Confirmação
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Às oito da
noite, sob um céu claro de lua cheia e num friozinho penetrante de inverno,
Carlos Fragoso bateu à minha porta.
— Não temos
tempo a perder — disse-me da soleira, negando-se a entrar por inconveniência de
delongas. — São sete em ponto. Dentro de trinta e cinco minutos devemos estar
com mestre Pôncio.
Desci
pressuroso, abafado num mac-ferland
e, postos em caminho, tomei o braço de Carlos.
— Não te
abala essa experiência?
— Um pouco,
pela curiosidade. E a ti?
— Com
franqueza, temo mais pelo insucesso do que pelo sobrenatural.
Carlos, com
o seu costumário tique de torcer o pescoço sobre o colarinho, à direita, objetou-me:
— É porque
não conheces bem o Dr. Pôncio. Eu sou como tu és, um incrédulo; considero tudo
isso uma bruxaria e por mais que monsieur Boraduc e mister William Crooks
constatem a existência de uma força consciente extra-humana, estaciono
precavidamente nalgumas experiências magnéticas do coronel de Rochas, ainda
assim com esse enviesado sorriso voltairiano que nos sublinha a emancipação
mental sob a dúvida condescendente... e tolerante... Mas, a justíssima
reputação científica de mestre Pôncio, a sua propriedade profissional e,
particularmente, esse razoável sigilo com que ele cultiva o ocultismo, me fazem
crer que, realmente, há alguma coisa de verdade nas suas experiências...
Deixei
Carlos Fragoso falar. A sua voz era quente e meiga, com um quase imperceptível
tremor nervoso que, acentuando as sílabas, lapidava certas palavras com o
esmero facetado de pedras preciosas. Ao demais, o seu intelectualismo
cultivado, independente de ortodoxias limitadoras, tinha o encanto duma
ardorosa imaginativa e, por isso, seus exageros teóricos, expostos numa
cintilante linguagem de inéditos neologismos, lhe davam às imagens e às ideias
o feitio bizantino duma arte meticulosa e requintada.
Estava,
então, no período floral dos vinte e seis anos, possuía uma carta de médico, a
inquietadora notícia de um avô que morrera escabujando na cela dum manicômio e
a perigosa auréola donjuanesca dos amorosos irresistíveis.
Dizia-se
que, havia uns três anos, uma formosa e ardente Flávia, num arremesso de paixão
livre, desenastrando os lindos cabelos negros para ocultar na sua carinhosa
treva perfumada a cabeça de Carlos, matara de dor e vergonha o seu próprio pai!
Dizia-se mais que a formosa Flávia, não obstante esse devotamento, fora
impiedosamente desprezada pela preferência de uma satânica beleza outoniça, que
fazia o orgulho dos salões ricos com um título comprado ao Vaticano e o
escândalo de seus vestidos de luxo... Uma legenda! Mas, ao certo, Carlos
Fragoso devia impressionar as viageiras do Amor, não por beleza, que essa lhe faltava,
sim por seus modos singulares, dos quais resultavam estouvamentos de impulsivo
e melancolias românticas de cabeça desenhada em 1830; pela expressão apaixonada
do seu moreno rosto viril, a que a firmeza dos traços substituía a escassez da
barba: e mais do que por tanto, pela rápida celebridade do nome, vindo de uma
família afortunada e engrandecida na publicidade louvaminheira das gazetas.
— Estamos
chegados — disse Carlos, parando em frente da larga porta de um prédio vasto e
vistoso.
Dentro, no
saguão assoalhado de quadradinhos de mármore preto e branco, o porteiro fumava
o seu cigarro, tranquilamente recostado numa cadeira de vimes e no claro muro
do fundo, vivamente iluminado pelo farol pendente do teto branco, negrejavam as
enormes letras do dístico em curva: Casa de Saúde do Dr. Pôncio de Almeida.
Subimos.
Logo, à saleta de entrada, encontramos mestre Pôncio com o seu eterno sorriso
apagado. Saía do quarto dos seus doentes. Brilhavam-lhe os olhos através das
lentes dos seus óculos de ouro. As suas faces escanhoadas e amarelas tinham uma
expressão de cansaço, em que a tristeza do seu sorriso apagado deixava uma vago
de resignação. Um longo bigode grisalho pendia-lhe sobre a boca, e o cabelo
falho, devastado pela calvície, que lhe alongava a testa, era negro e
reluzente.
Estendeu-nos
os dedos macios, com moleza, e nos foi empurrando, delicadamente, para o seu
gabinete, guarnecido de altas estantes de livros. O seu olhar percorreu-me de
alto a baixo, mas Carlos explicou-lhe:
— É o meu
amigo Lúcio, de quem tenho falado...
Pôncio
inclinou a cabeça, atencioso:
— Sim.
