Mistério
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
A sua dor era tão grande que pondo a mão na sua fronte sentia todo o seu esqueleto.
O ônibus
que o conduzia resvalava agora barulhento de ferragens pela Avenida monumental,
e esse ruído acre, unindo-se às luzes imensas que o fustigavam zebrando-se
através das vidraças tilintantes, dava bem a expressão rítmica da sua alma
atual. A sua alma de hoje era toda vidros partidos e sucata leprosa.
Disperso,
o artista olhou em redor de si. Atentou no panorama que o envolvia e pôs-se a
delirá-lo, seguindo-o na sua multiplicidade. Pois o cenário interior do auto-ônibus
era inconstante: variava momento a momento em função da paisagem exterior. Ao
dobrar as esquinas, os grandes prédios e as árvores atravessavam-no resvalando
em semicírculo, e os candelabros ziguezagueantes vergavam-se enclavinhadamente,
penetrando em rodopio pelas janelas.
Depois, o
transeunte que esperara o carro num portal e subira com o veículo a andar,
trazia ainda consigo o quadro da porta aonde se incrustara; bem como a rapariga
gentil e europeia que se assentara agora ao lado dele, vibrava toda ainda de
luar, perlada de movimento, pois correra fugitiva do grupo das suas
companheiras a trincarem, a rir, laranjas de Espanha – lá longe já – e sobre as
quais, saudosa a alma, a lua de dezembro incidia ecos de platina.
E no
ambiente da mobilidade, olhando mais, ele distinguia, realmente distinguia à
força de concentração, gomos de ar que se entrechocavam e soçobravam em
catadupas, vértices esbatidos de luz, calotes de cor, planos que ora volteavam
ora se detinham, harmonizando-se bizarramente, e eram assim – com as coisas que
sustentavam ou traspassavam – uma beleza nova talvez, em todo o caso bem digna
dum pintor imortal.
Desviando
a sua atenção para as formas materiais que tinha em sua volta, o artista via
agora as oscilações arrepiadas e berrantes dos bancos vermelhos da primeira
classe deserta, e as fisionomias múltiplas dos passageiros cujos rostos se
confundiam sucessivamente com os dos transeuntes que deslizavam pela rua,
paralelos a eles, e que eram só os seus próprios quando o veículo parava...
O movimento!
o movimento! – o grande renovador que tudo multiplica, e vibra, e delira... Por
que era a sua desolação tamanha? Precisamente porque a sua vida era uma
existência parada de alma e corpo – uma existência onde nunca sucedera coisa
alguma. A sua vida era como se não existisse. Por isso, uma tarde de ânsia, o artista
tomara a decisão esbraseada de a procurar febrilmente, de a construir, por suas
próprias mãos ungidas, à força de aventura. E desde aí, elançara-se sôfrego sobre
o mundo, sobre a vida em suma, transpondo, correndo, estrebuchando... Mas nada até
hoje vencera erguer dela para si. O seu corpo e a sua alma pareciam ter a estranha
propriedade de afastar as horas, assim como, inversamente, o ímã atrai o ferro.
Tudo girava em seu redor e fugia; só ele era sempre o centro da enorme
circunferência. Deslocando-se em alma ou corpo, a querer aproximar-se do que
lhe esvoava – às horas o mesmo acontecia, de maneira que a sua posição era
sempre a mesma relativamente ao que, cingindo-o, se lhe esgueirava em rodopio longínquo.
Ele era aquele que não tinha papéis nas suas gavetas, que podia mostrar a sua
carteira a qualquer. Um criador. Por isso mesmo, quem sabe, não lhe existia a
vida.
Orgulho!
Orgulho! Mas em todo o caso o resgate, uma agonia tão seca...
Entanto
descera na grande praça. Chamou por si fortemente, e para maior ser a sua dor,
começara agora a ver-se em toda a lucidez.
Que
desconforto! A sua alma era uma casa enorme, no inverno, com a mobília
atravancada, forrada de sarapilheiras, e as janelas abertas por onde o vento se
engolfava sibilante... e muito pó, sobretudo muito pó, em grandes rimas de
livros e manuscritos.
Nada o
atraía já nem o entusiasmava; as coisas raras que ainda não tivera
positivamente, se acaso as aproximava, fugia-lhes na maior das desilusões, como
ainda essa manhã fugira da rapariguinha loira com quem almoçara.
Depois –
e era essa a última tortura – o descalabro da sua alma, já ele o sofria fisicamente,
traduzido por um torpor constante, um sono invencível – um desejo insaciável de
viver de olhos cerrados. E esse sono, penetrando-o, era como que um álcool que
o ruísse: não lhe entorpecia só o cérebro, embebedava-lhe todo o corpo. Pois
esse sono prostrado, ele sentia-o em toda a sua carne. Toda a sua carne tinha
vontade de fechar os olhos.
