Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Lá a
história, patrício, que vai contar? Como a de todos, coisa que vinha de longe,
uma vingança no mais... Meu pai era filho do índio mais cru das costas do
Ibicuí e, como tapejara, no seu tempo, não tinha parceiro, nem aqui, nem em
Cima da Serra.
Muita
gente cruzou com ele estas campanhas, sem nunca perder o tino, quando inda não
se via sombra de pousada por onde hoje em dia se atropela todo esse povaréu.
Foi ele quem levou à Laguna os Farroupilhas; mas não fez querência, que, dali
pra diante, era homem de a pé. Ao demais, o tal Garibaldi principiou a paletear
a indiada, e muito gaúcho mesquinhou daquele capincho metido a duro e toda
partista. Depois, quem sabe se o pobre não andava com o pensamento na china e
nos filhos, nós dois, eu e o Adão, já cresçudos! Que isso de bater mundo é bom
pra quem nasceu; mas tudo cansa e dias hai em que um se alembra mesmo do seu
ranchito nos pagos! A coisa foi que o índio se boleou serra abaixo, sem avisar
ninguém...
Fez a sua
desgracia, le digo, que, na viagem, topou um piquete camelo e teve que vaquear
essa gente, senão lo matavam. Era gauchada recém-bandeada pra os legais, e,
desde entonces, foi o meu pai que les amadrinhou as cruzadas, quase sempre na
calada das noites. Se era cotuba no rumo, homem ladino! Eu, não é por ser
filho, mas, onde ele passava (pergunta aos antigos!) nem os quero-queros
cantavam! Ora, os Farrapos souberam e, como andavam sem galho de pau, juraram
no mais tirar vingança. Diziam que fora traição... Qual! Aquilo era um ofício,
se importa lá o vaqueano com o resto! Mas, o que é, é que estavam galguinchos
pra pegar um inimigo e tanto gatearam o índio, coitado! que ele, um dia, caiu na
volteada. Não chegou pra todos e, ao despois, largaram os pedaços no campo, de
isca à cachorrada chimarrona, que era mato... Bicharia baguala! Tinham faro de
légua e, achando carniça, não deixavam nada pra os corvos. Mas, aqui está o que
le quero provar, moço, e a’ora fixe como vim dar com os costados nesta urupuca.
Meu avô,
bugre linguará, morreu de velho, com os colmilhos gastos e os olhos que nem
retovo de bolas. Ele andou com os pampas, ’teve com os frailes nas Missões, e
sabia mais coisas que muito doutor. Queria que visse o ervaçal seco que juntava
no rancho: era pra um tudo e inté o bicharedo curava. Cobra chegava andar atrás
dele, que era barbaridade; não se arreceava de almas e todos assuntavam ser
feiticeiro. Uta índio! De noite, parecia um tigre bombeando; lagarteava o dia
inteiro, pitando, quieto, no sol; quando não bebia cana, bebia mate; mascava,
mascava, e no churrasco, nem se falar! Ao demais, probezito, só as garras de
montaria e um couro pra dormir e o chiripá e o poncho; mas guardava uma adaga
que era como um tesouro...
Arma
linda! Relampeava de alto a baixo e tinha no cabo de prata floreado uma figura
de mulher nua, com uma serpente enrolada desde as cadeiras inté a tábua do
pescoço, lá nela. E não era dor o que a maldita sentia: parecia no mais uma
china se derretendo com o dianho... Isto na frente, que, do outro lado, era um
animal esquisito, como inda não vi, meio bode, meio homem, todo ele peludo, de
pata rachada e com dois chifrezinhos de carneiro novo. E a folha, amigo, mudava
de cor, me desdiga, que muito manoteei aquel’ferro! Quando me apertenceu, já
estava fino e dançava na bainha, mas inda mostrava u’a mancha no alto, que
certos dias parava negra e, de outras feitas, cor de sangue ainda vivo.
Pois, o
bugre velho, meu avô, deu ela a meu pai quando deixou de gauderiar e se parou
nos fogões. Não disse nada, nem percisava, que aquela já se sabia donde vinha
vindo... E, a’ora, arrepare no que assucedeu. Meu pai, moço, des’que atravessou
a adaga na cinta, mudou de jeito, deu pra rixento, largou a se traguear, e, de
folgozão que era, andava que nem carancho em tonqueira. Mas a morte, caramba!
lo respeitava! Não havia bala, nem golpe, nem veneno pra ele. Os arroios podiam
estar pelos galhos, que, vestido mesmo, bandeava serenito a correnteza; e,
pousasse no mato, sem fogo, ou estendesse o poncho em meio o campo, dormia no
mais à vontade que nem onça, nem jararaca se achegavam. Inté o raio afrontava,
que uma tarde, já à boca da noite, em viagem, caiu-lhe um quase em riba, lascou
o umbu onde se abrigava, matou o cavalo a meio tiro de laço e ele, nem nada.
