Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Lorsqu'on voit deux grands peuples se faire une guerre longue et
opiniâtre, Cest souvent une mauvaise politique de penser qu'on peut demeurer spetateur
tranquille; car celui des deux peuples qui est le vainqueur entreprend d'abord
de nouvelles guerres, et une nation de soldats va combattre contre des peuples
qui ne sont que citoyens.
MONTESQUIEU.
Mestre urso, senhor de toda a
parte da montanha que olhava para o norte, fez constar aos seus vizinhos do sul
que resolvera e jurara, à fé inquebrantável de urso, não permitir que pisassem
a montanha, senão como hóspedes, quaisquer animais de outras regiões, ainda que
lhe fosse preciso, para manter a independência daquelas altitudes, deixar a
última felpa nas garras do estrangeiro, porque entendia que Deus criara aquela
eminência maravilhosa para os animais que nela haviam nascido.
Logo que foi conhecida a
resolução do urso poderoso reuniram-se todos os animais da vizinhança e, em
festa estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor do norte, que
ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.
Pouco tempo depois um dos
animais, cuja toca (que tinha a forma perfeita de um tonel e por tal lhe
chamavam — a cuba) fora descoberta por um caçador do ultramar que a cercara
convenientemente para garantir-lhe a posse e manter em obediência o morador,
resolveu revoltar-se contra as continuas vexações e pôs-se a roer o cercado pondo
abaixo o tapigo. Veio, porém, o caçador e o animal, posto que fraco, não
mostrou arreceiar-se do inimigo e esperou-o de frente, com audácia tão grande que
mais parecia loucura.
Lutavam os dois quando o urso,
que espiava de longe, lambendo as patas, notou que o cansaço e as muitas feridas,
pelas quais escorria o sangue de ambos, ia-os enfraquecendo; sorriu, então, e
levantou-se descendo vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o animal
brigavam com desespero.
Ficou à espreita e, em dado
momento, levou sorrateiramente para o lugar do combate uma malga de leite e lá
a deixou, recolhendo a pata.
Sucedeu o que era de esperar:
o caçador, que não dera pelo urso e muito menos pela sua traça, no furor da peleja,
deu com o pé na malga e lá se foi o leite.
Levantou-se a fera aos urros
protestando contra a afronta. O caçador quis ainda provar-lhe que não vira a
malga, escondida, como estava, entre as ervas do campo, mas o urso a nada
atendeu e, vendo o adversário arquejante, vermelho de sangue, com as roupas em
frangalhos, achou a ocasião excelente para cair-lhe em cima e, assim pensando, logo
executou.
O caçador, que era brioso,
apesar de reconhecer a grande superioridade do antagonista inopinado, não
desertou a liça; travaram-se. Mas que podia fazer o desgraçado, já esgotado e
consumido por um longo combater, contra aquele que vinha, fresco e bem nutrido,
dos alcantis da montanha subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso logo
espichou o corpo a pretexto de descansar um bocado.
Os animais vizinhos alvoroçaram-se
de alegria vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, só o da cuba não via
com bons olhos aquele corpanzil imenso estirado ali, logo à entrada da sua
moradia, tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar, primeiro para
agradecer-lhe o socorro, depois para pedir que lhe deixasse livre o terreno.
Ouviu o urso a reclamação
lambendo vagarosamente as patas, ao fim disse:
Amigo, se eu aqui não viesse,
tu ainda estarias a lutar com o caçador. Para livrar-te dele sacrifiquei uma
malga de leite e tu não levas em conta o meu prejuízo. Queres que me vá embora
e se o caçador tornar? São, deixa-me ficar por aqui, e dá-me alguma coisa,
porque estou com fome". E dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba, como
senhor na varanda da sua casa.
Entraram, porém, os vizinhos a
murmurar contra aquela ocupação:
Afinal, que lucrava o animal?
passar de um senhor a outro; isso pouco valia e, se o urso não se intrometesse
na luta, talvez que o animal já se houvesse libertado do caçador que o mantinha
sob o seu domínio, não porque dele tirasse proventos, que só despesas lhe dava,
mas por amor próprio e hábito”.
O urso não andava bem e,
crescendo as murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes, porém, de
partir, chamou o animal e disse-lhe:
Eu parto, volto à minha
montanha, mas fico de lá com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não quero
histórias com vizinhos nem negócios sem o meu consentimento. O mundo está cheio
de perfídias e tu és ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descansa”. E foi-se.