Turbilhões
de pensamentos por a mínima coisa suscitados lhe sibilavam no espírito sempre
redemoinhante, e mesmo quando em verdade não pensava em coisa alguma, sentia entanto,
nitidamente sentia, o seu cérebro a trabalhar. Apenas a sua febre lhe não
chegava aos ouvidos. Martírio sem nome! Martírio sem nome!
Ah! se pudesse
descansar enfim... E antevisionava um quarto de hospital, muito branco, aonde,
para não mais se erguer, se deitasse num grande leito, muito branco também.
Outras
vezes, fustigavam-no ideias despropositadas, sobretudo lembranças vagas,
reminiscências ínfimas que lhe ocorriam sem motivo. E assim, agora mesmo, de súbito,
lhe acudira a recordação bem nítida dum dia de chuva da sua infância que vivera
em uma praia do norte, no seu país. Chovera todo o dia, sinistramente,
torrencialmente. O céu conservara-se noturno, houvera relâmpagos, trovões,
muito vento – ah, um vento horrível que silvara desolador, arrepiante, pelas
ruas do pequeno jardim do chalé. Era já pelo outono. E as folhas secas,
amarelas, as folhas mortas, haviam redemoinhado largo tempo, vergastadas sem
piedade de encontro às vidraças.
Mas pela
tarde amainara o temporal. Morrera o vento, cessara a chuva, tinha-se azulado o
céu. E o sol, um sol triste, o sol nostálgico das tardes outonais, surgira amorável,
confortadoramente dourado. Então, com a velha ama de seu pai, fora a comprar
pão de milho, pão quente e louro a sair do grande forno provinciano. E
lembrava-se tão bem das ruas alagadas, das ruas estreitas e cinzentas,
friamente cheirosas à umidade penetrante do ar que o sol fraco iluminava...
Mas por que
motivo, ai, porque motivo, lhe viera ao espírito essa tarde banal da sua infância,
só úmida e chuvosa? Por que motivo? Porque na sua alma – descobriu com horror –
ele tinha hoje a mesma sensação de desconforto estagnado: sim, na sua alma
havia hoje a mesma umidade penetrante, esguiamente arrepanhada, que desolara
uma tarde agreste da sua infância...
Em voz
débil, um mendigo suplicou-lhe uma esmola. Era um velho homem de barba florida,
e alto, e heráldico, tiritante de frio. O artista levou a mão à algibeira.
Tirou algumas moedas de cobre, estendeu-lhas. O velho homem agradeceu. E assim
como muitas vezes chorara a infância das pessoas idosas que estimava, uma
piedade infinita começou agora a torturá-lo – piedade por todos os que sofriam,
e mesmo pelos que não sofriam: os felizes, os medíocres, toda a gente... à força
de egoísmo, sentia-se quase morto de ternura compadecida.
Entre
estes pensamentos esmagadores, chegou ao seu quarto. Era um vasto aposento num
bom hotel, atapetado, confortável, do qual entanto ele desertava todas as horas
que lhe era possível. Pois quando, especialmente de dia, se encontrava nesse
quarto, parecia-lhe que todos os móveis e os reposteiros o traspassavam, e que
as próprias paredes, mimando esgares obscenos, cresciam sobre ele a esmagá-lo.
Uma noite acordara até horrorizado: a casa inteira endoidecera e, se não
fugisse para o corredor, decerto que, numa loucura furiosa, as cadeiras e o
guarda-vestidos de mogno o teriam estrangulado. Tratara-se apenas dum pesadelo,
era claro, tão estrambótico porém que, embora medonho, o fizera rir sozinho às gargalhadas
quando acordara dele.
Deitou-se
logo e, antes de adormecer, pensou ainda: “Todo o meu sofrimento provêm disto:
sou um barco sem amarras que vai bêbado ao sabor das correntes. Se conseguisse
lançar ancoras... Mas aonde... aonde?...”
E na
manhã seguinte, após um sono seguido de dez horas, acordou morto de sono para
viver mais um dia igual e vazio da sua vida...
Logo de
manhã lembrara-se: “Que sensação tão bizarra eu tive ontem ao colocar a mão na
minha fronte... Senti todo o meu esqueleto. Mas senti-o singularmente. Senti-o
em sombra. É verdade: quando levei a mão à minha fronte, senti que por debaixo
dela se esgueirava a sombra esguia do meu esqueleto. Era esta a expressão da dor
máxima, compreendi. Mas por que... por quê?... E se eu enlouquecesse?...”
Muitas
vezes o artista, para remédio da sua angústia, pensava no suicídio. E então
dilacerava-o uma ternura infinita, uma piedade ilimitada por si próprio. Pois
havia de se destruir, ele?... Sim, era essa talvez a salvação... Que
tristeza!... E via-se alguém que atravessasse uma ponte transportando um fardo
precioso e que, por não ter mais forças para o carregar, fosse obrigado a
lançá-lo ao rio, no último desânimo, perto já do seu destino.
