Gennaro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Meurs
ou tue...
Corneille
—
Gennaro, dormes, ou embebes-te
no sabor do último trago do vinho, da última fumaça do teu cachimbo?
— Não: quando contavas tua história,
lembrava-me uma folha da
vida, folha seca e avermelhada como as do outono e que o vento varreu.
— Uma história?
— Sim: e uma das minhas historias. Sabes,
Bertram, eu sou pintor... É uma lembrança triste essa que vou revelar, porque é
a história de um velho e de duas mulheres, belas como duas visões de luz.
Godofredo Walsh era um desses velhos
sublimes, em cujas cabeças as cãs semelham o diadema prateado do gênio. Velho
já, casara em segundas núpcias com uma beleza de vinte anos. Godofredo era
pintor: diziam uns que este casamento fora um amor artístico por aquela beleza
romana, como que feita ao molde das belezas antigas; outros criam-no compaixão pela pobre moca que
vivia de servir de modelo. O fato e que ele a queria como filha, como Laura, a
filha única de seu primeiro casamento, Laura!... corada como uma rosa e loira
como um anjo.
Eu era nesse tempo moço: era aprendiz de
pintura em casa de Godofredo. Eu era lindo então; que trinta anos lá vão, que
ainda os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta
e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar
infantil, pensativo e melancólico como o Rafael se retratou no quadro da
galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. Nauza tinha
vinte e eu tinha dezoito anos.
Amei-a; mas meu amor era puro como meus sonhos
de dezoito anos. Nauza também me amava: era um sentir tão puro! era uma emoção
solitária e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos
embalavam aos céus da Itália.
Como eu o disse: o mestre tinha uma filha
chamada Laura. Era uma moca pálida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua
tez era branca, e só às vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe
avermelhavam a face e se destacavam no fundo de mármore. Laura parecia querer-me como a um irmão. Seus risos, seus
beijos de criança de quinze anos eram só para mim. A noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro
com minha lâmpada,, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas
faces, nas trevas.
Muitas noites foi assim.
Uma manhã — eu dormia ainda — o mestre
saíra e Nauza fora a igreja, quando Laura entrou no meu quarto e fechou a
porta: deitou-se a meu lado.
Acordei nos braços dela.
O fogo de meus dezoito anos, a primavera
virginal de uma beleza, ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater
sobre o meu, isso tudo... ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me
enlouqueceu...
Todas as manhãs Laura vinha a meu quarto...
Três meses passaram assim. Um dia entrou
ela no meu quarto e disse-me:
— Gennaro, estou desonrada para sempre... A
princípio eu quis-me iludir, já não o
posso, estou de esperanças...
Um raio que me caísse aos pés não me
assustaria tanto.
— E preciso que cases comigo, que me peças
a meu pai, ouves, Gennaro?
Eu calei-me.
— Não me amas então?
Eu calei-me.
— Oh! Gennaro! Gennaro!
E caiu no meu ombro desfeita em soluços.
Carreguei-a assim fria e fora
de si para seu quarto.
Nunca mais tornou a falar-me em casamento.
Que havia de eu fazer? contar tudo ao pai e
pedi-la em casamento?
Fora uma loucura... Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua
casa...: E Nauza? cada vez eu a amava mais. Era uma luta terrível essa que se
travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso.
Laura não me falara mais. Seu sorriso era
frio: cada dia tornava-se mais pálida, mas
a gravidez não crescia, antes mais nenhum sinal se lhe notava ...
O velho levava as noites passeando no
escuro. Já não pintava. Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma
harmonia de morte, que empalidecia cada vez mais, o misérrimo arrancava as cãs.
Eu contudo não esquecera Nauza, nem ela se
esquecia de mim. Meu amor era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e
de sede que me banhavam de lágrimas o travesseiro. Só as vezes a sombra de um
remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas névoas ...
Uma noite... foi horrível... vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava
meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas e confusas lhe
soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face úmida de um suor
copioso, chamou-me. Sentei-me junto do leito dela. Apertou
minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meus ouvidos:
— Gennaro, eu te perdoo: eu te perdoo
tudo... Eras um infame... Morrerei... Fui uma louca... Morrerei... por tua
causa... teu filho... o meu... vou vê-lo ainda... mas no céu... Meu filho que
matei... antes de nascer...
