Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ora, um dia, lembrou-se o
Judeu de dar um baile e atreveu-se a convidar a gente da terra, a modo de
escárnio pela verdadeira religião de Deus Crucificado, não esquecendo, no
convite, família alguma das mais importantes de toda a redondeza da vila. Só
não convidou o vigário, o sacristão, nem o andador das almas, e menos ainda o
Juiz de Direito; a este, por medo de se meter com a Justiça, e aqueles, pela
certeza de que o mandariam pentear macacos.
Era de supor que ninguém acudisse
ao convite do homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor
Jesus-Cristo numa cruz, mas, às oito horas da noite daquele famoso dia, a casa
do Judeu, que fica na rua da frente, a umas dez braças, quando muito, da
barranca do rio, já não podia conter o povo que lhe entrava pela porta adentro;
coisa digna de admirar-se, hoje que se prendem bispos e por toda parte se desmascaram
lojas maçônicas, mas muito de assombrar naqueles tempos em que havia sempre
algum temor de Deus e dos mandamentos de Sua Santa Madre Igreja Católica
Apostólica Romana.
Lá estavam, em plena judiaria,
pois assim se pode chamar a casa de um malvado Judeu, o tenente-coronel Bento
de Arruda, comandante da guarda nacional, o capitão Coutinho, comissário das
terras, o Dr. Filgueiras, o delegado de polícia, o coletor, o agente da
companhia do Amazonas; toda a gente grada, enfim, pretextando uma curiosidade
desesperada de saber se, de fato, o Judeu adorava uma cabeça de cavalo mas, na
realidade, movida da notícia da excelente cerveja Bass e dos sequilhos que o
Isaac arranjara para aquela noite, entrava alegremente no covil de um inimigo
da Igreja, com a mesma frescura com que iria visitar um bom cristão.
Era em junho, num dos anos de
maior enchente do Amazonas. As águas do rio, tendo crescido muito, haviam
engolido a praia e iam pela ribanceira acima, parecendo querer inundar a rua da
frente e ameaçando com um abismo de vinte pés de profundidade os incautos transeuntes
que se aproximavam do barranco.
O povo que não obtivera
convite, isto é, a gente de pouco mais ou menos, apinhava-se em frente a casa
do Judeu, brilhante de luzes, graças aos lampiões de querosene tirados da sua
loja, que é bem sortida. De torcidas e óleo é que ele devia ter gasto suas
patacas nessa noite, pois quantos lampiões bem lavadinhos, esfregados com
cinza, hão de ter voltado para as prateleiras da bodega.
Começou o baile às oito horas,
logo que chegou a orquestra composta do Chico Carapana, que tocava violão; do
Pedro Rabequinha e do Raimundo Penaforte, um tocador de flauta de que o
Amazonas se orgulha. Muito pode o amor ao dinheiro, pois que esses pobres
homens não duvidaram tocar na festa do Judeu com os mesmos instrumentos com que
acompanhavam a missa aos domingos na Matriz. Por isso dois deles já foram
severamente castigados, tendo o Chico Carapana morrido afogado um ano depois do
baile e o Pedro Rabequinha sofrido quatro meses de cadeia por uma descompostura
que passou ao capitão Coutinho a propósito de uma questão de terras. O
Penaforte, que se acautele!
Muito se dançou naquela noite
e, a falar a verdade, muito se bebeu também, porque em todos os intervalos da
dança lá corriam pela sala os copos da tal cerveja Bass, que fizera muita gente
boa esquecer os seus deveres. O contentamento era geral e alguns tolos chegavam
mesmo a dizer que na vila nunca se vira um baile igual!
A rainha do baile era,
incontestavelmente, a D. Mariquinhas, a mulher do tenente-coronel Bento de
Arruda, casadinha de três semanas, alta, gorda, tão rosada que parecia uma
portuguesa. A D. Mariquinhas tinha uns olhos pretos que tinham transtornado a
cabeça de muita gente; o que mais nela encantava era a faceirice com que sorria
a todos, parecendo não conhecer maior prazer do que ser agradável a quem lhe
falava. O seu casamento fora por muitos lastimado, embora o tenente-coronel não
fosse propriamente um velho, pois não passava ainda dos cinquenta; diziam todos
que uma moça nas condições daquela tinha onde escolher melhor e falava-se muito
de um certo Lulu Valente, rapaz dado a caçoadas de bom gosto, que morrera pela
moça e ficara fora de si com o casamento do tenente-coronel; mas a mãe era
pobre, uma simples professora régia!
O tenente-coronel era rico,
viúvo e sem filhos e tantos foram os conselhos, os rogos e agrados e, segundo
outros, ameaças da velha, que D. Mariquinhas não teve outro remédio que mandar
o Lulu às favas e casar com o Bento de Arruda. Mas, nem por isso, perdeu a
alegria e a amabilidade e, na noite do baile do Judeu, estava deslumbrante de
formosura. Com seu vestido de nobreza azul-celeste, as suas pulseiras de
esmeraldas e rubis, os seus belos braços brancos e roliços de uma carnadura
rija, e alegre como um passarinho em manhã de verão. Se havia, porém, nesse
baile, alguém alegre e satisfeito de sua sorte, era o tenente-coronel Bento de
Arruda, que, sem dançar, encostado aos umbrais de uma porta, seguia com o olhar
apaixonado todos os movimentos da mulher, cujo vestido, às vezes, no rodopiar
da valsa, vinha roçar-lhe as calças brancas, causando-lhe calafrios de
contentamento e de amor.
