Fantasia de inverno
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Vento gelado, gélido vento
amaina o teu furor, já que traiçoeiramente conseguiste penetrar em meu coração,
que és tu que por lá andas: bem sinto o teu Mui, bem ouço os teus gemidos. Ai
de mim!... És tu mesmo que andas a desfolhar as minhas últimas ilusões e a
crestar as verdes folhas das minhas últimas esperanças.
Como se contrai um mal de
morte à beira da água azul de lagoa tranquila, admirando um nenúfar aberto,
assim ganhei a melancolia que me retransi olhando o límpido céu de inverno
abotoado no pálido e triste plenilúnio.
Fazia frio, um frio navalhante
e eu, esquecido, extasiado naquela serenidade, deixei-me ficar à janela
enamorado da noite e foi, então, que me invadiste, como invades e varejas uma
ruína fendida em mil abertas e taliscas e agora, no meu coração, gemes e
regelas, vento gelado, gélido vento, que andavas errando à luz do luar.
Meu pobre coração! Quando,
outrora, me falavam em vales floridos, em colinas marchetadas de margaridas e
rosas, em campos palhetados de botões de ouro, em vivas águas recobertas de
açucenas brancas, eu sorria superiormente como sorriria um deus a quem um mortal
narrasse aventuras mesquinhas. É que eu tinha o meu coração mais rico em flores
do que os jardins maravilhosos de Viviana e agora... Ai de mim! só há despojos
e como poderiam resistir as flores meigas ao vento de inverno que,
traiçoeiramente, penetrou em meu coração, onde sempre havia a doce, a tépida
temperatura de uma primavera ideal?!
Meus sonhos, que será feito de
vós? Como andam no ar noturno, em torvelinhos fantásticos, folhas e flores orfanadas,
assim andais nas lufadas do vento gélido.
Amanhã o sol tornará ao céu —
eu mesmo o verei seguir, rompendo as névoas como um noivo preguiçoso que abre
vagarosamente o cortinado e, a contragosto, deixa o leito nupcial; eu o verei
surgir e verei a terra revestir-se de luz e, florida e contente, louvá-lo pela
boca harmoniosa dos seus pássaros. Acompanharei, com olhares invejosos, a
corrida sonora dos límpidos regatos, ouvirei as cantilenas dos campônios e,
talvez, sinta o calor benéfico do sol que reanima, mas... chegará o sol ao meu coração?
Sim, é natural que chegue — ele não é da raça dos homens que só atendem aos que
a Fortuna acerca. As mesmas minas vêm-no chegar, o pântano recena-se com ele,
as cavernas recebem-no no íntimo, é para todos e para tudo que a sua luz rebrilha,
mas... será também para os corações? Diz-me
a alma que não.
Ai de mim!... Como poderei
viver com tal inverno gelado?
Lua, lua perversa, pálido
fantasma, foste tu que assim sacrificaste a minha vida. Quiseste um companheiro
que, parecendo vivo, não fosse mais que um cadáver e encantaste o meu coração,
reduzindo todos os sonhos que nele havia a verdadeiros e melancólicos espectros.
Foste tu, foi o teu hálito, ou
melhor, foi a exalação do teu corpo nevado, lívida e funérea lua, que transformou
um campo de flores em campo de neve.
E se vier o degelo que pranto
copioso inundará meus olhos; que dilúvio transbordará de mim... Para conter tantos
sonhos e tantos amores é preciso que o meu coração seja do tamanho do mundo.
Quem me mandou a mim
contemplar luares em maio, ao frio? Quem me mandou a mim fazer vigília a defuntos?
Bem fazem os indiferentes que,
embora apareças, com a linda cor com que a morte irônica te enfeita, fecham as
janeiras e entregam-se aos travesseiros. Esses estão livres do assombramento,
mas eu, curioso, lá me deixei ficar a olhar-te e tu...
Daí... quem sabe! Talvez não
sejas tu a culpada, lua merencória, porque, em verdade, quando eu te fitava, meu
pensamento estava em outra face, mais linda do que a tua, mas também fria e
indiferente.
Quem sabe se não foi a
tristeza desse pensamento que me pôs no coração tamanha melancolia? Se foi...
aqueles olhos doces, com um só olhar, desfarão a tristeza. Desfariam, devo eu
dizer, desfariam se, um breve instante, se volvessem para o meu rosto, mas...
são tão frios, tão frios que...
Ai de mim!... O inverno
passará depressa, o verão tornará risonho, mas no meu coração nunca mais, nunca
mais haverá sol de estio nem flores da primavera.
À noite, eu também ando a
carregar um astro morto: o teu, matou-o o tempo; o meu, matou-o o amor.
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