Decadência
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Da vida de duas princesas —
uma alemã, outra russa — que caíram em miséria, deram os jornais o triste
romance. A primeira, fugindo na mesma noite do casamento, preferiu ao marido,
um príncipe, certo boêmio desabalado que, depois de a haver empobrecido,
abandonou-a com uma filha pequenina e enferma nos braços.
A desgraçada, repelida pela
família, cuja coroa ficara indelevelmente mareada, errou, faminta e tiritante,
pelos campos até que a criança lhe morreu achegadinha ao colo mirrado e, sem
lar e sem pão, com uns sórdidos andrajos sobre o esqueleto, foi, uma noite,
bater à porta dum hospital pedindo, a chorar, que a recebessem por
misericórdia. Receberam-na tomando-a por uma pobre mulher, viúva de algum
operário e, só na hora extrema, quando a desvairada se desprendia do mundo, os enfermeiros
souberam quem ela era.
A outra, menos romântica,
perdeu-se em operações financeiras: atirou-se à jogatina da bolsa sacrificando milhões
de rublos, empenhando as joias, o mobiliário, a seda, os linhos, até que se
achou, uma manhã, sem um azinhavrado kopeck.
Como não era mulher frágil e conservava no coração um resto de esperança,
preferiu continuar a viver, mesmo com sofrimento, a mergulhar no Neva ou a
queimar os miolos, se os tinha, com um tiro.
Procurou emprego como a
Krotkaia de Dostoiévski e, como não lhe foi fácil encontrá-lo em uma repartição
do Estado, aceitou, com resignação, o lugar de servente de pedreiro e, como no
tempo do fastígio subia, com peliças caras sobre os ombros, as escadarias de mármore
dos palácios moscovitas, pôs-se a subir as escadas oscilantes que levavam aos
andaimes equilibrando na cabeça, sobre a rodilha dos cabelos louros, que
haviam, em tempos prósperos, sustentado uma coroa, o cocho acogulado de barro.
Acabou em negra miséria,
envelhecida, calejada naquele rude trabalho, ao sol e à neve.
Entre nós há de ser difícil
aparecer um desses casos lamentáveis, porque não temos príncipes, mas podemos apontar
muitos decaídos que, se não têm nas veias o sangue azul, tiveram nos cofres
ouro bastante para, com habilidade, se quisesse, arranjar o colorido ciânico que
é um nobre privilegio dos descendentes de reis. Um desses decaídos acabou, no
Hospício Nacional de alienados. Eu o conheci já na miséria, mas ainda são,
íntegro de espírito. Chamava-se Pinheiro, por antonomásia — Chicote.
Fui-lhe apresentado, uma
noite, por um acadêmico, em cuja casa ele costumava pernoitar. Era um homem simpático,
distinto, dotado de uma voz insinuante, conversando como um gaulês.
Nessa noite, minutos depois da
sua apresentação, falando-se do passado, o sempre bon vieux temps, ele, que se achava sentado em uma canastra,
levantou-se e, sacudindo os cabelos, compridos e soltos como uma juba, pôs-se a
passear pelo quarto acanhado, em silêncio, estalando os dedos. De repente,
detendo-se, cravou em mim os olhos que fulguravam, e disse com um momo:
— Meu amigo, no Brasil ninguém
vive, isto é uma ocara, compreende? uma ocara insípida. Para quem nunca
atravessou os mares o Rio tem encantos, mas para quem viveu lá fora, isto não
passa de uma aldeia sórdida e triste, com um lindo céu e algumas árvores.
E, inspirado, entrou a
descrever a vida alegre, agitada, em Paris — os boulevards iluminados, o Bois,
à tarde, os lagos no inverno recortados pelos patinadores que deslizam
graciosamente sobre a neve rutila, os teatros, os cabarés...
Depois Londres com o seu
movimento e o seu nevoeiro, as costas azuis do Mediterrâneo, Nice e toda essa
Itália artística e lânguida, as ilhas clássicas, a Grécia, Constantinopla,
Jerusalém, os desertos, que sei! Falou-me do mundo descrevendo pitorescamente,
e com saudade, toda a sua longa e lenta viagem — noites em Govent Garden e noites à beira do Mar Morto, numa tenda, entre
beduínos.
Depois o Egito, depois a
Espanha com amores e serenatas. Agitava-se, ia e vinha sacudindo, de instante a
instante, a cabeça, com os olhos muito brilhantes. Eu ouvia pasmado e, como não
conhecia a estranha história da sua vida, tomava-o por um louco.