Tinha-me dito que o traria. — E para mim: — As nossas emoções são idênticas nas
suas causas. Sou um dos seus leitores...
Ia
corresponder à sua gentileza, mas ele fez-nos sentar junto da sua vasta mesa de
canela escura, onde os utensílios de escrita e as brochuras de leitura
conservavam a ordem e o asseio dos interiores ingleses.
— Confio nos
senhores — disse-nos —, por isso admito-os numa das experiências que vou fazer.
Em outras tenho colhido resultados extraordinários!... Mas, sobre ela nem uma
palavra!... Se transpirar o que vamos assistir, a minha reputação estará
perdida...
—
Guardaremos o segredo — respondeu Carlos —, não obstante ser um fato
científico.
— Sim, é um
fato científico. O que lhe falta é assentimento à experiência que contraria a
educação sentimental dos homens. A prova, de hoje, devemo-la unicamente ao
acaso, porque se trata de moribunda sem amizade ou parentes aqui. É uma
rapariga que me foi entregue, já agonizante, por proteção oculta... São raras,
são raríssimas, essas provas. Ah! os senhores não avaliam as dificuldades com
que luto! Depende tudo de um feliz acaso, como este, e é sempre em segredo que
trabalho. Nem os meus internos nem os meus empregados sabem do que se passa.
Bem. Vamos.
Ergueu-se,
encaminhando-nos por um corredor monotonamente branco. A fria e intensa
claridade dos aparelhos de gás fazia-o mais frio e mais longo. Respirava-se um
ambiente acre de desinfetantes, que acordavam imagens incômodas de trabalhos cirúrgicos,
avivadas pela sucessão de portas equidistantes e numeradas, rasgando escuros
quadros oblongos n’alvura envernizada dos muros. Os nossos passos abafavam-se
no capacho corrido do soalho cerado.
Dobramos por
outro corredor, vaziamente branco como o primeiro, descemos uma escada. Este
silêncio, estas paredes brancas, este caminhar não me aterrorizavam,
deixavam-me o cérebro frouxo, sem uma comoção que me predispusesse para o que
ia assistir.
Carlos
caminhava em minha frente, também mudo. De repente o cenário mudou. Do patamar
da escada passamos a um escuro terraço. Tive um pressentimento, o arrepio do
mistério. Mestre Pôncio, que nos precedia, desenganchou os ferrolhos do pesado
portão, fez-nos penetrar as estreitas ruazitas de um jardim poeticamente sossegado
ao luar.
Na friagem
da noite clara, toda aveludada de luz nas alturas, toda segredo de frondes na
terra, o aroma das violetas derramava-se como a tentação suspirada das
serenatas sevilhanas, e, sem cuidados, antegozei a surpresa que me esperava, porque
a bruxaria de mestre Pôncio ia-se transformando em delícias imprevistas...
modernismos de higiene hospitalar, com os quais as dores fingem discretos
sorrisos de coragem, portões de cenografias dramáticas, jardins amaciados pelo
plenilúnio... e quando mestre Pôncio, aproximando-se de um solitário casinholo
escondido entre arbustos, feriu com os dedos três pancadinhas cabalísticas na
porta, apoderou-se de mim uma volúpia, prevendo surgirem dali teorias bailantes
de criadas seminuas. Mas, a porta cedeu sem ruído.
Achamo-nos
numa pequenina sala, desprovida de móveis e em face de uma mulher, a quem só se
podia determinar o sexo pelas vestes. Era alta, magríssima, ruiva; tinha o
rosto comprido e sardento e no seu olhar de gata havia o esfuziar estranho de
uma alucinação.
Passamos
logo a um quarto próximo. Mal transpus a sua porta recuei com um abalo no
coração. As paredes forradas ou pintadas de negro, como as câmaras dos
ocultistas, o teto negro, pareciam abalar a pequena chama do gás que ardia.
Num leito colegial,
junto à parede, permanecia um corpozinho raquítico, estiraçado sob os lençóis,
cuja brancura iluminada e em contraste com o negrume dos muros punha em relevo
ceroso uma cabecita óssea, de um lindo perfil de mártir, envolta na mantilha
desgrenhada de seus longos cabelos negros.
Aproximamo-nos
do pequeno leito de ferro. A rapariga agonizava sem contrações. Os seus olhos,
que, sem dúvida, deviam ter sido ardentemente negros, agora embutidos nas cavas
cianosas das órbitas, transluziam um esverdeado sombrio; a boca fora-lhe
pequena, armada em beijo e, meio descerrada, descobria uma orla de dentes
certos. Arfava-lhe o peito sumido; ao longo do corpo, suas descarnadas mãos
viscosas, dum branco laivado de roxo, jaziam imóveis, com os polegares dobrados
para as palmas.