Entanto
por mais duma vez ele decidira, positivamente decidira, meter uma bala no
coração. Chegara a comprar uma pistola. Mas por fim, até hoje, sempre
renunciara à sua ideia numa grande alegria – alegria porém logo dispersada: É
que, mesmo não se suicidando, havia de morrer mais tarde. Ainda se, ao menos, o
não suicidar-se lhe evitasse a morte...
CAPÍTULO 2
Sim,
precisava ancorar porque era preciso viver para as suas obras.
Há bem
pouco recebera uma carta dum amigo íntimo. Em resposta aos seus lamentos, aos
seus gritos de desolação, dizia-lhe este, depois de rodeios em que se
desculpava por aconselhar tal remédio a uma alma genial como a sua, que talvez
(estava mesmo certo) as horas se lhe erguessem, se lhe limpassem, se ele
quisesse procurar uma companheira gentil, acariciadora, que o entendesse um
pouco e a quem o artista desse a vida – isto é: que fosse a razão, enfim, da
sua existência destrambelhada.
Porque
era verdade: até hoje a sua vida fora passada aos tombos e aos gritos.
Afogueado, suado de alma, tendo visto todas as coisas mas nenhuma inteiramente
conhecido – sentia-se uma criança que, na ânsia de jogar com todos os
brinquedos que ao mesmo tempo lhe houvessem dado, se lançasse sobre eles, mal
tocando em cada, e logo farta, desencantada, por saber o que todos faziam, sem
verdadeiramente ter brincado com nenhum...
Uma
companheira... uma companheira... Uma noiva talvez... Sim, às horas
enternecidas, por vezes ele sofrera a nostalgia dumas mãos brancas que lhe
apertassem os dedos... e duma boca úmida que se vergasse para a sua... e de
tranças louras bem cheirosas a mocidade e a amor...
...As
ruas duma grande quinta; um ar sadio, aureolado – confiança, singeleza, paz...
Por isso,
respondera ao amigo que fora inútil pedir perdão pelo conselho. Oh, se essa
companheira existisse... se a encontrasse... Sim, sim, talvez fosse esse o remédio
da sua vida...
Procurá-la?...
Ai, para
quê, procurá-la...
Se fosse
como todos... Mas não. Ele, ao amor, exigia que fosse amor. E o amor não
existe.
Nem eram
sequer lances de paixão, requintes estranhos ou perversões longínquas que
sonhava. Apenas isto: uma alma que conhecesse inteiramente e que também lhe
soubesse toda a alma. Sendo assim, o maior afeto as uniria. E punha-se a
antevisionar uma existência quimérica: ele, o Artista, realisando pouco a
pouco, sem febre, ungidamente, as suas obras imortais, acastelando sonho após
sonho – e embaixo, quando do alto da montanha olhasse, uma vida de aurora: uma
companheira sincera, espontânea, pequenina e loira, a beneficiar-lhe a existência,
a aquecer-lha... Braços nus e rosas brancas desfolhadas.
No fundo
queria muito à vida. Eh! não o fossem imaginar alguém divagando por outras
regiões, fechado numa torre de marfim erguida além-céu. Simplesmente amava uma
vida despida de tudo quanto nela o nauseava. Ora o que o nauseava era
precisamente a vida de todos e de todos os dias...
Não,
estava decidido, não fora feito para a felicidade.
O remédio
era outro: renunciar, vivendo, ou vencer, morrendo.
Já raras
vezes procurara até vagamente essa companheira afetuosa. Mas fugira sempre
apavorado do abismo que, ao aproximar se um pouco, se lhe deparara entre ele e
a encantadora. De modo que a todas podia aplicar a frase que escrevera a uma: “Na
tua vida, meu amor, eu não fui sequer alguém que passou, alguém que surgiu –
fui um desaparecido”.
A
incompreensão!
Fora esta
a barreira em que sempre tropeçara e em que sempre havia de tropeçar – era irremediável,
demasiadamente o sabia.
De resto,
essa barreira entrepunha se entre todos os homens – os perpétuos isolados.
Apenas a maioria se contentava em trocar olhares, sinais vagos, de cada margem
do abismo. E nenhuma destas almas diligenciava sequer aproximar-se da outra,
que existia além do precipício!... Era como se fosse impossível.
Ao fim
duma convivência de muitos anos, duma convivência quotidiana, jamais toldada,
se os velhos esposos se olharem bem, se se descerem bem, encontrar-se-ão – ai,
fatalmente se encontrarão – dois estranhos separados por mil ninharias: mil
pequenas mentiras, mil deslealdades insignificantes. As suas almas nunca se
souberam – mesmo que, sinceramente, eles tenham acreditado na sua amizade e no
seu amor.