Às onze horas da noite, quando
mais animado ia o baile, entrou um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e
chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola
levantada do casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para
uma contradança que ia começar.
Foi muito grande a surpresa de
todos, vendo aquele sujeito de chapéu na cabeça e mal-amanhado, atrever-se a
tirar uma senhora para dançar, mas logo cuidaram que aquilo era uma troça e
puseram-se a rir, com vontade, acercando-se do recém-chegado para ver o que faria.
A própria mulher do Bento de Arruda ria-se a bandeiras despregadas e, ao
começar a música, lá se pôs o sujeito a dançar, fazendo muitas macaquices,
segurando a dama pela mão, pela cintura, pelas espáduas, nos quase abraços
lascivos, parecendo muito entusiasmado. Toda a gente ria, inclusive o
tenente-coronel, que achava uma graça imensa naquele desconhecido a dar-se ao
desfrute com sua mulher, cujos encantos, no pensar dele, mais se mostravam
naquelas circunstâncias.
— Já viram que tipo? Já viram
que gaiatice? É mesmo muito engraçado, pois não é? Mas quem será o diacho do
homem? E essa de não tirar o chapéu? Ele parece ter medo de mostrar a cara...
Isto é alguma troça do Manduca Alfaiate ou do Lulu Valente! Ora, não é! Pois
não se está vendo que é o imediato do vapor que chegou hoje! E um moço muito
engraçado, apesar de português! Eu, outro dia, o vi fazer uma em Óbidos, que
foi de fazer rir as pedras! Aguente, dona Mariquinhas, o seu par é um decidido!
Toque para diante, seu Rabequinha, não deixe parar a música no melhor da
história!
No meio de estas e outras
exclamações semelhantes, o original cavalheiro saltava, fazia trejeitos
sinistros, dava guinchos estúrdios, dançava desordenadamente, agarrando a dona
Mariquinhas, que já começava a perder o fôlego e parara de rir. O Rabequinha
friccionava com força o instrumento e sacudia nervosamente a cabeça. O Carapana
dobrava-se sobre o violão e calejava os dedos para tirar sons mais fortes que
dominassem o vozerio; o Penaforte, mal contendo o riso, perdera a embocadura e
só conseguia tirar da flauta uns estrídulos sons desafinados, que aumentavam o
burlesco do episódio. Os três músicos, eletrizados pelos aplausos dos
circunstantes e pela originalidade do caso, faziam um supremo esforço, enchendo
o ar de uma confusão de notas agudas, roucas e estridentes, que dilaceravam os
ouvidos, irritavam os nervos e aumentavam a excitação cerebral de que eles
mesmos e os convidados estavam possuídos.
As risadas e exclamações
ruidosas dos convidados, o tropel dos novos espectadores, que chegavam em chusma
do interior da casa e da rua, acotovelando-se para ver por sobre a cabeça dos
outros; sonatas sinistramente burlescas do sujeito de chapéu desabado, abafavam
os gemidos surdos da esposa de Bento de Arruda, que começava a desfalecer de
cansaço e parecia já não experimentar prazer algum naquela dança desenfreada que
alegrava tanta gente.
Farto de repetir pela sexta
vez o motivo da quinta parte da quadrilha, o Rabequinha fez aos companheiros um
sinal de convenção e, bruscamente, a orquestra passou, sem transição, a tocar a
dança da moda.
Um bravo geral aplaudiu a
melodia cadenciada e monótona da Varsoviana, a cujos primeiros compassos
correspondeu um viva prolongado. Os pares que ainda dançavam retiraram-se, para
melhor poder apreciar o engraçado cavalheiro de chapéu desabado que,
estreitando então a dama contra o côncavo peito, rompeu numa valsa vertiginosa,
num verdadeiro turbilhão, a ponto de se não distinguirem quase os dois vultos
que rodopiavam entrelaçados, espalhando toda a gente e derrubando tudo quanto
encontravam. A moça não sentiu mais o soalho sob os pés, milhares de luzes
ofuscavam-lhe a vista, tudo rodava em torno dela; o seu rosto exprimia uma
angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam ver um êxtase de amor.
No meio dessa estupenda valsa,
o homem deixa cair o chapéu e o tenente-coronel, que o seguiu assustado, para
pedir que parassem, viu, com horror, que o tal sujeito tinha a cabeça furada.
Em vez de ser homem, era um boto, sim, um grande boto, ou o demônio por ele,
mas um senhor boto que afetava, por um maior escárnio, uma vaga semelhança com
o Lulu Valente. O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora,
espavorido com o sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua,
sempre valsando ao som da Varsoviana e, chegando à ribanceira do rio, atirou-se
lá de cima com a moça imprudente e com ela se atufou nas águas.
Desde essa vez, ninguém quis
voltar aos bailes do Judeu.
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