Como eu me diverti
(Conto Comédia)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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PERSONAGENS:
JORGE (empregado no comércio)
O COMENDADOR ANDRADE (negociante,
sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia)
UM MÉDICO
DONA MARIA (excelente senhora
de meia idade, estabelecida com casa de alugar cômodos a moços solteiros)
A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de cinzas.
Atualidade.
ATO ÚNICO
A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em casa de Dona
Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade encardido de suor e
sujo de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um nariz de papelão
quase a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de óculos.
CENA I
Dona Maria, o Médico.
O MÉDICO
Que tem ele?
DONA MARIA
Não sei, doutor, não sei. O
senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito má cabeça: é doido pelo
Carnaval.
O MÉDICO
Gabo-lhe o gosto.
DONA MARIA
Ontem vestiu-se de frade, pôs
aquele nariz postiço e andou, num carro todo enfeitado de flores, ao lado de
uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando um préstito. Só o vestuário
da pelintra lhe custou perto de oitocentos mil-réis!
O MÉDICO
Quem lhe disse?
DONA MARIA
Os meus hóspedes não têm
segredo para mim.
O MÉDICO
Adiante.
DONA MARIA
Para se não constipar, o pobre
moço levou consigo, por baixo do hábito, uma garrafa de conhaque e de vez em
quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o préstito passou pela primeira vez
na Rua do Ouvidor (eu estava lá...) já ia o frade que não se podia lamber!
Depois na Rua da Constituição — isto sei eu por um amigo dele, que tudo viu —
outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso deu lugar...
O MÉDICO
... a um rolo! Pudera!...
DONA MARIA
Racharam-lhe a cabeça!
O MÉDICO
Naturalmente.
DONA MARIA
E o demônio do rapaz andou
toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal mulher, dos Fenianos para os
tenentes e dos Tenentes para os Democráticos, bebendo sempre, até cair na Rua do
Fogo, às três horas da madrugada!...
O MÉDICO
Com efeito!
DONA MARIA
A polícia levou-o para a
estação da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido
avisados, trouxeram-no para casa.
O MÉDICO
Onde está ele?
DONA MARIA
Naquela alcova. Há cinco horas
que ali está deitado, sem dar acordo de si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.
O MÉDICO
Fez bem. Vamos vê-lo.
(Entram na alcova)
CENA II
Jorge, o Médico, Dona Maria.
(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os olhos
fechados, os braços caídos. O Médico, ao ver o enfermo tem um movimento que
escapa à Dona Maria).
O MÉDICO (tomando o pulso do doente)
Não tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça) O
ferimento nada vale... Já lhe puseram uns pontos falsos; é quanto basta... O
seu hóspede tem apenas o que os estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de
descanso e mais nada. Quando voltar a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe
uma canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco
de marmelada, e disse. Se amanhã continuar incomodado, que tome um laxante.
CENA III
O Médico, Dona Maria.
(Na sala).
O MÉDICO (tomando o chapéu)
A senhora não imagina como
estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma
providência.
DONA MARIA
Por que, doutor?
O MÉDICO
Conheço-o, mas não sabia que
se tratava dele. É o namorado, quase noivo de minha afilhada, filha do meu
amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava meio inclinado a consentir
no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre este pândego. Agora,
porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada, que é muito dócil e
me ouve acatamento.
DONA MARIA
Valha-me Deus! e sou eu a
culpada de tudo isto!
O MÉDICO
Culpada, por quê?
DONA MARIA
Por ter mandado chamar o
padrinho! Pobre rapaz!...
O MÉDICO
A senhora deve estar, pelo
contrário, satisfeita, por ter indiretamente contribuído para este resultado. (Voltando-se para a alcova) Que grande
patife! namorar uma menina pura como uma flor, e andar de carro, publicamente
embriagado, em companhia de uma prostituta.
DONA MARIA
No carnaval tudo se desculpa.
O MÉDICO
Nada! — eu sou o padrinho, o segundo pai daquele
anjo! (Vai saindo)
DONA MARIA (tomando o Médico pelo braço)
Doutor, doutor, não vá assim zangado com o senhor
Jorge... não diga nada à família da menina... Ah! se eu soubesse... Mas que
quer?... Vejo que este hóspede tem segredos para mim... (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor... ele tem um bom emprego...
é muito estimado pelos patrões...
O MÉDICO
E a minha afilhada tem um dote de cento e cinquenta
contos.
DONA MARIA (aterrada,
largando o braço do Médico)
Cento e cinquenta contos!
O MÉDICO (saindo)
Fora o que lhe há de caber por morte do pai! (Chegando
à porta, para, volta-se e diz:) Canja... vinho do Porto... água de Vichi...
marmelada... e disse! (Sai)
CENA IV
Dona Maria,
depois Andrade,
DONA MARIA (fica
perplexa, de olhos baixos, na atitude de Fedra, quando diz)
Juste ciel!
qu’ ai je faite aujourd’hui?
(É despertada
bruscamente pelo Comendador Andrade, que entra com espalhafato)
O COMENDADOR (gritando)
Onde está o senhor Jorge?
DONA MARIA (consigo)
Um homem zangado! É ele, é o pai da menina!
O COMENDADOR
Senhora, pergunto-lhe pelo senhor Jorge!
DONA MARIA
Está doente... naquela alcova... dorme...
O COMENDADOR
Já me contaram as façanhas que ele praticou esta
noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá
está uma prova! (Atira-o longe)
DONA MARIA
Desculpe-me essa rapaziada, e não lhe negue a mão da
menina. O Comendador — A mão da menina! Que menina?
DONA MARIA
Sua filha.
O COMENDADOR
Minha filha? Qual delas? Pois este mariola ainda por
cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do seu patrão!
DONA MARIA
Do seu patrão? Ah! então não é o senhor Raposo?
O COMENDADOR
Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o Comendador
Andrade, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor
Jorge está dormindo, disse a senhora.
DONA MARIA
Sim, senhor.
O COMENDADOR
Pois bem; quando acordar, diga-lhe que eu aqui
estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para fazermos as contas!
DONA MARIA
Atenda, senhor Comendador!
O COMENDADOR
A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia
não pode ter empregados que se embriagam e passam a noite no xadrez! Era o que
faltava! (Sai arrebatadamente).
CENA V
Jorge, Dona
Maria.
(Na alcova,
Dona Maria sai)
JORGE (abre um
olho, depois o outro, olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa,
dirige à Dona Maria um sorriso de agradecimento, solta um longo suspiro, e
exclama com voz rouca e sumida)
Como eu me diverti!
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