...É que
a amizade, na vida-normal, não passa duma ideia falsa, dum preconceito a que pouco
a pouco nos fomos adaptando. E o amor... Ora, uns laivos de literatura barata e
de espasmos úmidos com que excitamos a convenção e a ungimos de pacotilha...
Aliás o
artista concordava em como era difícil desvendar uma alma. Mesmo quando nós
queremos dizer a nossa a um amigo querido – escapam-nos sempre alguns detalhes
que não podemos explicar, talvez à falta de palavras, e que sentimos serem exatamente
aqueles que a descreveriam em toda a luz. Estrebuchamos, debatemo-nos contra um
denso véu que não logramos romper, que só soçobraria se o nosso interlocutor
nos compreendesse por outra coisa – não por palavras.
E eis porque
às vezes o artista receava:
“Seriam
as almas segredos?”
Ah, se ao
menos sofresse... Sim, em último caso, era possível que fosse encontrar no
sofrimento o sentido da sua vida – a raiz. Pressentira-o quando uma noite, ao
caminhar solitário por uma rua estreita, cheio de tristeza sofrida, se
descobrira muito mais feliz, com a existência bem mais cheia e embelezada, do
que ainda há pouco, por uma grande praça, antes de lhe descer essa amargura. E
talvez fosse justamente por esse motivo que, num requinte, embora sem
premeditação, ele desprezava – para os vincar de sofrimento e assim os tornar
mais sensíveis – alguns raros instantes que, se os ampliasse, lhe poderiam
seguir dourados. Assim, ainda essa tarde o ansioso de ternura, aquele que se lastimava
por nada lhe suceder, renunciara à rapariga gentil que lhe sorrira no boulevard, tão espontânea e amorável...
Em vez de lhe apertar as mãos, falara-lhe em fantasia, dissera-lhe um adeus sem
carícia, deixara-a perder para sempre...
Mas é
que, na realidade, ele nem mesmo sofria. Pois no seu espírito tudo se alterava diluído
em literatura. Das suas dores motivadas e das suas tristezas imateriais, apenas
trouxera obras-primas. Ora em face das maravilhas que umas e outras lhe
suscitavam, logo claramente deixava de as sofrer para só as abençoar e admirar.
A sua dor,
enfim, era, quando muito, a melancolia que nos fica da leitura dum livro angustiante
e imortal.
Sentia-se
numa grande intensidade por essa tarde linda de inverno. A multidão pejava os boulevards europeus da grande capital –
uma multidão bem contemporânea, ultracivilizada e latina. E o artista que
sempre se aprazera tanto no ondear da vida moderna, levado pela corrente, era quase
feliz. Subira-lhe ao cérebro, como um álcool de êxtase, toda a agitação urbana...
Esvaído
num entusiasmo azul, à sede de ventura, pôs-se a entre-sonhar, como que
acordado entre nuvens de ópio. Achara finalmente a sua companheira d’alma –
achara-a uma tarde roxa de sol, nos jardins maravilhosos dum grande palácio real
acastelado e histórico. Tudo fora quimera... Conhecera-a por acaso e logo, às primeiras
palavras, fremira adivinhando-a... Depois, com o prosseguir das tardes
carinhosas, pouco a pouco descera a sua alma – num assombro, numa irrealidade...
Não, não era engano! Descobrira-A enfim, tinha-A enfim ao seu lado!... Aquela
alma saberia sonhar toda a sua, bem como já não guardava segredos para a dele.
Aurora! Aurora!...
E percorria,
construindo-os, mil episódios gentis, banalmente quotidianos, até à realização
inteira da sua ânsia – divagava toda a paisagem rural em que a sua felicidade
desabrocharia, esboçava o perfil da encantadora, via as suas tranças, as suas
joias, os seus pés nus na água fria dum regato, o seu rubor, os seus beijos e
sorrisos, os seus véus, os seus dedos agrestes de unhas polidas, vermelhas...
Mas, de súbito,
um ruído dissonante fê-lo despertar, e logo uma raiva estranha se apoderou do
seu espírito. Pois como lhe havia de suceder alguma coisa, se tudo imaginava?
Era, claro, o bastante haver sonhado d'antemão um cenário, um enredo, uma
figura – para jamais viajar esse panorama, viver esse episódio, conhecer essa
personagem. Sonhos não se realisam. Ora ele sonhava tudo...
Não tinha
repugnâncias morais – só tinha repugnâncias físicas e, nesse sentido, as
maiores repugnâncias. Sabia-se capaz de roubar, mas não de matar.
Eram
estes talvez os segredos da sua vida deserta; eis pelo que talvez a sua vida se
restringia ao moral – isto é: ao irreal.
