Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Meu velho amigo: — Aqui tens a
história que ontem me contou, ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos
juntos, aquele sujeito que tu conheces.
***
Eu tinha chegado de um porto
de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com quem me
encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma
senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente distinta,
sincera e despresumida, como quase toda a gente dessa bela raça germânica, que
floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a convivência
como a da sua família.
Desembarcamos no Terreiro do
Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma viagem
tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me, contra
os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para passearmos
por um momento à réstea vivificadora do sol de Lisboa no mês de Janeiro.
Soube então que a minha
simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o Porto,
assim como eu, no dia imediato. Falamos por algum tempo, ela das suas saudades,
eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao hotel de
Bragança, onde ficamos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no caminho
de ferro para a cidade das camélias.
À hora aprazada fui
encontrar-me efetivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de
saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo
do seu edredom, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da
engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletó, com o fim de
fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se
tinha inverno.
Saímos a pé pelo braço um do
outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa Apolônia a
tempo de entrar no trem e partir.
Achamo-nos no vagão,
acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o Sr. S. M., que lia
filosoficamente um número do Diário de
Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficamos um
defronte do outro.
Estava com efeito uma bela e
donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó
no ar.
De um lado a frescura das
laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o Carregado,
e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos acompanhando
como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor.
A minha companheira de viagem
tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável país do seu
exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha desemolhado o seu ramalhete
à força de o respirar com frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus
pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade inteiramente
desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre.
Pelas quatro horas da tarde
estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a
esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes e
viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns tênues
vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no
ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma
tela de Correggio.
A jovem alemã, que eu tinha
defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça,
aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos
e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como o dos
sonhadores, dos namorados e dos poetas.
Eu atirei fora um charuto que
ela me permitira acender, e preguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos
vendo.
— Ideal murmurou ela, quase
num suspiro.
Este laconismo deixou-me
entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma dessas
criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espetáculos da
natureza entumece o coração e supita a palavra fazendo bailar as lágrimas nos
olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão talvez,
ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela.
Ao cabo porém de meia hora não
pude resistir à tentação de lhe dizer:
— Que horas estas para dois
entes que se amassem!
— É verdade, confirmou ela.
— Como deve ser bom, nestes
momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de
recordações, de esperanças e de afetos, ter junto de nós um honrado e leal
coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino
do crepúsculo, o hino da sua alma! Dá-me licença que a ame...
Ela fitou-me com um olhar
penetrante. —... por cinco minutos? terminei eu — ou por um quarto de hora?...
daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos que
adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem
joga a tentos.
— Assim, pode ser, disse-me
ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da partida...
— Por quê?
— Porque não faz uma vasa.
— Quem sabe? Conforme o lado
para que ficarem os trunfos.
— Demos então as cartas.
— Eu princípio. Conto trinta
anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um gênio
apaixonado... sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa,
elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando
um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma,
se nós temos uma alma pura, e dessedentar-se nela como uma pomba em um lago;
que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o
tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem,
porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às
mulheres honestas...
— Mas é amizade o que me está
dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em Portugal, e já
ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo... Vou-lhe fazer
também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos de coração.
Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo?
— O amor em cartas, objetei-lhe
eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que
seja o mais suntuoso, mas não é por certo o mais nutriente... No entanto como
em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as iguarias mais
delicadas...
— Eu creio que sou amada...
— Por alguém que está longe! a
quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de
esperança... uma carta que dentro de oito dias o há de fazer chorar, e que ele há
de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia... E em
troca desta carta há de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas
do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor,
será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo
deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter
do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a
convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o
prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a
esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais
velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático!
tê-lo finalmente ao seu lado...
(E, nisto, passei para o lado
dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.)
— Ouvi-lo, continuei eu,
ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor,
o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de
felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu
amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza de
ser amado pela mulher mais adoravelmente meiga, mais terna e mais simpática!
Chegado a este ponto, e
falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do que se
emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão que ela
tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva.
Ela então levantou o cabazinho
de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos,
desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja que
tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro
ou de um médico:
— Prescrevo-lhe o regime
refrigerante.
— Por Deus, me parece que
estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir.
E, voltando para o lugar que
primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja e a
morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido.
— Sim, senhor… ia-me dizendo
no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e arranjou bom
jogo!
— Ah! então confessa...
— Confesso-lhe que sim.
— Posso oferecer-lhe da minha
dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja. Ela separou um gomo.
— Quando acabar, podemos
continuar.
— Continuo imediatamente,
cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma pevide que tinha
nos beiços.
Senão quando a corrente do ar
cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu.
Preciso abrir para este objeto
perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha
sido feito em Paris por — Pinaud & Amour — esse bonito chapéu tão flexível,
que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha
jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O
próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos — Cela vous coiffc à merveille — e eu
tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim
somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente
coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a
verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem
a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era
realmente muito mais com o talento dos rs. Pinaud & Arnour, do que com o
meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de
espírito!
Os cabelos despenteados pelo
vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não
podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente
desaparece o chapéu na asa de um tufão.
Ela ria às gargalhadas, as
quais me caíam na cabeça... na cabeça não — pelas costas abaixo! — como
torrentes de água nevada.
O Sr. S. M., de quem confesso
que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no
nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede
da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasômetro,
e disse-me assim:
— Tenho aqui com que lhe
valer!...
Entendi que rabearia um castor
inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a
benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o
meu susto com um sorriso:
— Não é o que cuida! Está cá
dentro o objeto que lhe convém.
E dizendo isto, sacou da
chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um barrete de
veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz.
Hesitei por um instante entre
aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril.
Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a destra para o inocente
carapuço, que estava sendo na mão do Sr. S. M. gládio da suprema justiça,
alfanje exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como
quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com ambas as mãos,
levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos
e vi o monstro boquiaberto... Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha
infeliz cabeça no seu novo invólucro!
Estava consumado.
A minha gentil companheira
deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as
mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas:
Valor! acredite... que o amo.
Respondeu-lhe o silêncio da
morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja
borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda,
era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões desse formoso dia!
Ser amado, tendo na cabeça um
barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra
orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor
pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora
tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice
da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuntura? Mover-me
para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o
espanador dos meus afetos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe
nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa
almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinetes?!…
Assim os perdi pois, para todo
sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm
visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho posto!
***
Encerra esta pequena história
a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a
desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão
esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um
barrete extingue?
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