho nas madeiras, pelo silêncio cavo da noite.
Por volta da
madrugada, adormeceu.
Viu-se
deitado num esquife, assassinado, com um buraco de bala na fronte; e assim morto,
atrozmente pálido, com as mãos encruzadas sobre o peito, um polícia da segunda
divisão agarrava-o pelo ombro, dizendo-lhe:
— Está
preso! ande lá pra esquadra!...
Teve um
sobressalto e acordou. Ao cabo de cinco minutos, adormeceu de novo.
Viu-se na
estrada do Campo Grande, por horas mortas da noite, fazendo uma espera ao
assassinado, apertando na mão crispada um punhal. E esse punhal era feito de
uma velha gazeta, mortiferamente retorcida. Mas uma patrulha da guarda
municipal surpreendia-o, e forçava-o a confessar o seu criminoso intento,
apontando-lhe à cabeça, com arreganho, um apito.
Acordou de
novo, alagado em suor frio. Era manhã clara. Seriam oito horas.
Levantou-se,
marchou maquinalmente para a porta num passo hirto de fantasma, e saiu. Um
amigo disse-lhe na rua, rindo:
— Vais sem
chapéu?!...
Não fez
reparo nas palavras nem no fato. Entrou num comissariado de polícia, e contou
ao comissário:
— Venho
dar-me à prisão. Fui eu que matei esse homem no Campo Grande. Matei-o agora
mesmo... porque precisava absolutamente de matar esse morto...
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