Lá trepou à montanha e,
deitado, tem os olhos no animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que
o gato deixa em liberdade, mas que lhe sente o peso bruto das patas e os
ferrões das presas se vai a entrar no buraco ou se se aproxima de alguma
fresta.
Um dia o guanaco, que vivia em
lítio com o tapir por causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas finanças
desbaratadas, quando avistou mestre urso no viso da montanha. O guanaco, que
não é covarde, mas que é prudente, desconfiou daquela visita e pôs-se em guarda;
o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um aceno da pata, pedindo que chegasse à fala,
porque tinha a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O guanaco
foi indo, vagaroso e matreiro, e, corno havia um fundo abismo na montanha,
deixou-se ficar à margem, pedindo ao urso que falasse. E o urso disse:
— Amigo guanaco, eu sei que
andas muito preocupado com essa questão de terras que o teimoso tapir insiste
em afirmar que são dele. Não sei se são, sei que tens os olhos nelas porque te
convém e como eu simpatizo contigo, que és um, excelente guanaco, venho dar-te
um conselho. Tu não podes entrar em contenda com o tapir que, apesar de andar
entresilhado, é ainda animal de força; há um meio, porém, e magnífico, de
arranjarmos isso. Os meus ursinhos são muito expansivos, nem há no mundo
animais tão expansivos como eles e, como a borracha é também expansiva, eles andam
com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de expansão, eu organizo uma
companhia que arrendará as ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e
habitadas pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico à espera. É natural que o
tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos; não te importes — eu estou lá
em cima para o que der e vier. Se a coisa for por diante — o que não é
provável, porque eu conheço o tapir: aquilo é só parola e guincho — descerei
dos meus alcandores e procurarei acalmar a questão, mostrando que os meus ursos
empataram grossos cabedais na empresa e que não os podem perder. Demos que o
tapir se enfune e queira reagir — contra um guanaco um tapir é um tapir, mas
que é um tapir quando lhe surge pela frente um urso? Pensa e resolve, mas não digas
que falaste comigo. Torno para o cimo da montanha e lá fico às tuas ordens.
Adeus, respeitos à senhora.
E bambo, lá se foi mestre urso
sorrindo, muito contente com a sua ideia. Mestre guanaco desceu para os seus
campos pensando na proposta generosa ao vizinho quando, detendo-se a margem de
uma clara fonte, ouviu uma voz que o chamava:
— Guanaco amigo.
Guanaco levantou a cabeça e
deu com um grande e alteroso condor pousado no píncaro de um penedo.
— Que queres de mim, irmão
condor?
— Ouvi toda a conversa que
tiveste com o vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho: Não te fies no
urso. O que ele te propôs, a título de benefício, é uma traição e não queiras
servir de porta à ganância insaciável desse animal que, por muito jurar, já nos
não merece confiança. O que ele quer é meter uma cunha nos domínios que nos
pertencem para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los. Juntos poderemos
resistir à sua ambição desmedida e ai de nós! porém, se ele conseguir colocar
em nossas terras um só urso! No dia seguinte os campos que percorres, os
alcantis, em que tenho o meu ninho, serão fojos de feras e nós não teremos
terras nem águas, tudo será do urso que lá tem cativo, preso por uma corrente à
sua penha, o animal que ele pretendeu libertar das mãos do caçador.
Se o tapir não tem razão vamos
chamá-lo à razão, mas com calma e estou certo de que virá; não queiras porém
que, mais tarde, quando a montanha despejar sobre os nossos vales e campos a
avalanche ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor que franqueou as
terras livres ao invasor insaciável.
Diz o urso que a montanha ó
dos montanheses... Acautela-te, guanaco!
palavras de urso não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fábula do leão. Hoje
será a companhia estabelecida nas terras litigiosas, amanhã serão os teus
terrenos, depois os meus, depois os dos nossos irmãos e ele ficará senhor da
montanha e nós seremos escravos vis dentro da pátria que pretendes trair. Eu
falo como condor: vejo longe. Lá da altura passeio os olhares pela terra e sei
o que nela se faz. Se queres o cativeiro deixa entrar o urso.
Ouviu o guanaco e ficou a
pensar mirando-se na corrente e mirava-se quando do alto o urso, que espreitava,
rugiu:
— Então, guanaco amigo? vai ou
não vai? E o condor, que levantava o voo, bradou do espaço:
— Olha o trust do território! Olha o trust
da montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda à cunha da perfídia. Cuidado!
Foi-se e o urso, lambendo as
patas, ficou a olhar o guanaco, que pensava.
— Então, amigo guanaco?
— Espera um instante, amigo
urso.
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