Deu um grito, estendeu convulsivamente os
braços como para repelir uma ideia, passou a mão pelos lábios como para enxugar
as últimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, lívida, fria, banhada de suor
gelado, e arquejou... Era o último suspiro.
Um ano todo se passou assim para mim. O
velho parecia endoidecido. Todas as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura:
levava aí a noite toda em solidão. Dormia? ah que não! Longas horas eu o
escutei no silêncio arfar com ânsia, outras vezes afogar-se em soluços. Depois tudo emudecia:
o silêncio durava horas; o quarto era escuro; e depois as passadas pesadas do
mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes como de um bêbedo que cambaleia.
Uma noite eu disse a Nauza que a amava:
ajoelhei-me junto dela,
beijei-lhe as mãos, reguei
seu colo de lágrimas. Ela voltou a face: eu cri que era desdém, ergui-me
—Então Nauza, tu não me amas, disse eu.
Ela permanecia com o rosto voltado.
— Adeus, pois; perdoai-me se vos ofendi; meu amor é uma
loucura, minha vida é uma desesperança — o que me resta? Adeus, irei longe
daqui... talvez então eu possa chorar sem remorso...
Tomei-lhe a mão e beijei-a.
Ela deixou sua mão nos meus lábios.
Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava
debulhada em lágrimas.
— Nauza! Nauza! uma palavra, tu me amas?
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Tudo o mais foi um sonho: a lua passava
entre os vidros da janela aberta e batia nela: nunca eu a vira tão pura e
divina!
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E as noites que o mestre passava soluçando
no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza.
Uma noite houve um fato pasmoso.
O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e
chorava aquela voz cavernosa e rouca: tomou-me pelo braço com força, acordou-me e levou-me de rasto ao quarto de Laura...
Atirou-me ao chão: fechou a porta. Uma lâmpada
estava acesa no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. Era
Laura moribunda! E eu macilento como ela tremia como um condenado. A moca com
seus lábios pálidos murmurava no meu ouvido…
Eu tremi de ver meu semblante tão lívido na
tela e lembrei-me que naquele dia
ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda pendurado a
janela, eu me horrorizara de ver-me cadavérico...
Um tremor, um calafrio se apoderou de mim.
Ajoelhei-me, e chorei
lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era
Laura que se erguia dentre os lençóis do seu leito e me acendia o remorso e no
remorso me rasgava o peito.
Por Deus! que foi uma agonia!
No outro dia o mestre conversou comigo
friamente. Lamentou a falta de sua filha, mas sem uma lágrima. Mas sobre o
passado na noite, nem palavra.
Todas as noites era a mesma tortura, todos
os dias a mesma frieza.
O mestre era sonâmbulo…
E pois eu não me cri perdido…
Contudo, lembrei-me que uma noite, quando eu saia do
quarto de Laura com o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por
perto, roçaram-me uns cabelos soltos,
e nas lájeas do corredor estalavam umas passadas tímidas de pés nus Era Nauza
que tudo vira c tudo ouvira, que se acordara e sentira minha falta no leito,
que ouvira esses soluços e gemidos, e correra para ver…
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Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh
tomou sua capa e uma lanterna e chamou-me para acompanhá-lo. Tinha de sair fora da cidade e
não queria ir só. Saímos juntos: a noite era escura e fria. O outono desfolhara
as árvores e os primeiros sopros do inverno rugiam nas folhas secas do chão.
Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhávamos pelas montanhas,
cada vez o caminho era mais solitário. O velho parou. Era na fralda de uma
montanha. À direita o rochedo se abria num trilho: à esquerda as pedras soltas
por nossos pés a cada passada se despegavam e rolavam pelo despenhadeiro e,
instantes depois, se ouvia um som como de água onde cai um peso…
A noite era escuríssima. Apenas a lanterna
alumiava o caminho tortuoso que seguíamos. O velho lançou os olhos à escuridão
do abismo e se riu.
— Espera-me aí, disse ele, já venho.
Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o
cume da montanha: eu sentei-me
no caminho à sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer entre os arvoredos nos
zigue-zagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho bateu a porta de uma
cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que
aí se passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher lívida e desgrenhada
apareceu com um facho na mão.
