Divagando
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Entrando, de manhã, no meu
escritório, vi o velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na parede
fronteira à minha mesa de trabalho. Só lhe restava uma folha. Para que
arrancá-la se nada mais havia atrás daquele número que representava apenas uma
recordação! Que o mísero levasse aquela última folha para o lixo.
Outro calendário, novo e
gordo, carregado de folhas, como uma árvore na primavera, foi substituir o
velho bloco lentamente consumido e foi somente essa substituição que me fez
sentir o tempo, porque não notei diferença alguma na manhã: nem mais moça, nem
mais velha. No alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos
e as mesmas andorinhas; na terra as mesmas árvores, as mesmas flores, as mesmas
águas, entretanto, durante a noite, o mundo silenciosamente vencera outro marco.
E por que só o calendário
acusava a passagem destruidora do tempo?
Indiferentemente, todas as
manhãs, eu lhe arrancava uma folha e a lançava à cesta dos papéis. E que representava
aquela folha morta?
Quem lhe escrevesse o inventário
teria de encher resmas e resmas de páginas largas registrando a campanha dos
homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e mortes, fomes e frios, agonias
e prazeres, bodas e enterramentos, marchas de exércitos e convênios pacíficos,
cerimônias rituais e concílios covardes, inventos e desilusões, sonhos
desfeitos e utopias realizadas, travessias de águas e de áreas estéreis, ascensões
arriscadas e mergulhos no seio da terra à cata do ouro das minas, trabalhos
serenos, estudos calmos, ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e,
superiormente, a marcha tranquila dos astros luminosos.
Tudo isso continha a miserável
folha morta que eu atirava, com desprezo, à cesta dos papéis inúteis. Cada uma
delas representava um dia.
Ai de mim! cada uma delas era
como um recibo que eu dava de um dia que vivera e como eles são avaramente
contados, como o dinheiro de Shylock, era o meu capital de alento que assim se
esgotava. Era, pois, de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o calendário
era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo era o meu próprio ser.
E fiquei a olhar o papelão,
onde estava estampado aquele número, que era tudo: “A vida é como um rio que
corre sobre um leito eterno — o tempo”.
Nós somos as águas que passam,
águas, como as do Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? para
a eternidade, que ó um oceano sem praias. As margens são de vario aspecto —
aqui frondosas, ali estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.
Há gota de água que descem
desde a nascente, pelo meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol
e as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e inúteis; que bem
fazem? que destino cumprem? correm, engrossam apenas o caudal e passam.
Outras, como se se houvessem petrificado
para conservar em carcérula uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes
imperecíveis e refulgem no seio das águas — a luz é a inspiração perene, o
gênio cristaliza o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto à raiz
de uma árvore e transformam-se em seiva e, subindo, desabrocham em flor e
metamorfoseiam-se em fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas, transbordam
com as cheias, são repelidas pelo fluxo do rio e alastram alagando as margens,
formam nateiros pingues onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas generosas,
são o enxurdeiro da fecundação, o tremedal da abundância. As outras passam — o
rio é alvo e feliz e discorre cantando; o lodo é negro e parado.
Que nasce no rio? a ninfa; o
centro é estéril, só as margens tranquilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é
todo linho, é todo azeite. Queres tu ser a gota que vai na derrama
fertilizante? não, por certo — preferes, sem dúvida, ser a gota ligeira e
despreocupada que desce na correnteza para o oceano do eterno silêncio. O ideal
é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar tropeço, brincando nos
remoinhos, saltando nos pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz ainda
é a bolha efêmera de espuma que Tive apenas o tempo necessário para refletir o
azul do céu e o verde formoso da paisagem.
Como são desiguais os desejos!
Vede como variam nas almas os ideais. Cada qual trata com mais empenho de
iludir o tempo.
O menino imagina-se um homem —
é guerreiro e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta inimigos
imaginários, ou ó artífice e trabalha ajustando a ferramenta: aplaina, serra,
prega e pule; ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e colhe. A
menina, ainda balbucia, e já pensa em ser mãe — ei-la tartamudeando carícias à
boneca e nina, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe
os cabelos, fecha-lhe as pálpebras e, à noite, cabeceando de sono, não há convencê-la
a deixar a filha: leva-a nos braços o dorme com ela chegada ao coração.
O menino julga-se capaz de
realizar a conquista do mundo e orgulha-se da sua força e da sua agilidade
levantando pesos, lutando ou subindo lentamente às árvores, como um esquilo. A
menina já se imagina sedutora e, dengosamente, ensaia a faceirice. Um corre aos
ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? sonham com o amanhã, é o
instinto que os impele através do tempo ao destino prescrito.
Para complemento da ilusão o
menino põe-se a repuxar o lábio, a retorcer as guias de um bigode imaginário,
engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando um bengalão, lá vai pela casa a
pavonear ufano. A menina reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o cabelo,
adelgaça a cintura, toma atitude lânguidas e, quando se reúnem, continuam a
sonhar e o sonho é a família: são compadrios, crianças que nascem, projetos de
batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na vizinhança, rusgas no casal e
até (horresco referens!) alusões ao divórcio por incompatibilidade entre os cônjuges.
É uma comédia da vida por marionetes animadas. Esses querem avançar.
Agora vede mais adiante —
outra face da ilusão: os que procuram retroceder: É o homem que se encalamistra,
é a dama que se maquilha; que fazem? procuram reparar “des ans l’irreparable owtrage”; são os regressivos.
Há aqui um cabelo branco
indiscreto, há ali uma ruga denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a
frescura, vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão róseos, que
fazer? pedir socorro ao artifício — e são tintas, pomadas, pastas, lápis,
ferros de feitios complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no toucador.
O homem recorda, então, o
tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte. Ah! dançava toda uma noite sem
sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as consequências.
Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo! A dama relembra os seus quinze
anos viçosos, o sem primeiro namoro, os dias do seu noivado. Como era feliz!
tudo lhe sorria e os espelhos eram mais puros. Por que não havia de tornar esse
tempo amável?
E os velhos, os que já não
podem esconder as injúrias do tempo? esses tornam à infantilidade. O próprio
tempo como que os transforma — tornam-se tartamudos, ficam desdentados,
caminham à custa de apoios, alimentam-se como os petizes e até vão engelhando:
— a velhice é a caricatura da infância. Os extremos tocam-se.
Certos povos entendiam que era
uma caridade matar os velhos. Que ficavam eles fazendo na vida? Pobre ruínas,
antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de
uso o sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por
entre os trigos e os fenos, ouvindo, pela derradeira vez, as vozes alegres dos
pássaros, lá iam para o enteio, desejando a paz aos que ficavam e abençoando os
pequenitos.
Que nos importa mais um ano?
Isso de idade é grave para os velhinhos. Quando o copo está cheio basta uma
gota d'água para que transborde. Para nós outros, porém, que ainda vamos pelo
meio, que nos importa essa gota que caiu da clepsidra?
A vida é como aquela colina
encantada do conto maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é mister
seguir de fronte erguida, olhando sempre em frente.
Ai dos que volvem os olhos ao
passado — ficam na melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam, como
viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e ilusões perdidas! Assim,
pois — caminhemos de olhos no além! e que de novo caminho nos seja suave.
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