Galinha cega
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Na manhã sadia, o homem de barbas
poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o
bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
– Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires
obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. Não eram
bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem
o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
– Psiu!
Foi o cavalo que ouviu e estacou,
enquanto o seu dono terminava o pregão. Um bruto homem de barbas brancas na
porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
Quanto? Tanto. Mas puseram-se a
discutir exaustivamente os preços.
Não queriam por nada chegar a um
acordo. O vendedor era macio. O comprador brusco.
– Olhe esta franguinha branca.
Então não vale?
– Está gordota… E que bonitos
olhos ela tem. Pretotes… Vá lá!
O homem de barbas poentas
entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
– Frangos BONS E BARATOS!
Carregando a franga, o comprador
satisfeito penetrou no barracão.
– Olha, Inácia, o que eu comprei.
A mulher tinha um eterno
descontentamento escondido nas rugas.
Permaneceu calada.
– Olha os olhos. Pretotes…
– É.
– Gostei dela e comprei. Garanto
que vai ser uma boa galinha.
– É.
No terreiro, sentindo a liberdade
que retornava, a franga agitou as penas e começou a catar afobada os bagos de
milho que o novo dono lhe atirava divertidíssimo.
A rua era suburbana, calada, sem
movimento. Mas no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo
cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras
a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
A franga não notou grande
diferença entre a sua vida atual e a que levava em seu torrão natal distante.
Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros
mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre
rodas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora,
lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o
galinheiro todo se agitava, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo
rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas
novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e
apareceram fagulhas.Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha
visto um fogo de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada
madorna…
Viera depois outro dia de
paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
Agora a vida voltava a ser boa.
Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade:
liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la
incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte,
resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha…
Sujeito cacete.
O galo – có, có, có – có, có, có
– rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo
mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem
grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se
esquivar, querendo e não querendo.
– A melhor galinha, Inácia! Boa à
beça!
– Não sei por quê.
– Você sempre besta! Pois eu sei…
– Besta! besta, hein?
– Desculpe, Inácia. Foi sem
querer. Também você sabe que eu gosto da galinha e fica me amolando.
– Besta é você!
– Eu sei que eu sou.
Ao ruído do milho se espalhando
na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono
descansaram em suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos
notaram logo a anormalidade. A branquinha – era o nome que o dono lhe botara –
bicava
o chão doidamente e raro
alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago de
milho e repetia o golpe, repetia com desespero, até catar um grão que nem
sempre era aquele que visava.
O dono correu atrás de sua
branquinha, agarrou-a, lhe examinou os olhos. Estavam direitinhos, graças a
Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha
continuou a bicar o chão desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até
que ela se fartasse. Mas
não conseguiu com o gasto de
milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela
desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do céu. Se fosse efeito de uma
pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança,
ai… Nem por sombra imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.
Também a galinha, coitada, não
compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias
luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do
sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava
a luz, onde é que estava a sombra.
Foi assim que, certa madrugada,
quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava
preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto;
perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia
inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se
anularia, quietinha, se finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável
clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e
obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
Porém, suprema crueldade, os
outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras
galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo
no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o
corpo todo. As outras cantavam.
Espichava inutilmente o pescoço
para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! Para depois cantar.
As mãos carinhosas do dono
suspenderam-na do chão.
– A coitada está cega, Inácia!
Cega!
– É.
Nos olhos raiados de sangue do
carroceiro (ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas enormes.
***
Religiosamente, pela manhãzinha,
ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, de violentas,
faziam doer a palma da mão calosa.
E ele sorria. Depois a conduzia
ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água. A sensação direta da água nos
pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente,
mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede
longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia,
assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do
carroceiro agachado junto do poço. Aquela água era como uma bênção para ele.
Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas
as dores animais. Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de
doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável,
injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam
lentamente na pele.
Impressão, aliás, algo confusa,
sem requintes psicológicos e sem literatura. Depois de satisfeita a sede, ele a
colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas
martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela. De
tardinha dava-lhe outra vez milho e água, e deixava a pobre cega num poleiro
solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais
catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto
irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal
crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele
notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso
de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
***
Entretanto, a galinha já se
sentia de novo quase feliz. Tinha delidas lembranças da claridade sumida. No
terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e
abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.
Ainda tinha liberdade – o pouco
de liberdade necessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava
compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado
não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o
galo de plumas bonitas.
E não sentir mais o galo
perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.
***
Em determinadas tardes, na
ternura crescente do parati, ele pegava a galinha, após dar-lhe comida e
bebida, se sentava na porta do terreiro e começava a niná-la com a voz branda,
comovida:
– Coitadinha da minha ceguinha!
– Tadinha da ceguinha…
Depois, já de noite, ia botá-la
no poleiro solitário.
***
De repente os acontecimentos se
precipitaram.
***
– Entra!
– Centra!
A meninada ria a maldade atávica
no gozo do futebol originalíssimo.
A galinha se abandonava sem
protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não chutavam
com tanta força como a uma bola, mas chutavam, e gozavam a brincadeira.
O carroceiro não quis saber por
que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o
chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos
estalos da longa tira de sola.
O grupo de guris se dispersou em
prantos, risos, insultos pesados, revolta.
***
– Você chicoteou o filho do
delegado. Vamos à delegacia.
***
Quando saiu do xadrez, na manhã
seguinte, levava um nó na garganta.
Rubro de raiva impotente. Foi
quase que correndo para casa.
– Onde está a galinha, Inácia?
– Vai ver.
Encontrou-a no terreirinho,
estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a
pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço,
onde existiam coágulos de sangue…
Era tão trágico o aspecto do
marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
– Não fui eu não! Com certeza um
gambá!
– Você não viu?
– Não acordei! Não pude acordar!
Ele mandou a enorme mão fechada
contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos
pontos escapuliu para a rua gritando: – Me acudam!
***
Quando de novo saiu do xadrez, na
manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças
tremendas contra o gambá.
Todo gambá é pau-d’água. Deixaria
uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de
matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho. GOSTOSAMENTE.
***
De noite preparou a esquisita
armadilha e ficou esperando. Logo pelas 20 horas o sono chegou. Cansado da
insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas acordou justamente na hora precisa,
necessária. A porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da
gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
Foi se aproximando sorrateiro,
traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhadas rápidas o terreno em volta, as
possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O
gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes, e começou a rir:
– Kiss! kiss! kiss!
(Se o gambá fosse inglês com
certeza estaria pedindo beijos. Mas não era. No mínimo estava comunicando que
houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)
O carroceiro examinou o bichinho
curiosamente. O luar, que favorece os surtos de raposas e gambás nos
galinheiros, era esplêndido. Mas apenas tocou-o de leve com o pé, já
simpatizado:
– Vai embora, seu tratante!
O gambá foi indo tropegamente.
Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. Se sentia imensamente
feliz o bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura
humana:
– A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um...
E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
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