A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre
estava comigo.
O velho assentou a lanterna num rochedo,
despiu a capa e disse-me:
— Gennaro, quero contar-te uma história. É um crime, quero
que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moça bela. De outras núpcias
tinha uma filha bela também Um aprendiz — um miserável que ele erguera da
poeira, como o vento às vezes ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela
quando quisesse…
Eu estremeci, os olhares do velho pareciam
ferir-me.
— Nunca ouviste essa história, meu bom
Gennaro?
— Nunca, disse eu a custo e tremendo.
— Pois bem, esse infame desonrou o pobre
velho, traiu-o como Judas ao
Cristo.
— Mestre, perdão!
— Perdão! e perdoou o malvado ao pobre
coração do velho?
— Piedade!
— E teve ele dó da virgem, da desonra, da
infanticida?
— Ah! gritei.
— Que tens? conheces o criminoso?
A voz de escárnio dele me abafava.
— Vês pois, Gennaro, disse ele mudando de
tom, se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse
despenhadeiro! É medonho! se o visses de dia, teus olhos se escureceriam e aí
rolarias talvez de vertigem! É um túmulo seguro; e guardará o segredo, como um
peito o punhal. Só os corvos irão lá ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, se
tens ainda no coração maldito um remorso, reza tua última oração: mas seja
breve. O algoz espera a vítima, a hiena tem fome de cadáver…
Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha
só a escolher o suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Uma
luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus
braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais,
ele estava armado. Eu... eu era uma criança débil: ao meu primeiro passo ele me
arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava... Só me restaria morrer com ele,
arrastá-lo na minha queda. Mas para que?
E curvei-me no abismo: tudo era negro, o
vento lá gemia embaixo nos ramos desnudos, nas urzes, nos espinhais
ressequidos, e a torrente lá chocalhava no fundo escumando nas pedras.
Eu tive medo.
Orações, ameaças, tudo seria debalde.
— Estou pronto, disse.
O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios
estalados de febre. Só vi aquele riso... Depois foi uma vertigem… o ar que
sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se cai de
uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa, fraqueja, sua,
esfria... Era horrível: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam
nas mãos, as raízes secas que saiam pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso
e meu peito sangrava nos espinhais. A queda era muito rápida… De repente não
senti mais nada… Quando acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me
tinham apanhado junto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca
que assombrava o rio.
Era depois de um dia e uma noite de
delírios que eu acordara. Logo que sarei, uma ideia me veio: ir ter com o
mestre. Ao ver-me salvo assim
daquela morte horrível, pode ser que se apiedasse de mim, que me perdoasse, e
então eu seria seu escravo, seu cão, tudo o que houvesse mais abjeto num homem
que se humilha — tudo! — contanto que ele me perdoasse. Viver com aquele
remorso me parecia impossível. Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me então uma ideia de vingança e de
soberba. Ele quisera matar-me,
ele tinha rido à minha agonia e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces, e amanhã procurar outra
vingança mais segura?... Eu humilhar-me quando ele me tinha abatido! Os cabelos
me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava pelo rosto.
Quando cheguei a casa do mestre achei-a fechada. Bati... não abriram. O
jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as portas
que davam para ele estavam também fechadas. Uma delas era fraca: com pouco
esforço arrombei-a. Ao estrondo da
porta que caiu só o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas:
nem uma lamparina acesa. Caminhei tateando ate a sala do pintor. Cheguei lá,
abri as janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei então ao quarto
de Nauza, abri a porta e um bafo pestilento corria daí. O raio da luz bateu em
uma mesa. Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa, e os cabelos
caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles um
copo onde se depositara um resíduo polvilhento. Ao pé estava um frasco vazio.
Depois eu o soube — a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno e fora
ela decerto que o vendera, porque o pó branco do copo parecia sê-lo...
Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça... — Era Nauza!... mas
Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de
outrora, as faces macias e colo de neve... Era um corpo amarelo... Levantei uma
ponta da capa do outro: o corpo caiu de bruços com a cabeça para baixo; ressoou
no pavimento o estalo do crânio... — Era o velho!... morto também e roxo e
apodrecido!... Eu o vi: — da boca lhe corria uma escuma esverdeada.
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