Carlos
observou-a. Pareceu-me vê-lo inclinar-se ao leito numa pesquisa de minudências.
Mas o Dr. Pôncio nos levou às nossas cadeiras d’espectadores, pouco distantes
do leito; diminuiu a chama do gás.
— Vão
assistir à materialização do espírito — segredou-nos como para não perturbar o
lento trabalho da morte. — Tenho a prova contrária à teoria espírita, quando o
astral se desprende o espírito segue, o corpo fica abandonado, é o casulo
vazio...
E para a
mulher que permanecia de pé à entrada d’alcova:
— Miss
Edwiges, ao seu lugar!
A mulher
obedeceu como um animal domesticado. Assentou-se defronte do leito. Mestre
Pôncio arregaçou os punhos, ajustou os óculos.
Apesar do
estado nervoso em que me sentia, tive um sorriso com a mímica do ilustre
professor, desconfiei dele. Carlos, porém, o seguia sério e interessado. Pouco
a pouco deixei-me dominar por seus gestos, que eram vagos, como simples esboços
de sinais aos terríveis olhos da médium.
Miss Edwiges
ganhara uma imobilidade de estátua. Ao princípio, o fosforear de seu olhar
lembrava a pupila trágica dos felinos na treva, depois alquebrou-se-lhes a
intensidade fixadora, viera-lhes um torpor sonâmbulo que os manteve paralisados
e vazios.
Então mestre
Pôncio tocou-me levemente no ombro, chamando-me a atenção para o leito. Agucei
o olhar. Esperei. Os segundos corriam menos velozes que o meu coração. Ouvia,
bem distintamente, o respirar opresso de Carlos. Súbito o corpo de miss Edwiges
estremeceu, e eu também estremeci, quase sufocado. Doíam-me os olhos no esforço
do atendimento. Em torno de nós a escuridão aumentava, víamo-nos, uns aos
outros, como infinidades espectrais que a concentração atentiva deformava.
Pôncio, de pé, apenas tocado pela cochilante luz do gás, parecia-me satânico e
os reflexos de seus óculos me davam a impressão de órbitas vazias; o busto
anguloso de miss Edwiges, a sua cabeça imóvel, os seus olhos vítreos e sem
pestanejar, afiguravam-se-me um morto que ali o tivessem assentado...
Outra vez
miss Edwiges estremeceu, percebi-lhe a mão direita, sobre o regaço,
contrair-se. E vi, bem claramente vi, vi com estes olhos que tenho, vi com a
consciência que possuo, um halo de cor azulada, incerto, estonteado, ondulante
como a primeira chama de um punch a crescer no espaço. Não tinha forma, era unicamente
um farrapo de névoa luminosa.
A mão
crispada de Carlos agarrou-me o braço, ouvi a sua voz surdamente dizer-me: É
assombroso! E vagueando o olhar desvairado de um para o outro lado, de pessoa
em pessoa, notei que o rosto de miss Edwiges se alterara, seus cabelos ruivos
erriçavam-se, as narinas inflavam-se-lhe num resfôlego esfalfante. Era, em
verdade, assombroso! E continuei a olhar. A névoa luminosa adensava-se.
Devagar, demoradamente, com a lentidão de uma chama que a aragem castiga, doidejava
no ar, alguns momentos ameaçou extinguir-se, mas de novo se refez, de novo se
recompôs. Já se lhe adivinhava o debuxo duma forma humana, a silhueta
indicativa de um corpo desenhado a enxofre sobre a escuridão de um muro. A
cabeça tomara contorno preciso. O sombrio dos cabelos acentuara-se, tal como se
fosse conseguido com fumaça negra; e todo o oval do rosto afirmou-se num traço
de luz. Dir-se-ia uma imagem de vitral pintada, em tons brandos, com uma tinta
maravilhosa. Viam-se-lhe os olhos negros, o nariz direito e fino, a boca rubra
tão delicada que lembraria um ninho minúsculo de coral para o sono de núpcias
de uma abelha feita de neve...
E essa
figura criada no vazio do espaço, viva da intangibilidade de suas formas, parou
diante de nós, olhou-nos demoradamente e estranhamente té que, num lento volver
de cabeça, fixou suas pupilas transparentes, mas ardentemente negras, no rosto
transfigurado de Carlos.
O meu amigo
ergueu-se num ímpeto de terror, e quis fugir, mas o braço luminoso do espectro
o conteve e como Carlos, assombrado, voltasse o rosto para ela, vimo-la
tomar-lhe a cabeça entre as mãos ambas e beijar-lhe na boca...
Um grito
rompeu o terrível silêncio da alcova, um grito que navalhou os recessos dos que
o ouviram e se resumia todo no pavor de um nome que fora amado — Flávia!... E
Carlos Fragoso desabou no chão, com todo o peso do seu corpo para sempre
inutilizado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...