Inda, mode o pingo, de estimação, olhou de frente o céu, com uma praga, e
acendeu no mais o pito, sem tremor. No jogo, enquanto ia orelhando a sota, a
faca estava fincada no chão, se era acampamento haragano, ou em cima da carpeta
nas vendas. E os patacões vinham vindo, e as gateadas iam-se amontoando. Cuêpucha,
se não varejasse longe o ganho, se parava um rei de tanta plata! Mas perdia
tudo com as chinas, pelas vendas e em carreiras, pois já se sabia que a arma le
dava liga e era lei de parada não estar com ela que, estando, ganhava na certa.
Ora, uma
noite em que bebeu demais e pegou a dormir numa pulperia, roubaram-le a adaga.
Foi negaça dos maulas e, três dias depois, pondo-se outra vez em marcha, lo
charquearam. E a’ora passe um cigarro e ouça o resto.
Lo
charquearam, amiguito, e eu, que, nesse tempo, já quebrara o chapéu de lado e,
em agachada, era como biguá dentro d’água, pois sempre saía enxuto quando os
mais iam sangrando, jurei que havia de ficar a manos na pendência e me pus a
pastorejar, os malevos, que um dia vem depois do outro e dois dos assassinos
eram conhecidos velhos. Um deles, matreiro de fama, tinha cisma com o índio
mode uma questão de cancha e o outro muito amargo tomara na nossa ramada e
chegaram a dizer... Mas, isso era voz do povo, que minha mãe, e desafio foi
china de condição! A guerra estava no fim, não tardou Porongos, e a farrapada
se viu pelas caronas. Não me condene sem me escuitar: le digo, eu, por mim,
sempre fui contra os galegos; mas, porém, este caso é de sangue, me compreende?
Foi na
Palma, numas carreiras, logo depois de Ponche Verde, que nos pechemos. Lá
andavam os dois acolherados, onde um ia, o outro ia e, por que não sei, mas não
se largavam nem à mão de Deus Padre. Se um falava, o outro coçava as armas; se
um se mexia, o outro também, os dois atavam por um só e, segundo voz do mundo,
na mesma china se rascavam...
E aqui principiou
a maçaroca. A piguancha era linda e valia solita a pena de uma rascada. Mas eu
ali me arraposei e o que mirava era pegar os dois de um em um. Plata, a falar a
verdade, foi coisa que sempre mermou na minha guaiaca: estava limpo; mas, tira
laço, bota laço, como se diz, o pealo foi meu. Ao demais, a chinoca (terneiria
linda!) ficou mesmo pelo beiço e nos arreglemos.
O que eu
quero, disse-le, é que me desarmes um deles. O outro pode atirar-se de faca e
trabuco, tenho medo, e, inda que caiam os dois, les mostrarei! Se te agrada
vires comigo pra o meu rancho, e tenho promessa de capataz, esconde a adaga de
prata que o Felisberto carrega. O Neco, esse que velhaqueie à vontade... Por
Deus! que u’a mulher é pra um homem e tu como que nasceste pra mim...
A
rapargia consentiu, dei-le umas boquinhas (ah! tempo!) e, à meia-noite, atei o
ca’alo na frente e empurrei na porta um manotaço. Um aviso... Inda o bruto não
tinha saltado do catre e já eu penetrava no rancho. Derrubei a relho
aquel’tebas! Quando o companheiro acudiu, já eu fazia relampear a adaga do
bugre, minha herança de fado, que outro bem nunca tive, mas esse me apertencia.
Lascou-me fogo e errou (havia de ser!) e ali mesmo lo acuchilhei, como rês, no
sangradouro... E nem alimpei o ferro: de vereda, fui-me ao primeiro, que se
boqueava no chão, e le taquei um tiro no ouvido, mas bem dentro, bem no
fundo... Não se abichorne, moço, que a vida é assim... Vocemecê queria, ’tá
ouvindo. E dê-me no mais do seu místico, que o meu isqueiro se quebrou e este
pito está manheirando...
