História do Gebo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Por fim,
na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De envelhecido
e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos
estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia.
Ó Gebo!
— Ahn?
A mulher
azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto,
ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado,
todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os
desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as
aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre
a cabeça do Gebo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia
empedernir o coração.
Todos os
dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e outro dia,
dá a impressão de que chove e se não sai do inverno. Outras vezes calavam-se,
mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem cor, que se
gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os gemidos se não
ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as horas passam
acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três absortos. Porque a
vida interior nunca cessa, nem no sono — este monólogo com que a vamos
comentando até ao fim, que não tem existência real e que vivo é imenso. Nos
homens e nos bichos. Talvez também nas árvores. Nuns desvairado, noutros
humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este monólogo furioso ou
ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos... Mas ela não podia
mais e irrompia:
— Deste,
emprestaste a toda gente. E agora? agora? Riem-se de ti inda por cima, e
ninguém te ajuda. Morremos à fome.
— É o
mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência...
— O pior
é de nós, de mim e da pequena.
— Pois é
o que me aflige, que por mim quem me dera morrer!
— Não
fosses tolo! Olha de teus amigos como trepam.
— Ó
mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer?
— Roubá-lo!
roubá-lo!...
Às vezes
esqueciam-se e ainda pairavam em torno duma esperança, a qual, agora nascida,
logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava para que todos
três gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos a edificar os
mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra
e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que há sol e chuva
misturados. E como o Gebo lhe queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por
ser o único ser no globo, que lhe não dizia más palavras.
Lá ia
indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia
amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam.
A mulher
passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe os
últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia
ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração — anh!
anh! — sufocada.
— Aí vem
ele... — murmurava.
O Gebo
entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia ruminara:
— Até que
vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança?
— Não há
nada, mulher.
E
sentava-se arrasado.
— Também,
ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és?
— Eu não,
o quê?
— Um ente
inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices
que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar?
— Eu sei
lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai.
— Pois é
o que tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de tudo, davas
dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. Reparasses, era a
tua obrigação.
— Ó
mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me basta a minha
aflição!... De que serve isso agora?
— De que
serve? Serve de muito!
À noite,
à luz do petróleo, o Gebo fazia escritas com um cobertor pelos ombros e as mãos
geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a mulher ralhava,
passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gebo, no nariz
enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da mesa, só se viam iluminadas
as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem descanso.
— Já tive
uma letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente.
— É de
ti! é de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se... —
dizia-lhe a mulher.
— Têm
sorte, é o que é. Para tudo é preciso sorte. — E curvado sobre os livros
contando, murmurava mais baixo:
—... E
vão sete...
— Sorte!
sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te ficar
espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir.
Ó
mulher!... — E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa.
Viam-se-lhe os olhos aguados. — Ó mulher, a gente também perde as forças...
Sempre a desgraça! sempre a desgraça!...
— Tudo
nos corre torto!
Mas...
— Tudo!
deixa-me!..
E
desatava a chorar. Então o Gebo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no
papel, mentia para lhe dar ânimo.
— Qualquer
dia entro aí num negócio, tu verás... Não te aflijas. — E vão cinco... — Também
há de chegar o nosso São Miguel. A desgraça há de se cansar de nos perseguir.
E o pão
que trazia para casa era quase uma esmola. Mas tanto mentia que chegava a
iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a
desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e
esperavam; pareciam suplicar-lhe — Mente! ao menos mente! — E o velho inútil
procurava um sonho ainda que fosse usado.
A velha
reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado.
— Não,
que é preciso sairmos deste atoleiro.
— Agora
vai, agora vai, tu verás. Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?...
Deixa-me trabalhar. Sossega.
— Nem na
cova!
Ia a mãe
deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se:
— Pai,
não se aflija.
— Eu não,
filha, eu não. Aquilo é gênio, coitada, tem razão, tem sofrido muito. Vai tu
também pra cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com a escrita.
— Boa
noite.
Sozinho,
o Gebo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a
pena correr no papel, parar, tornar... — E vão cinco, e vão sete... noves fora
nada... — até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no cobertor,
tombava sobre a mesa, soluçando:
— Não
posso! não posso mais! E tinha uma letra tão linda!
Na
própria desgraça caem por vezes resquícios do sol. Houve tempo em que
respiraram. Tinham-lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de
expedientes tornara mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério
a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo — a
sorte da filha.
Quase
sempre ao deitar falavam da filha.
— É o que
nos vale, a nossa filhinha,
— Sempre
nos dá mais ânimo.
— É tão
boa, tão nossa amiga!...
A velha
trabalhava, ruminava projetos desconexos para enriquecerem; a roupa andava
defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para
poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gebo e para a filha.
— Ó
homem, mas então? toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta!
— Deixa
estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas.
— Ora não
vão, não vão!...
Era ela
afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o.
— Por
vossa causa é que eu luto — dizia ele sempre. — Não posso mais!
E não
podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até aos
desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar... Os pobres
contentam-se com pouco — tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem
esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gebo, que
não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele queria era dormir, dormir
aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros não lhe consentiam, debatiam-se
ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até
cair por terra, exausta, exigindo-lhe todos os dias uma mentira para alimentar
o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida
imaginária. — Então?... — interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gebo já não
sabia. O Gebo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias
tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola.
Aquele homem gordo, ao chegar à casa, procurava o dinheiro no bolso e algum
resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: —
Então? então... Nada, nada... — Mas mente! ao menos dizia o silêncio, diziam os
olhos ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser
atarantado, cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima.
Então, nada! então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem
sonhar, e quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e
arquitetarem uma mentira, como friorentos à procura de lume!...
No seu
caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se. O
seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de
ilusão.
À tarde o
Gebo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes falidos e os
professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo, menos a
faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as mãos sobre o castão da
bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala
sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao fato de todos os
negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já
tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma
indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os
planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e
sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: tem a
especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles
sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta,
combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-se uns aos
outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o
sonho escondido e inútil. Só o Gebo não pode mais e olha-os num mudo espanto.
— Oh,
como eu sou feliz!... — exclamava um deles. — Agora tenho aí um lugar...
Nem
sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros:
— Cuido
que está cada vez pior.
— Um
homem que teve um crédito na praça!
— Tem a
fome à porta.
— Coitado!
Eu agora é que trago entre as mãos um negócio...
Vivem
iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E
não têm porventura razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa
empresa — a Morte?
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