Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Entre as sábias máximas dos
etruscos, esses criadores da riqueza do campo latino, máximas que Plínio, mui
judiciosamente, aplicou “orácula”, uma das mais concisas devia ser escrita em
taboas que fossem levantadas em altos postes, fincados nas encruzilhadas, nos
férteis outeiros, entre as plantações, impondo-se como preceito a todos os agricultores
que, de passagem, de manhã, em rumo aos talhões e, à tarde, recolhendo à casa,
vissem e meditassem as suas singelas palavras: "Mau é o lavrador que
compra aquilo que a terra lhe pode dar".
Esses povos de tanta
rusticidade, quase bárbaros, dedicando-se exclusivamente à terra com um amor
avaro, vendo num torrão uma riqueza, numa semente de trigo ou de linho ou pão
ou o fio, considerando o alqueive como a melhor fortuna, esposando a leira pela
qual viviam sacrificando aos deuses para que lhes não faltassem com a água fecunda
nem lhes demorassem nos canteiros as geadas esterilizadoras, gozando
deliciosamente o suave aroma dos fenos cortados, alegrando-se com o lourejar da
seara, ondulante, extasiando-se com o fresco cantar das regas, ao mugir
melancólico dos gados, ao zumbir dos enxames, tinham noções exatas da
verdadeira economia e da ciência fácil e tão pouco praticada do bem viver.
"Mau é o lavrador que compra aquilo que a terra lhe pode dar".
Assim tiravam eles da terra o
barro e as ripas com que edificavam a casa e modelavam o forno, a lenha que queimavam,
o trigo que amassavam e coziam, o linho que as mulheres fiavam e com que teciam
os vestidos e a lençaria doméstica, a fruta, o azeite e o vinho.
Nos pastos engordavam o
armentio que lhes fornecia os bois robustos que, ao doce cerrar da tarde,
lentamente, pelos caminhos cheirosos, levavam o pesado carro das colheitas, a
vaca de ubres pejados, a rês para o corte e a ovelha que se despia da lã para
vesti-los.
A água era bebedouro no
remanso e, correndo, escoava na azenha de onde saía repartindo-se em acéquias
que iam abeberar as raízes; e, isolados nos seus casais, tinham os lavradores
todo o necessário para a vida e das sobras abundantes faziam comércio
levando-as às feiras periódicas.
A terra não se recusa a criar
a semente qualquer que ela seja: prometa árvore frondosa ou seja o simples gérmen
de um arbusto; o seu seio acolhedor é uma grande maternidade — ali acham abrigo
favorável todas as plantas: a seiva que alimenta o jequitibá não deixa inanida
a relva, circula de uma a outra distribuindo-se equitativamente.
Uma das causas da decadência
do nosso lavrador é a mania rotineira da monocultura. A propósito dessa contumácia
intransigente já houve quem declarasse que a nossa desgraça era o café. Toda a
confiança do lavrador funda-se nessa cultura: o café é o senhor absoluto da terra,
só ele tem o direito de vida, só as suas flores trescalam, só a sua folhagem,
que já cingiu a coroa, é bela — por ele veio o negro da África, por ele veio o colono
da Europa.
As máquinas, que se instalam
nas fazendas, são para beneficiar o café; os ladrilhos que entram vão dilatar
os terreiros; o adubo que se caldeia vai para o cafezal; o melhor gado trabalha
nos eitos; a gente mais robusta é para lá destacada. Ali fuzilam as melhores
enxadas, a melhor água corre para os tanques de lavagem e, como para que lhe
não saia das vistas o precioso grão, o fazendeiro aconchega ao domicílio a casa
das máquinas e as tulhas, para que sempre ouça o frêmito das Lidgerwood, para
que sempre veja o enxame de cascas voando dos ventiladores, para que sempre
tenha, a acariciar-lhe o olfato, o cheiro acro das sementes novas.
Se há moinho para triturar o
milho é um pobre casebre esquecido num fundo de grota; se há paiol é uma minaria
— só o café tem agasalho digno em taboas lisas, sob telhados, entre muros
fortes. Se alguém, mostrando uma faixa de terra, lembra ao lavrador a vantagem
de uma plantação de cereais ou de cana ou indica uma baixada úmida como
excelente vargedo para um arrozal, ele sorri superiormente declarando: “Não
vale a pena, isso é quitanda. O café dá para tudo”. O resultado é que não há
residência mais desprovida que a do fazendeiro — ele compra os cereais para a
despensa, a carne, o toucinho, o fubá, o milho e a forragem para os animais.