De vez em quando procurava os
olhos do acadêmico que mo apresentara e nada neles descobria que denunciasse
incredulidade: o rapaz ouvia, com respeito, as descrições fantásticas que ia
fazendo aquele homem, cujo casaco estava no fio, cujas botinas gastas iam e
vinham pelo soalho sem ruído como se fossem forradas de algodão.
Depois referiu-se à Arte
recordando as suas detidas visitas aos mais notáveis museus, com uma opinião
sobre cada época e sobre cada um dos grandes mestres da pintura e da escultura.
Falava com acerto como se repetisse as palavras de um guia bem compilado. Por
fim chegou à mulher e sobre todas teve uma frase — desde a robusta campônia, linda
e graciosa no seu vinhal do Douro, com as cores vivas dos seus trajos, que
recordavam a fantasia alegre dos sarracenos até à branca e delicada miss,
figura mística, duma doçura divina, como anjos das iluminuras medievais. E a
todas amara e guardava ainda o sabor daqueles beijos que recebera, uns que
sabiam a mosto, outros que deixavam na boca a impressão delicada dum gosto de
violeta.
Mas quando, de volta dessa
viagem, ele reentrou a barra do Rio de Janeiro, a celebrada barra que não tem
rival no mundo, a sua tristeza começou a manifestar-se. O entusiasmo caiu em
morna melancolia e ele tornou à canastra, cruzou as pernas e, depois de haver
explorado inutilmente os bolsos, pediu-me um cigarro. Dei-lho e isso foi pretexto
para que discorresse sobre o fumo, falando de Cuba e das suas ricas plantações.
Não era um homem, era a própria geografia.
O grande sino de São Francisco
pôs-se a bater vagarosamente as dez horas e o homem levantou-se.
O acadêmico insistiu com ele
para que ficasse.
— Não, estava uma noite linda,
ia aproveitá-la.
Tomou o chapéu e a bengala,
despediu-se e foi-se, cabeça alta, bambaleando o corpo. Quando os seus passos
perderam-se na escada eu disse ao meu amigo:
— Esse sujeito é doido, não?
— Não. Esse homem foi um
verdadeiro nababo.
Descendente de uma família
abastada herdou uma grande fortuna e, logo que entrou na posse dos seus haveres,
resolveu satisfazer a ambição da sua mocidade: ver o mundo e saiu a realizar
essa viagem admirável da qual nos deu, há pouco, as linhas gerais e, ainda
assim, muito apagadas, porque ele hoje está com a melancolia: há luar, é sempre
assim.
— É, então, um lunático?
— Não sei, diz que o luar
reaviva-lhe as recordações. Pensas, talvez, que foi dormir? não, foi andar e
anda até de manhã. Vai a pé a Botafogo, fica horas e horas a passear ao longo
do cães, falando só, ou falando ao mar; detém-se diante de certas casas, olha
demoradamente, depois segue cantarolando, como para disfarçar tristezas. É sempre
assim, quando há luar.
Chama-se Pinheiro, Pinheiro Chicote. Dizem, que, de volta da Europa,
enamorou-se de uma formosíssima senhora e desposou-a. A princípio, por vaidade,
abriu os seus salões, recebendo com fausto; levou a mulher aos bailes da corte,
aos espetáculos no Provisório, a garden-parties, de repente retraiu-se; nunca
mais a senhora foi vista em parte alguma, e entraram a dizer que, numa cena
violentíssima de ciúme, o marido levantara contra ela o chicote ferindo-a no
rosto e no colo. O povo entrou, desde então, a chamá-lo Pinheiro juntando-lhe
ao apelido, como antonomásia Chicote,
estigmatizante, o nome do instrumento vil, com que ferira a linda dama.
Nunca se referiu à esposa nas
palestras que comigo tem tido, conheço tais fatos por outras pessoas que o alcançaram
ainda no tempo brilhante.
