Nas águas do mar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O púlpito da sua maior
eloquência não tinha entalhes preciosos nem recamos clássicos, por ele não
andara o formão nem a goiva o cavara; por ele não se enastravam folhagens nem
anjos o rodeavam, em coros jocundos, soprando tubas ou tangendo harpas — o
púlpito de sua maior eloquência foi um bruto e desconforme penhasco, negro e
calvo, fincado nas areias de beira-mar. Da sua base a onda fervia e o verde e
pútrido sargaço formava uma orla verde. Ali pousavam as gaivotas nos dias
azuis, ali refugiavam-se as procelárias quando os grandes ventos conflagravam
os mares, dali falou o santo aos peixes.
Não era Antônio um frade do
abismo, posto que as fundas águas de esmeralda também possuam congregações
religiosas. Heine faz menção de dois ou três bispos marinhos, que deram à costa
nos frios litorais do Norte, arrojados à praia por algum vagalhão herético ou
colhidos na rede dum pescador ousado.
Antônio, nascido em Lisboa,
era frade paduano e a razão que alegam os seus biógrafos, explicando o seu
capricho de pregar aos peixes, é ponderosa. Os homens, incrédulos e desatentos,
faziam ouvidos de mercador às suas santas palavras. Debalde ele os chamava para
a virtude, debalde lhes prometia a bem-aventurança, os ingratos achavam maior
prazer no vício e preferiam a vida terrena, que conheciam, à outra que era
apenas uma hipótese de pregadores. “Mais vale um pássaro na mão que dois voando”,
diziam e a igreja ficou às moscas.
Eis porque o santo resolveu
pregar aos peixes.
Logo que ele surgiu no cimo do
penhasco acardumou-se o mar que, de verde que era, ficou colmado de prata —
robalos, badejos, sardinhas, pescadas, baleias monstruosas, tubarões vorazes, linguados,
raias, polvos, enguias, todos os representantes do povo escamoso, acudindo apressadamente
dos antros, subiram à tona do mar plácido e ouviram devotamente a pregação do
frade.
Antônio falou com muita
inspiração referindo-se aos gozos enganadores e efêmeros da vida e, quando
aludiu ao céu, foi tal o poder da sua palavra inflamada que os peixes entraram
a flagelar o mar com as barbatanas, que é assim que os peixes manifestam o seu
entusiasmo. Alguns, mais sensíveis, ficaram com os olhos marejados, e, convertidos,
levantaram um grande e atroante clamor, pedindo o batismo.
Desceu Antônio do penhasco e,
como os catecúmenos estivessem na melhor das pias, limitou-se a pronunciar as
palavras sacramentais, dando a cada um o nome que lhe subiu à boca naquela hora
milagrosa e foi assim que os peixes ganharam os nomes porque são hoje conhecidos
nos mercados.
Finda a pregação, despediu o
santo o seu auditório e desceu do sáxeo púlpito. Foi, então, uma alegria imensa
no mar. Os peixes, confiando na promessa de paz que lhes fizera o santo, saíram
contentes nadando à flor das águas que o luar fazia de prata.
As baleias golfavam trombas
espumosas, os botos viravam as mais arriscadas cambalhotas, as raias saltavam
caindo de chapa na água, com estrépito, e as sardinhas, aos milhares, toldavam
o mar semelhando ilhas brancas e resplandecentes que fulguravam ao luar. Só um velho
espadarte, desconfiado e prudente, em vez de sair em triunfo apregoando a
bondade do propagandista e a facúndia do orador, como faziam os seus irmãos,
desceu a meter-se na lapa mais funda, entre as mais enredadas algas, buscando,
com dificuldade, encravar-se nos labirintos de coral, e quieto, lá se deixou
ficar a ver em que paravam as modas.
Ali jazia mestre espadarte
quando viu passar uma gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda, com pressa, como
se fosse ligeiramente a algum negócio urgente.
— Irmã tainha, perguntou o
matreiro peixe, onde vais tão taful e com tamanha azáfama e açodamento?
— Onde vou? Que pergunta! Vou
gozar o luar que lá em cima esplende e vou aspirar o aroma que chega dos
jardins da terra.
— E não receias o anzol e a
rede do pescador?
— O anzol e a rede? Pois não
ouviste o sermão do santo, irmão espadarte?
— Ouvi, irmã; ouvi e aqui
estou nesta lapa porque não há outra mais funda por estes mares; e acho que farias
bem se te deixasses ficar entre as lajes em que nasceste. Deixa lá o luar,
deixa lá o perfume; enlapa-te, irmã tainha, enlapa-te.
— Pois desconfias do santo
irmão, espadarte?
— O santo é homem e eu sou
peixe, irmã.
— Que tem isso? Ah! minha
irmã, bem se vê que és muito nova. O Deus dos homens, minha irmã, morreu por
eles e não por nós. E ora aí os homens que o trouxeram à terra com os seus
pedidos de misericórdia. E que fizeram os homens? pregaram-no em uma cruz. Que devia
acontecer depois de tamanha ingratidão! devia baixar sobre os homens um castigo
tremendo, não é verdade?
— Sim.
— Pois, minha irmã, o castigo
baixa, mas é sobre os peixes, que nada fizeram. Quando os homens comemoram o
sacrifício do seu Deus atiram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação por
esses mares que... não te digo nada. Se nós tivéssemos um Deus poderíamos ter
uma quaresma e nela tiraríamos justa vingança dos homens, mas nós somos peixes,
não temos Deus, não temos política, não temos nada.
— Então achas que Santo
Antônio?...
— Eu acho que Santo Antônio
quer pregar-nos alguma. Palavras de tal homem a peixes... uhm! Isso é isca!
Minha irmã, quando um superior desce assim a intimidade com a canalha...
desconfia dele: o menos que pôde pedir é a vida. Para o homem o reino do céu
dos peixes... é o escabeche. Enlapa-te, irmã tainha, e deixa lá andar em cima
quem anda.
Pela manhã uma sardinha passou
desgarrada e espavorida diante do velho espadarte:
— Que é isso, irmã sardinha?
Onde vais assim aforçurada!
— Ih! irmão espadarte... o
sermão do frade... o sermão do frade.
— Lindíssimo! Admirável! Um
primor de forma.
— Uma isca perversa! As redes
varreram o mar de praia a praia e, como nós confiávamos na promessa de paz, a
pesca foi avultada, nem sei mesmo se ainda haverá peixes que continuem a
espécie nestas águas.
— De outros não sei, mas que
há espadartes e sardinhas garanto — sardinhas porque atravessam as malhas por
serem pequeninas, espadartes porque não se fiam em palavras. Palavras,
palavras, palavras... E parecia que a alma de Hamlet se havia encarnado no atilado
peixe.
Desde então nunca mais
quiseram os peixes ouvir sermões. E por essas e outras vão os milagres rareando
e... não aparecem eleitores em dias de eleição.
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