Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era magra, pequena, escura.
Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu destruidor, sem
pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte da folha que o
vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse
perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das noites sem estrelas
o negrume cada vez mais denso.
Era louca, porque só tinha uma
ideia, e a criatura humana pode não ter ideias, mas não pode ter uma só. A sua
era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um filho e o
procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz para
chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: "Luciano! Meu filho!..." E
escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos
terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a
sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto
indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o xale que
lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal,
aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais radioso
meio-dia.
Gente compassiva, donas de
casa a quem se apertava o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu reclamo
desolador, quiseram retê-la, dar-lhe amparo e agasalho: "Aonde vai, Sinhá
Maria? Fique com a gente, mulher! Por estes sóis que matam, assim ao desabrigo
do tempo, o que faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá então..."
Mas a louca se escusava resolutamente: "Não tenho tempo, minha senhora.
Vou ao encontro do meu Luciano, que me disse que havia de voltar. Como não
tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá ele passar enquanto aqui
estou..." E se precipitava para fora exalando o seu grito: "Luciano!
Meu filho Luciano!..."
E Maria sem Tempo não era uma
lição, nem um castigo, nem um exemplo. Se alguma coisa ela provava, era que há
sofrimentos que nada provam e que nada justifica, que são, pela razão obscura
daquilo que tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, porque não
exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigoroso era-lhe como um senhor
cruel, que a pobre escrava não entendia e sob cujos golpes se encolhia apenas.
Vivera para ser mãe: sofria disso, como disso outras jubilam.
Quem a encontrava pelos
desertos, longe de todo o amparo, às horas tristes do dia, pensava logo com
piedade na solidão da sua alma. Mas se iam falar-lhe, ela se não mostrava
agradecida à sociedade que lhe queriam dar: recaía logo no seu silêncio
absorto, tão ocupado pelo seu sentimento.
O meu Luciano! dizer estas
palavras era para ela o mesmo que sentir-se viva. Dizia-as alto, gritando,
clamando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com o seu alarido de
araponga louca; dizia-as baixinho, suspirando, fundindo o coração num
ajoelhamento de prece, na prostração suprema do supremo amor. E às vezes,
caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sacudidos pelo vento do
largo, vacilando sobre a areia branca e infirme que entontece, ela cantava ao
mar em fúria a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim.
Eles eram dois humildes e
mansos e os soberbos e violentos lá de longe fizeram uma guerra para mal deles,
uma guerra de tantos anos durando já que os cabelos da mulata tiveram tempo de
embranquecer. E o seu Luciano sempre por lá, longe da sua velha, que só tinha a
ele no mundo, e que não pudera opor-se a que partisse, porque com o poder de
homens, que o vieram buscar naquela noite, tinha-se juntado todo o poder
celeste, estrondando numa trovoada de arrasar o mundo. Quando chegaram os
homens malditos, ela estava com o filho rezando o Magníficat, à claridade da vela benta em frente ao registro da
advogada contra o raio. A voz dele tinha uma toada grave e cheia de fervor, que
lhe quebrava a ela a friúra do medo no coração. Ai! não era dos raios e
coriscos do céu que a pobre mulata devia recear! Num silêncio entre dois
refegões de vento, bateram de repente à porta. Luciano foi abrir e logo um
homem entrando, antes de dizer uma palavra, lhe foi deitando a mão. O rapaz deu
um pulo, esquivando-se, mas o outro gritou e a casa se encheu de gente armada,
soldados, que subjugaram o seu filho e o amarraram. Ela conhecia um dos homens,
o que tinha entrado primeiro: de joelhos, como tinha ficado diante da santa,
arrastou-se aos pés dele. "Seu Capitão, não me tire o meu filho, que não
cometeu crime. Tenha piedade de uma pobre mãe..." O Capitão, meio
embaraçado, sem convicção, resmungou umas frases, falou em defesa da pátria, em
honra nacional ofendida, dever de todo brasileiro e não sei que mais. Mas a
mulher não lhe deu ouvidos; viu que lhe tiravam o filho para a matança nos
campos do Sul e desatinou de todo, a pedir, a suplicar, de rastos pelo chão,
beijando os pés e abraçando pelos joelhos os seus carrascos, sem poder mais
chegar ao filho das suas entranhas. O Capitão começou a se incomodar com a cena
e deu ordem de partir, apesar da tempestade no seu auge. Então Maria se
endireitou, arquejante sobre os joelhos, e viu, enquadrado pela porta aberta
sobre a noite negra cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz, que, sem chapéu,
de roupas rotas mostrando o peito nu, levantava para ela as mãos algemadas, num
gesto de adeus, e lhe dizia com voz trêmula e sentida: "Não se desconsole,
Mãe, que ainda hei de voltar..." Nesse instante um fuzil cegou-a e o
estampido imediato de um trovão derrubou-a por terra. Quando tornou a si estava
sozinha no meio da noite escura. Parece que esta lhe entrou deveras pela mente,
e lhe apagou as últimas claridades que lá luziam. Ela se desinteressou de tudo
o que ocupa as vidas mais humildes, desprendeu-se por uma inatenção absoluta
dos fatos que podem servir de marca aos dias, perdeu a noção do tempo, perdeu
as suas afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu único sentimento
transformado em culto, endoideceu.