O mais
perturbador entanto era que, de tudo isto, trazia em verdade uma angústia invencível
– mas ao mesmo tempo um orgulho de auréola, um orgulho imenso, tão cioso e
dourado que talvez fosse ele até que lhe criasse todas as impossibilidades,
imaginariamente.
De súbito,
sem saber como, encontrou-se num grande jardim tradicional e romântico. Foi-o
percorrendo enternecido, a olhar naquele ar úmido, sadiamente aromático, as
crianças jogando a correrem afogueadas, de pernas nuas - e raparigas loiras
lendo livros de versos ou, de mãos enlaçadas, a falarem com os seus companheiros,
jovens como elas. A gente-média, a gente feliz...
As
crianças...
Era agora
um turbilhão em seu redor. Perto, um órgão de Barbaria rouquejava música.
Aproximou-se; parou em frente dum carrossel infantil... O aparelho girava
vertiginoso, numa alegria de feira, transportando um enxame de crianças a
montarem a rir, bem convictas, elefantes e pombas, leões e abelhas, panteras e
cisnes.
Ora o
artista, quando olhava para a sua infância, sofria uma saudade tão grande, um
enternecimento tão comovido... Só nessa época indecisa ele fora feliz – tivera
tudo. E por quê? Percebera-o nitidamente nesse instante – tinha ali o exemplo
em sua face: É que, na infância, não possuímos ainda o sentido da
impossibilidade; tanto podemos cavalgar um leão como uma abelha...
Noite a
noite o sofrimento do artista se fora exacerbando. Mais do que nunca, sentia
agora uma necessidade atroz de aportar. Pois num último tédio, olhando a existência,
vinha-lhe a sensação incoerentemente bizarra, de que as horas o arrastavam
consigo na sua carreira alucinante, e de que ele entretanto permanecia sempre
no mesmo tempo...
Se se
descia bem, se se media bem, achava-se numa grande amargura sem forças para se
vencer. De modo que era este o seu futuro – conformara-se –: ir-se habituando
instante a instante à ideia do suicídio. Uma vez, era fatal, chegar-lhe-ia a
força de se destruir, de ser vencido, já que não podia vencer – em suma, de pôr
termo aquela situação intolerável, úmida, estagnada, viscosa...
E foi,
desde aí, só esta a sua esperança. Mas, esperança triste que fazia por olvidar,
esquecendo-se a si próprio, anestesiando-se com a vida diária...
Como
todas as tardes, lá divagava ele, solitário, pelas grandes ruas...
De súbito,
num gesto expansivo, alguém lhe estendeu a mão... Era um conhecimento banal, a
quem nada o ligava, que há muito não via – mesmo com quem raras palavras tinha
trocado ainda...
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...E à noite,
cedo, ao encaminhar-se para sua casa, a pé, o artista ia relembrando as agradáveis
horas que passara com esse estrangeiro distante. Como fora encontrar nele uma
alma aberta, e ampla, e intensa...
Tinham
pouco falado de arte, imediatamente resvalando, numa súbita intimidade, para a
descrição das suas próprias almas. E que pontos de contato logo acharam entre
si! Como o artista, também o estrangeiro delirava em grandes ideais – e em
grandes torpores, grandes náuseas. Às vezes, confessara-lhe até, assaltava-o um
desejo esbraseado de enlouquecer a fim de pôr termo à sua vida, de qualquer
forma, e não pensar mais nela. O suicídio repugnava-lhe – quisera sempre tão
orgulhosamente à existência... E, doido, existiria – embora morto na ânsia,
tranquilo, morfinizado, visto que por convulsionada que fosse a sua loucura,
nunca o seria tanto como a sua vida de aspiração. O artista concordava com ele.
Endoidecer – que vitória!... E pusera-se a falar de si. Contara-lhe como se
sentia vogando ao sabor da corrente, barco sem amarras, ébrio de ouro sobre a água
profunda, lodacenta, amarga. Descrevera-lhe a sua angústia. Dissera-lhe do segredo
eterno das almas. E o estrangeiro observara:
– É
desolador, é horrível. Duas almas, por mais leais, por mais unidas, separa-as
sempre um turbilhão de pequeninas coisas que se aglomeram em uma nuvem impossível
de varar. Mas, ai, quem sabe se é por isso mesmo que elas existem... Enfim,
enfim, tinha achado um belo companheiro – ele que há tanto não encontrava um homem.
E a convivência entre os dois prosseguiria...
Esteve
uma semana sem o ver. Durante ela a sua angústia foi a mais dolorosa. Parecia
lhe realmente tocar um limite.
Endoidecer!
– ah, se conseguisse semelhante triunfo...