Entretanto no quintalejo do
colono europeu viceja a horta sempre fresca de rega, o milho apendoa-se,
enfeixam-se touceiras de cana, sobem verdes latadas de vinha e de gordas
abóboras, verdeja em estendal a rama da batata, o feijoal enfestoa
espiraladamente as hastes dos milhos e ainda no chiqueiro grunhe o cevado,
coincham os bacorinhos, a cabra lá está de peitos rijos, ruminando; na casa,
pendente das cordas, defumando-se, os salpicões, o chouriço, o lardo e a um
canto, em largas vasilhas, a carne em salga.
A previdência do campônio
europeu, que vem da miséria, tão bem descrita por Michelet, tendo de realizar
prodígios de trabalho para fecundar vageiros e sáfaros terrenos eriçados de
pedregulho, colhendo uns galões de vinho, que não bebe, umas medidas de trigo,
que não come, umas estrigas de Unho, que não veste, porque tudo é para o
mercado ficando-lhe apenas a broa e o cânhamo de que se nutre e com que se
cobre, sempre a pensar nos invernos, guardando avaramente todo o ramalho que encontra,
aproveitando todas as migalhas, deve ser um exemplo para o lavrador brasileiro.
Posto que, com a fertilidade
da terra e a amenidade do clima, o colono vá, aos poucos, relaxando ainda assim
com a ideia fixa de tornar à pátria levando o necessário para viver
regaladamente no seu campo natal, trabalha e acumula, passando sobriamente
porque, pelo hábito e ainda pela ambição, o melhor da colheita e da criação
desce ao mercado mais próximo, quando não é vendido ao próprio fazendeiro.
E o preço do café mantém-se
miserável, mal dá para o custeio da fazenda, e o plantador, sem recursos num
mar de abundância, com os terreiros cobertos, as tulhas atestadas e ainda os
galhos vergados de fruto, sai a procurar capitães para acudir às necessidades
da lavoura: ao salário do colono, à provisão da despensa e, como sempre viveu
em fortuna, sem preocupação de miséria, não se retrai — mantém, como dantes, a
mesa farta, os quartos de hóspedes preparados, veste a família com esplendor,
confiado na alta do precioso produto, certo de que, com um simples movimento na
praça, resgatará o seu compromisso hipotecário, saldará os seus débitos
particulares, ficando lhe ainda capital bastante para abastecer a casa e
beneficiar a terra no ano próximo de compensadora carga, lindamente anunciada
pela fluorescência.
Infelizmente, porém, a sua
ilusão desfaz-se e os dias correm. Vai-se-lhe a última nota e só, diante do cofre
aberto e vazio, o grande senhor rural compreende a sua miséria e, com as folhas
que arranca ao bloco do anuário, vão-se-lhe as esperanças.
E que sucede? O colono,
submisso e risonho enquanto recebe regularmente a feria, torna-se altivo e
hostil à falta de um pagamento. O fazendeiro, sitiado pelos seus próprios
homens, vendo aproximar-se o dia do vencimento da letra fatal, esmorece. O café
baixa a mais e mais, as notícias do comissário são desesperadoras — que fazer?
Lá fora, na colônia, o
administrador procura, debalde, convencer os trabalhadores a voltarem ao
serviço — negam-se, exigem o pagamento imediato, ameaçam com o cônsul, com o
ministro, alguns até no rei falam e logo, ingratamente, rompem referências despeitadas
à miséria da terra, à inclemência do sol, à aspereza dos outeiros; lamentam as
fadigas, as privações; referem-se a moléstias imaginárias, arrependidos de haver
deixado a pátria, linda e rica, com as suas vinhas e os seus trigais cor de
ouro. E o fazendeiro, emparedado, sem esperança de salvação, vê, com terror,
chegar a data tremenda.
Lá fora o cafezal murmulha com
o vento, jorram as águas soltas pelos canais, o gado muge disperso e na casa, a
portas fechadas, a família reunida despede-se, chorando, daquelas veneradas
paredes que foram levantadas pelos avós, daquelas terras amadas, para recomeçar
a vida, onde? no desconhecido, aventurosamente, miseravelmente e com o humilde vexame
dos decaídos.
Os otimistas dirão que exagero
e eu respondo-lhes que traio a verdade para não a mostrar tão desoladora como
se me apresentam; sou, porém, do número dos desesperados, dos que veem perdido
o campo, dos que não confiam na terra, não! Ha. um mal que tende a desaparecer,
porque vai sendo substituído por um bem — o mal é o lavrador por herança, o que
entrou na vida pela porta dourada, o que não conheceu o trabalho e foi sempre
um mimoso da Sorte; o que achou a árvore carregada, tendo apenas o trabalho de
estender a mão e colher.
Criado na abastança, entre negros
humildes, vendo-se obedecido em todos os caprichos, senhor de homens, teve uma
grande e espantada surpresa, só comparável à que teria um pastor que visse, de repente,
tresmalhar todo o seu rebanho, quando, a 13 de maio, os negros, deixando os
ferros, saíram para a estrada livre, ansiosos de liberdade.