Como sempre fora uma pobre
inteligência, a sua loucura não se caracterizou senão por uma teimosia
especial, passiva, mas inflexível, uma recusa absoluta a ceder aos argumentos
dos que queriam convencê-la de que o filho não andava por aquelas bandas e que
não era gritando pelos caminhos que ela havia de o recuperar. Ele lhe dissera
que havia de voltar... Essa promessa lhe não deixava lugar no espírito nem para
a ideia da morte. Quando lhe disseram que Luciano morrera num combate, que um
voluntário, que voltava ferido, o tinha visto cair ao seu lado no campo e ao
seu lado morrer no hospital de sangue, ela sacudiu a cabeça, incrédula. A força
da ideia fixa venceu-lhe a timidez natural e lhe tirou todos os escrúpulos e
receios que a pudessem deter no cumprimento do seu fadário. Na abstração
poética é assim um caráter heroico.
Os sinais físicos de loucura
estavam nos seus olhos perdidos como os de um cão de caça, desatentos ou muito
atentos, mas sem simpatia, e nos cabelos hirtos, eriçados, como num perene
arrepio de pavor. O resto, mãos e pés de nômade selvagem, miséria profunda do
corpo desprezado, fizera-o o ascetismo inconsciente da sua existência errante.
A voz cantante, plangente antes, arrastava-se apoiando demais em certas
sílabas, como quem chama. E falando baixo tinha umas inflexões escuras, vindas
mais de dentro, o tom reflexivo de quem pensa em voz alta.
Sonhava muito, quando dormia,
e prolongava o seu sonho, sempre o mesmo, pela vigília. Era com o dia da volta
dele que sonhava, com a hora em que, avistando-o, lhe dissesse: "Bendito
seja Deus, meu filho, que te torno a ver!" Ele abaixaria os olhos diante
do seu olhar carinhoso, com os seus modos tão bonitos de bom filho e depois lhe
contaria o que tinha visto pelas terras longes, a história da sua ausência, as
grandezas do mundo, as lindezas das outras gentes, tudo o que ela nem podia
imaginar que fosse, tudo evocaria o som da sua voz, cuja lembrança bastava para
lhe encher a ela os olhos de lágrimas. E voltariam a levantar a casa arruinada,
o ninho velho donde a má sorte os enxotara, a refazer a vida antiga, humilde e
pobre, que ela não trocaria pela de uma rainha, com Luciano...
Sonhava, e procurava o seu
sonho, correndo as estradas. Mas não se afastava dos sítios familiares, algumas
léguas de circuito, três municípios, a pátria. Mais longe já parece que a
língua mudava ou pelo menos mudavam os costumes. Eram mais duros para a pobre
mãe, como se ela pudesse fazer mal, ou não entendiam-na e desconfiavam. Um dia
chegou ao pé de uma cidade muito bonita: as casas tinham vidros que faiscavam
ao sol; nas ruas passava muita gente, toda calçada de botinas, os homens de
gravata ao pescoço, as mulheres de chapéus com flores, todos muito soberbos;
carros e cavaleiros passavam a toda a pressa, fazendo muito barulho nas pedras
da calçada. Apareceram uns soldados e a pobre Maria fugiu espavorida. Era ali
sem dúvida que moravam os que lhe tinham arrancado o seu Luciano. Disseram-lhe
mais tarde que ela quase tinha estado na Praia Grande, que era para onde iam os
designados para o recrutamento militar, mas que não era ali que eles
batalhavam.
O invencível terror do
desconhecido a impediu de ir procurar o filho aos campos do Sul. O Sul sabia
ela onde era. De lá vinham as piores borrascas. E os tiros de canhão, que
diziam de gala na cidade, para ela eram batalhas mais perto, a guerra que se
aproximava. Se com a guerra lhe aparecesse um dia de repente Luciano! Quando o
ar estava pesado, o tempo de oração, ela escutava estremecendo o troar surdo dos
canhões que salvavam no Rio, avaliando a aproximação da guerra pela sonoridade
mais clara dos tiros, que lufadas de aragem quente e a banzeira traziam.
Um dia de verão, depois do
meio-dia, ela vinha subindo da restinga do mar para a terra firme. Não passava
ninguém pelas estradas. O sol de fogo retorcia a folha das árvores e fazia
ferver o miolo da doida vagabunda. No grande silêncio da calma acabrunhante só
se ouvia o zumbido do enxame de mutucas importunas, que acompanham a gente
pelos caminhos à beira dos charcos, e o canto de galos longe. O chão escaldava;
a doida movia rápida os magros pés descalços e caminhava de braços levantados,
sustentando o xale acima da cabeça. Mas de instante a instante parava, com um
gesto de impaciência, e se abaixava para atirar uma pedrada ou um punhado de
areia aos camaleões cinzentos, que vinham pôr-se à beira do caminho, debaixo
dos gravatás de folhas de serra e flor vermelha, e lhe faziam sinaizinhos
brejeiros com a cabeça, quando ela passava. Sobre a ponte do Paracatu parou
para ver uma cobra verde, que se lavava no magro fio d’água que ainda corria.