Mulher,
sempre tive na ideia, é ente de traça e precatado. A Cármen, sem eu dizer,
tinha adivinhado a vingança e, quando me despachei, já vinha de mala feita. O
meu flete era ca’alo manteúdo e unhemos a todo trapo, eu levianito e mui
concho, que tinha alimpado o meu nome e inda levava de mota, na garupa, aquela
florzita. Quando o dia apontou, já o Taquarembó ficava pra trás, muito longe,
e, atalhando, atalhando, pelas sangas co’o sol, a trote de noite, não tardemo
em chegar à fronteira. Foi entonces que me arrodeei de guascaria alçada e me
parei nuvem. Eh! Mano! gente entonada, a daquelas bandas! Muita tora tiremo e
sempre tocavam buzina bom este gaúcho sem mancha. Castelhanos? Me conheceram...
Mas,
des’que passei na cintura a minha adaga, tinha que ser! Era destino, era
sangue! E olhe que, às vezes, queria mudar de vida: inté carreteiro me fiz,
cheguei a entrar de peão, fui agregado sem inhapa. Mas trabalhava e não me
davam nada, quase nem desencilhava e sempre maltratado. Ao despois, pra que
lutar, era briga na certa: com o peso da adaga, me sentia outro, sacudia o poncho
pra todos, dei em beber e nunca mais me aquietei. Dizer-le que estava em mim
seria mentir. Ficava cego! Pois, amigo, tudo isso era pouco e veja no mais o
que é ser um triste de condição! Se houvesse cana aqui!
Foi um
dia de azar, quando varando o Uruguai, com uns contrabandos, topei na barranca
com o Juca Ribas, um índio dos meus e que me disse à queimabucha, endireitando
o barbicacho, como sempre falava: Mire, amigo, te embolaram... O gado é assim
feito: cada ponta tem um touro, e chinas, pelo mesmo conseguinte. Quando um não
pode é largar a querência ao que tem mais força. Que eu te digo, a comadre Cármen
anda metida com o Anselmo, e antes boi de verdade que outra coisa...
Puxa,
seu! Nem tinha escuitado e descasquei logo o facão e, logo, le mandei que se explicasse.
Contou-me tudo e, entonces, le tornei:
Olhe,
Juca: vou bombear a minha china e, se você me corneteou os ouvidos, havemos de
nos encontrar. Guarde bem!
Daí me
cortei que nem tento e, nessa noite mesmo, peguei os dois nos meus pelegos...
Verdade! A china só de me ver ficava louca e, como eu parava pouco em casa, me
punha a pensar que muito pode a saudade... Pois, se juntos estavam, juntos
ficaram, o homem baleado no coração, à beira da cama, a china retalhada, sem se
mexer tanto me conhecia! Morreu que nem ovelha... isso despois que, por
desprezo no mais, degolei o outro, já defunto, de orelha a orelha...
E não foi
só: tenho comigo muitos sangues... Nessa manhã, eu não era eu, nem sou agora.
Se me visse! O que sei é que já ia muntando e vi pela frente o Juca Ribas, com
um ca’alo a cabresto, me percurando, quem sabe? Pois, lo derrubei a bala, um
irmão! Saí no tranco, enxergava tudo vermelho, mas tudo, e me perdi lá por
longe... Quando voltei, trazia uma escolta de muitos homens me perseguindo, e
duros que nem soga, amigo!
Velhas coisas,
moço, coisas à-toa, não val’ contar! Saiba no mais que daquela apertura só me
salvou o meu rabicho pela diaba de prata, de umbigo de fora, com a cobra grande
à roda do seio e a mancha alastrando no corpo, que era toda a folha faceada.
Não me duvide: aquela arma era pra se beijar no perigo... Cantava na bainha, se
mexia no ar e, em muita peleia braba, eu disse comigo:
Este
facão veve!
E, cada
vez, me arriscava mais e sentia mais gana contra todos. Já tinha pena dos meus pingos;
perdi a tiro os meus melhores ca’alos e nunca tive um arranhão...
Pois,
patrício, dia veio em que inté essa me traiu! Eu dormia com ela nos arreios,
não me apartava nunca da sua vista e, mesmo assim, se perdeu. Pode que esteja
aonde o bugre velho sabia... E pra que encompridar? Somente direi que aquilo me
aplastou, me encaiporei e, tendo-me desguaritado dos camaradas, a polícia me
pisou no rastro e passou-me o maneador. Era sorte...
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