Sem expediente, só, diante do
vasto domínio, como em ermo mal-assombrado, o fazendeiro julgou-se perdido.
Ouvindo, porém, falar em colonos, tratou de adquiri-los. Despachou emissários
para contratá-los por qualquer preço, contanto que não se perdesse a colheita nem
o mato subisse sufocando a lavoura. E os colonos chegaram, a fazenda perdeu a
sua antiga feição feudal — o sistema modificou-se radicalmente, passando o
senhor a patrão: o ato humilhante da compra foi substituído pelo compromisso
recíproco do contrato.
Esse foi o primeiro golpe no
fazendeiro antigo ou, dizendo melhor — foi a morte do valho regime de trabalho.
O pagamento das primeiras férias foi feito com mal contida indignação. Aqueles
que acudiam à chamada com as suas cadernetas eram como ladrões que assaltavam.
Essa mesma revolta cessou e o fazendeiro julgou-se, de novo, feliz quando viu
chegar o primeiro carro da safra a transbordar pelos caminhos o café em bagas
purpurinas.
A terra, essa continuava
submissa e fecunda, bela e fiel escrava! e, confiado nela, o fazendeiro, à primeira
dificuldade, sem energia para vencê-la, sem ânimo para afrontá-la e não podendo
privar-se dos gozos habituais — o seu descanso, a mesa lauta, o seu verão nas
praias, o sem inverno na cidade, faustosamente instalado, confiando a fazenda
ao administrador, recorria ao empréstimo, prendia-se à hipoteca e, dessa hora
em diante, enlaçado pelo constritor, lá foi indo para a miséria, aos arrancos,
torturado, ansiado, até a hora dolorosa do abandono da casa.
Para salvar a lavoura aí está
o fazendeiro novo, tipo perfeito do homem de ação, inteligente e enérgico,
empreendedor e ativo. Desse não fica na varanda molemente estendido no pliant ou na rede, ouvindo o cantarolar
guaiado das lavadeiras riacho e o zumbir monótono das abelhas errantes. Cedo
está de pé, pronto para sair, a cavalo ou de trole, e lá vai, ao ar fino da
manhã, rompendo as névoas que se desenrolam, fiscalizar o trabalho. Caminha
pelos torrões que o arado levanta ou pela terra fofa que espera a sementeira,
olha, examina, indaga. Entra no cafezal, dirige a carpa ou anima a colheita,
lança uma vista de olhos ao gado no pasto, sobe ao moinho e, sem maior atenção
à poeirada loura que se desprende da mó, toma o fubá entre os dedos,
experimenta-o. Corrige uma falta, ativa um serviço, atende a uma reclamação,
despacha um próprio e ei-lo na casa das máquinas atento à pesagem, depois nas
tulhas e já o veem a correr à estrebaria examinando as baias para que não falte
a ração aos animais e para junto ao chiqueiro, chega ao paiol, percorre a
abegoaria, vendo como interessado, não confiando no administrador, que é apenas
um intermediário entre ele e os colonos.
Se, pelo céu, se vão arrumando
nuvens de chuva e há café nos terreiros, ele é o primeiro a lançar mão do rodo
dando o exemplo para que se ajunte e recolha e, à noite, na sala vasta,
enquanto a esposa acalenta o pimpolho, debruçado sobre um livro, cercado de
jornais e revistas, lê, anota observações sobre a terra, respigando o que lhe
convém, aqui, ali: uma máquina útil, uma sementeira rica, um novo adubo, certo
processo de enxertia e, ao primeiro bocejo, levanta-se, abre uma janela,
respira largamente o ar puro da noite, sentindo em torno a terra viva e forte,
tratada carinhosamente como animal de raça, fecundando, florindo, frutificando
ao esplêndido luar silencioso.
Dirão sorrindo: “Mas não há
vida mais material, Deus do céu! Não há vida melhor nem há vida mais calma!”
Que falem os errantes, esses
que palmilham, sem destino, as estradas que dantes pisavam como senhores e que
agora vão trilhando como banidos. Essa é a vida feliz do lavrador inteligente
para o qual a crise é apenas um acidente e não um descalabro.
Saiba o lavrador aproveitar a
terra e o elemento novo que a fecunda e a lavoura, no Brasil, será, em pouco,
urna das mais prosperas e compensadoras do mundo. Para isso, porém, é
necessário que não fique simplesmente nessa ilusão do café, porque a agricultura
não se limita nem se pôde limitar a uma produção única. O país do vinho é o
país do azeite, é o país do pão, é o país do linho e é o país da fruta. Da
nossa agricultura pode, e com razão, dizer-se que dá apenas para encher uma
xícara porque, em verdade, toda ela se reduz ao café, ao sul, e ao açúcar, ao
norte.
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