Depois entrou na sombra do caminho estreito, com árvores dos dois lados, um
desfiladeiro entre a lagoa e a barranca de um morro a pique, e se deteve a
colher os cachinhos de jatitás verdes para refrescar a boca sequiosa. Passou um
cavaleiro pela estrada e no ouvido ficou-lhe a cadência do meio galope,
acompanhamento da toada favorita de Luciano, quando falquejava no mato:
Os olhos de Joanita
São pretos como carvão...
São pretos como carvão...
Fora ela que lha ensinara, em
pequenino. Vinha de tão longe a cantiga do Mineiro da serra! Vinha de antes das
tristezas dela... Cerrou-se-lhe a garganta e retomou a estrada.
Já ia pondo a mão à cancela do
campo do capitão Rosa, quando um tiro de canhão atroou os ares; depois outro e
outro e em seguida um estrondo prolongado, como o de uma casa desabando.
Maria sem Tempo pensou na
guerra. Chegara enfim! A artilharia destruía as grossas muralhas da casa da
fazenda. Só lhe admirava aquele silêncio depois da catástrofe. Deu a volta para
ir espreitar pela outra cancela, e não entendeu mais nada, quando viu a casa em
pé, o gado no campo e na lombada do morro do Cantagalo e o eito de escravos no
trabalho, manejado as enxadas, em que o sol faiscava. Ali estava tudo em paz;
no céu nem uma nuvem quebrava a dureza do azul implacável: donde vinha então
aquele troar de canhões?
A doida aproximou-se da
fazenda, mas saíram-lhe cães bravos ao encontro e ela regressou do meio da
ladeira. Deu então volta ao morro pelo lado do brejo, para entrar pelo engenho.
Mas ao passar pelo campinho de dentro, onde se soltavam os animais de sela e as
lavadeiras estendiam a roupa a corar, pareceu-lhe que ouvia deveras a cantiga
do Mineiro da serra, a cantiga da saudade, que lhe entrava pelos ouvidos, em
vez de ressoar-lhe apenas da memória esvaída. Transpôs a cerca de bambus em
moitas sussurrantes e encontrou um cavouqueiro, dos que ali andavam a
arrebentar pedra para construção, que descia da pedreira e vinha jantar. Maria
perguntou-lhe ansiosamente: "O meu filho? é o meu Luciano quem está
cantando?" O homem respondeu: "É o Luciano, sim; mas não vá para lá
agora, que ele vai pegar fogo à mina." A doida não lhe deu mais atenção e
embarafustou pelos cafezais acima. Chegando à entrada da pedreira, viu um rapaz
meio pendurado de uma corda de nós, que acabava de arranjar os estopins e punha
fogo à mina. Ela gritou: "Meu filho? És tu, meu Luciano?" O Chico
Macaé, que já ia marinhando pela corda acima, voltou-se espavorido: "Meu
Deus! que faz aí, Sinhá Maria? Fuja, que aí vai pedra! Corra, suma-se depressa,
mulher!" E como ela estacasse atônita, ele lançou mão de uma pedra para
afugefentá-la. A mãe louca viu o gesto e, pondo as mãos na cabeça, despenhou-se
pelo cafezal da grota. Alguns segundos mais e a mina rebentava e Maria sentia
cair-lhe em torno uma chuva de pedras miúdas, enquanto ao longo da pedreira as
grandes lascas desabavam fragorosamente.
Maria sem Tempo caiu extenuada
sob uma grande mangueira no meio do campo. Na perturbação da emoção profunda
todas as ideias se lhe confundiram e o desvario completo entrou-lhe na mente.
Era aquilo a guerra e era o
seu filho que a fazia contra ela. O homem dissera que era ele e a cantiga a não
enganara. Para se encontrarem daquele modo vivera ela tão longos anos, penando
pelos caminhos! À ideia de que pudera ter morrido aos golpes do filho
estremecido, um calafrio sacudiu-a toda convulsivamente e por fim as pernas se
lhe inteiriçaram. Depois, a necessidade de abandonar toda a esperança
quebrou-lhe as derradeiras forças. Uma toalha de gelo espremeu-lhe o coração
num grito de agonia infinita e Maria sem Tempo morreu.
Algumas horas depois
formava-se uma trovoada e um raio caía sobre a árvore que abrigava o cadáver. A
tempestade passou e os escravos que, voltando da roça, foram ver o tronco
lascado descobriram a morta. Os respingos da chuva lhe tinham coberto o rosto
de terra e os olhos esgazeados já pareciam olhar do fundo da sepultura. Um dos
escravos se abaixou para lhos fechar, dizendo: "Coitada de Sinhá Maria! Vá
que ela agora descanse de procurar o filho!..." E outro, velho, resmungou,
sem saber que tão bem dizia: "Esta morreu de ser mãe..."
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