Numa
obsessão, o seu cérebro imaginoso, o seu cérebro literário, logo começou a
trabalhar essa ideia – depressa fantasiando um homem que, no desejo de
enlouquecer, saísse à rua e desfechasse de súbito um tiro sobre a primeira
criatura que passasse e ele não conhecesse. Escolheria mesmo uma rapariguinha
galante, suave e loira, porque se escolhe sempre em todas as circunstâncias.
Assim haveria um pouco de ternura na tragédia. Ora esse homem, matando alguém
que nunca encontrara, cometera um ato injustificado – isto é: um ato de loucura.
Seria preso. Explicaria o seu crime: fora para endoidecer, praticando uma ação
incoerente, que assassinara – e juntaria a razão enternecida porque escolhera a
sua vítima. À primeira vista este homem deixava de ser um doido: houvera um
motivo no seu crime – querer endoidecer. Mas, por amor de Deus, tal motivo
melhor vinha provar ainda a sua loucura: só a um doido podia ocorrer semelhante
ideia. E enfim o assassino seria dado por irresponsável, seguramente, e
encerrado em um manicômio...
Porém, na
verdade, depois de se ver em tal situação encruzilhada, este homem era ou não
era um doido? Mistério. Pois ele chegara a essa situação coerentemente louca,
por um raciocínio bem seguido, bem voluntario e bem certo.
Entanto,
colocando-se dentro da sua personagem, o artista logo concluiu que esse homem,
ainda que não fosse um doido, havia de enlouquecer, sem dúvida – pelo menos
após a sua entrada no manicômio – na ânsia de se descer e atingir se tinha ou
não vencido.
Sim,
tamanho rodopio afogueado havia de silvá-lo, que fatalmente as ideias se lhe emaranhariam
até soçobrar no azul, num último crepúsculo...
... E de
todo este estranho devaneio, é claro, só restou ao artista o assunto para uma
das suas complicadas novelas. Aliás sucedia-lhe sempre o mesmo – com as suas
divagações, e as suas tristezas, as suas dores. Por isso nunca se tomara a sério.
O
sofrimento físico em que se lhe convertera há muito a desolação moral, era
agora requintadamente torturante: Ainda o mesmo álcool, o mesmo sono em toda a
sua carne. Mas outrora essa vontade impossível de dormir, que era a febre da
sua alma angustiada, espalhava-se-lhe pelo corpo inteiro. Enquanto que hoje,
entre a carne sonolenta, havia pequenas porções, intervalos nítidos, bem
despertos. O que mais o enastrava de angústia pois, destrambelhadamente, lhe
vinha enclavinhar em torpor excitado a ânsia abatida desse quebranto infernal.
Correram
alguns dias. De novo encontrou o estrangeiro.
Uma bela
convivência se ia agora prolongando entre os dois; quase todas as tardes
passavam algumas horas juntos – e uma vez o amigo disse-lhe para vir jantar com
ele, a sua casa. Habitava com a família, o pai e duas irmãs, uma linda
propriedade nos arredores da capital assombrosa. Queria-lhe ler um poema, e
mostrar-lhe os seus livros e as flores da quinta. Tanto insistiu que o artista,
preferindo recusar, aceitou.
Pelo
caminho foi-se lembrando que era essa a primeira vez que alguém o levava a
jantar em sua casa, com a sua família...
...E
agora, às tardes perfumadas, ele revia etereamente todo aquele sonho, hoje bem
real, junto da sua companheira afetuosa, no jardim singelo da “vila” isolada
que os noivos tinham vindo habitar num país do sul – o país do artista, um país
luminoso...
Maravilha!
Maravilha!
Quando o
amigo lhe apresentara a sua irmã mais velha, quem lhe dissera que naquele
corpinho lindo e fútil estava a realização do seu sonho?... Mas logo depois,
pouco a pouco, irrealmente, de enlevo em enlevo, fora descobrindo naquela alma
A que nunca esperara encontrar – a velada sutil! Até que, de quimera em
quimera, erguera enfim a realidade, salvando a sua vida na aventura inigualável.
E hoje – vitória azul! – tinha alguém: alguém que sabia inteiramente quase, alguém
que não era um estranho, um desconhecido astral; alguém que por seu turno o
compreendia já sem segredo.
Auréola!
Auréola! Lançara pontes sobre o abismo insuperável – conquistador iriado da
sombra: e pela vez primeira, duas almas estavam ali, sim, face a face, libertas
do mistério!...
O esforço
de romper uma tênue rede áurea, e seria inteira a sua glória...
.............................................
Ah! como
se encontrava radiosamente feliz, hoje...
Tinha côncavos
de mãos brancas, sadias, onde mergulhar os seus dedos ansiosos, e uns lábios
dourados para morder – toda uma carne sensível a divagar. Sentia vida dentro de
si, ele que sempre vivera em morte. Tinha, finalmente, ele que nunca tivera.