A senhora morreu, dizem uns;
outros afirmam que o abandonou e que ainda vive; não sei. Ele é o que vês — um
misantropo, com essa erudição de viagens e um pouco de poesia melancólica no
coração. De resto — bom homem, posto que, algumas vezes, tenha verdadeiras crises
de mau humor tornando-se insuportável. É de um orgulho desmesurado: sofre fome
para não pedir e, se apanha algum dinheiro, vai, a correr, para a estação das barcas,
sentir-se no mar. Tem a nostalgia das águas que o levaram a todos os pontos do
mundo onde havia alguma coisa que ver, e admirar; e tem, talvez, um remorso que
lhe tira o somo, que o irrita ou que o prostra em longa e muda melancolia, dias
seguidos. Fala seis línguas, e é um crítico de arte admirável. Onde mora
ninguém sabe, dorme, às vezes, aqui, outras vezes em casa do Rodrigues, e nas
noites de luar caminha. É tudo quanto sei.
— E que faz?
— Nada. Já lhe quiseram dar um
emprego, rejeitou com desprezo. Quer a sua independência absoluta, não sabe
obedecer.
Anos depois, uma tarde,
achava-me eu no largo da Carioca, à espera do bonde, quando ouvi uma gritaria e
gargalhadas estrondosas que vinham da rua de Santo Antônio. Voltei-me e vi
aparecer, à frente de uma grande malta de garotos, roto, brandindo furiosamente
um velho guarda-chuva, o Pinheiro Chicote.
Estava envelhecido e magro, o
casaco era um trapo, as calças pretas, polidas na barra, reluziam. Caminhava apressado,
gesticulando; de repente, sentindo perto os pequenos que diziam chufas, que lhe
atiravam imundícies, que o puxavam pelas mangas, pelas abas do casaco,
voltou-se e foi um chorrilho de obscenidades. Um polícia interveio defendendo-o
e ele lá foi atirando os braços, com acenos ameaçadores, e desapareceu na rua Gonçalves
Dias, perdido na multidão que subia apressada. Recolhido ao Hospício foi,
enfim, libertado pela morte.
Esse grande desgraçado que,
para uns, sofria as torturas de um remorso, e para outros, era apenas um nostálgico
da fortuna, vivia do passado: na maior miséria sustentava-o a recordação dos
dias felizes que, no dizer do Dante, constitui a provação maior. Para ele era a
felicidade.
Olhar as águas verdes e
irrequietas do mar era para o infeliz um consolo. Por elas seguira outrora, moço
e rico, e elas o viram feliz em tantos portos diversos, gastando a mãos largas;
por elas tornara para agasalhar-se na pátria tendo por companheira uma senhora
de esmerada educação e de fascinadora beleza. Fora injusto e cruel com ela, as
erynias vingaram-na e o mísero Penteu pôs-se a errar pela cidade, pobre e
solitário, ao luar e ao sol, revendo os sítios em que fora feliz: aqui certo
balcão dum antigo prédio, que fora seu, talvez, de onde ao lado dela, olhara
tanta vez aquelas mesmas estrelas do céu; adiante, um jardim onde deixara uma lembrança
do sou carinho numa árvore que vira pequenina e que, então, abria uma copa
frondosa; os montes, os campos, o mar, o mar sobretudo.
Essa insistência da visão das
coisas antigas devia ir abalando o pobre espírito. Não foi a miséria que levou
ao desespero a alma orgulhosa, altiva e sofredora do miserando, foi a saudade,
foi a lembrança da ventura que, a princípio, o sustentava como a hera sustenta
as ruínas, mas que, insinuando-se por todas as frinchas e taliscas, acabou por
estalar aquelas fracas resistências dando com a pobre alma na loucura. E que
fazia o louco? não vociferava, não investia, não ameaçava — só, monologando, ia
e vinha pelos compridos corredores apontando coisas imaginárias, sorrindo,
admirando. Às vezes corria — não julgassem que ia praticar alguma maldade, não;
ia tomar o comboio para Jerusalém ou o trenó para atravessar a estepe e,
sorrindo, acenava adeuses fugindo na loucura para aquele passado, na visão
suave do que fora, dentro do eterno sonho.
Nas noites de luar
acendiam-se-lhe os olhos, tremia e, pálido, sem poder conciliar o sono, não se
aquietava enquanto não lhe permitiam ficar junto a uma janela olhando, através
das grades, a lua branca, no céu.
Que lhe recordaria o astro
meigo? talvez um amor no deserto ou, quem sabe a sua brutalidade de ciumento.
Que descobriria na lua triste?
seria ele um dos predestinados de que fala Raimundo Correia no seu Plenilúnio? Talvez
a lua...
Ha tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor?
Lua dos tristes e enamorados,
Golfão de cismas fascinador!
Astro dos loucos, sol da demência
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência
Lua dos loucos, loucos estão!!
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