Pois agora, ao fremir sobre o corpo gentil da amante precoce, daquela pequenina
esposa que se lhe entregava com toda a carne velada em rubor, ondeante de rosas
– um orgulho infinito o ascendia porque, nas suas mãos, em êxtases e lírios,
oscilava, realmente oscilava, não só um corpo – como outrora, nos abraços
desiludidos – mas também uma alma. E, vibrando esse corpo, emaranhava ao mesmo
tempo essa alma – sim, possuía-a carnalmente, em ânsia iriada, num espasmo de
luar, numa agonia fluida, num arrepio de auréola esbatida, sutil de transparência
sonora...
Noite a
noite o triunfo era mais nítido, era mais sensível. Entanto alguma coisa
faltava ainda – uma pequena luz – para chegar ao fim: ao além, que ele entrevia
definitivo de Oriente, e musical, ecoando timbres esguios de aromas ritmizados.
Sim! Sim!
Erguera-se! Deixara de ser um estranho: coisa alguma o isolava dessa alma
estremecida! Companheiras ideais, heroicas e profundas, reciprocamente se
haviam aprendido aquelas duas almas. E era-lhe ainda mais caricioso saber de alguém
que o conhecia sem segredo, do que ter varado enfim o mistério de alguém.
Ai, como ele
sofrera outrora nos seus grandes momentos de ternura magoada, à ânsia de se
lançar – pobre coisa, triste coisa – nos braços de alguém que, sem palavras, o
entendesse um pouco, sentisse um pouco a sua dor. E em face da incompreensão
total, mesmo de certos amigos leais que na verdade o estimavam e que, não
obstante, tão a miúdo o feriam – quantas vezes não sufocara um desejo feroz, um
desejo perverso, de lhes atirar com a sua alma como quem arremessasse com um
globo de ouro, tilintante de luzes... E então, que eles ainda lha poluíssem –
que lha pisassem, ah, que lha pisassem!...
Hoje porém,
vencera. Irrealidade! – tinha o que sonhara! Tinha uma doce companheira a cujos
braços débeis se podia confiar silencioso e que, em silêncio, adivinhava os
segredos da sua alma – as pequeninas coisas veladas que se não sabem dizer, – enfim:
alguém que lhe sentia toda a alma como se sente uma obra genial.
Pela
primeira vez não estava só. Com efeito, como nunca existira em relação a ninguém,
andara sempre só – mesmo na companhia dos seus camaradas se sentira sempre um
ausente. Apenas vivera um pouco mais acompanhado, no estrangeiro, em grandes períodos
de isolamento, devido à concentração do seu espírito, tanto mais intensa quanto
menos o atingia a vida diária, e que por isso o lembrava melhor a si próprio, o
fazia viver um pouco mais dentro de si. Hoje, como existia em relação a outra
alma, como achara a sua alma perfeita, vivia enfim realmente acompanhado.
Muita vez
o artista pressentira que lhe faltava qualquer coisa que os outros possuíam.
Ignorava o quê. Entanto, fosse o que fosse, tinha a certeza que se resumiria
num ponto de referência. Pois bem: hoje preenchera esse vácuo. Eis tudo.
E mesmo,
em verdade, só agora é que se conhecia – por haver alguém que o conhecia.
Triunfara. Deixara de ser um isolado – mas realmente; não como os outros,
hipocritamente.
Nessa
atmosfera cariciosa e tépida o seu corpo destrinçara-se – porque era assim: ele
tivera sempre a sensação de que o seu corpo andava enastrado, contorcido,
embaralhado.
Se se
divagava, logo via, numa ascensão, como se lhe substituíra o cenário d’alma.
Amanhecera dentro de si numa antemanhã gloriosa. Todas as nuvens se haviam
desacastelado, deixando o sol raiar sobre o ouro. Um montão de coisas cinzentas
se desmoronara em ruínas de azul. As sarapilheiras tinham voado, descobrindo
móveis de marfim e prata...
Depois, ele
percorria-se hoje em largas avenidas, enquanto que, outrora, dentro de si
apenas tropeçava por becos e saguões.
Também
lhe não vinham já desejos de se entender no chão, ao comprido, nas ruas das
grandes capitais, como dantes – talvez por ser essa a posição dos mortos sob a
terra.
A sua
alma que fora sempre um canal estreito, viscoso e mefítico – ou, quando muito,
um pântano aluarado – era hoje uma torre branca erguida a meio do mar.
A sua
vida enfim, lançara amarras – fundeara numa baía de festa, cheia de sol,
embandeirada, ruidosa, imensa, ondeante de mastros e velas.
Tudo era
horizonte em seu futuro.
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A “vila”
que os noivos tinham vindo habitar, engrinaldava bem uma felicidade milagrosa
como aquela. Assemelhava-se a um desses sensatos “cottages” ingleses e, por
fora, revestia-a um manto de glicínias. Um jardim afetuoso, muito verde, todo
relvado e aromático, cingia-a num círculo de frescura e saúde. Em volta, um
grande isolamento. Apenas, a uma centena de metros, fronteiramente quase, uma
outra “vila” habitada por um poeta doido e o seu enfermeiro. Um jardineiro e
uma criada velha serviam os dois noivos.
Entanto,
a capital adivinhava-se ao longe num tumultuar de luzes, pressentida num vago
eco a movimento e a civilização que melhor vinha frisar ainda a tranquilidade e
o isolamento da moradia encantada.
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Sim, sim!
– tivera um termo a sua vida. Pois toda existência futura ele a percorria do presente
em bonança: aromas novos, novos sons, outras cores, no mesmo fundo eterno a
ouro e a azul. Sem mais estrebuchar, ir-se-iam criando as suas obras,
lisamente, em paz, só em febre ideal, – e nunca lhe faltaria um ombro dócil
para recostar a sua fronte sagrada.
Estava
prestes agora a fulgir o último triunfo – a comunhão inteira daquelas duas
almas. E era tão grande a felicidade do artista, tão sonhada que lhe vinha até
um desejo singular de morrer com a companheira das rosas. Mas esse desejo logo
se dispersava, claramente, numa ânsia de vida, num júbilo de mãos frias que lhe
enastravam os dedos.
Entanto,
com as ideias de morte também uma dúvida – longínqua dúvida – o assaltara:
Poder-se-iam,
em verdade, abater todas as barreiras entre duas almas?...
Ia sabê-lo
essa noite. Sim, essa noite – estava certo – havia de atingir o além da sua
felicidade: a tênue rede de ouro que, embora translucidamente, ainda separava
as duas almas, voaria enfim dispersa.
Por isso
era a sua glória ilimitada quando, ao recolher, subindo para o seu quarto,
entrelaçara o corpo agreste da amante aureoral e a mordera na boca, confundido
com ela na mesma sombra...
A loucura
do poeta que vivia próximo, era a loucura tranquila e etérea dum náufrago do
irreal. Assim os seus amigos, compadecidamente, lhe tinham evitado o manicômio,
isolando-o naquela vivenda carinhosa e aprazível.
Entanto,
essa noite passou-a ele muito agitado. Numa grande vibração, só queria vir à varanda
do seu quarto – e debruçava-se olhando o espaço.
Seriam
umas três horas, erguera-se mesmo do leito e de novo correra à varanda. De súbito
– segundo o enfermeiro devia contar no outro dia – esgasearam-se-lhe os olhos,
todo o seu corpo oscilara e, apontando na “vila” fronteira a janela do quarto
dos noivos, tinha soltado um grito estridente. Depois, num delírio, contara que
vira sair por essa janela uma chama, uma grande e estranha chama, ou antes: uma
forma luminosa que galgara o parapeito e que, num espasmo arqueado, numa ondulação
difusa, ascendera, voara perdida...
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Na manhã
seguinte, como fossem onze horas e os patrões não dessem sinal de si – eles,
tão matinais – a velha criada decidiu ir acordá-los. Bateu à porta, chamou-os,
gritou... Não obtendo resposta, dispôs-se a entrar. Mas, coisa bizarra, a porta
estava fechada por dentro, quando, habitualmente, eles a deixavam entreaberta
para o ar circular. Então, num pavor, correu a dizer o caso estranho ao jardineiro
que, por seu turno, subiu ao quarto dos noivos. Chamou. Como ninguém lhe
respondesse deliberou por último forçar a porta, cuja chave tinha ficado no
trinco, do lado interior...
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No grande
leito, serenamente, dormiam os amorosos. Apenas os seus corpos estavam rígidos
e frios. Mas nem um sinal de violência, uma beliscadura.
Pelo
quarto, nenhum vestígio de luta. Tudo no seu lugar. As joias sobre o toilette. Nem uma arma. Nem mesmo um
frasco que pudesse ter contido um líquido venenoso. Coisa alguma, enfim, coisa
alguma. Nem um rastro, uma pegada. A porta ficara fechada por dentro. A janela,
entreaberta. Mas a janela rasgava-se à altura dum segundo andar. Fora impossível
encostar-se-lhe uma escada sem deixar vestígios, sem amachucar as glicínias.
E em todo
o decorrer das diligências policiais, apenas se averiguou que o poeta doido
tinha passado essa noite numa agitação desabitual e que afirmara ter visto pela
madrugada, galgar a janela do quarto dos mortos uma chama, uma grande e
estranha chama, ou antes uma forma luminosa que, num espasmo arqueado, numa
ondulação difusa, ascendera, voara perdida...
Triunfo?
Quebranto?
– Mistério,
perturbador mistério...
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